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“Biblioteca Nas Redes”: O chiste no divã: fala sério, Lacan!

Biblioteca Nas redes o chiste.

Novo “Biblioteca Nas redes no ar! Desta vez, trazemos um trabalho da psicanalista e membro da ELP-RJ, Teresa Melloni, sobre o chiste. Confira abaixo o texto completo e amplie a discussão, deixando seu comentário lá no nosso Instagram!

O chiste no divã: fala sério, Lacan!

Por Teresa Melloni

Introdução

“Ademais nem todas as pessoas são capazes da atitude humorísticas. Trata-se de um dom raro e preciso e muitas sequer dispõem da capacidade de fruir o prazer humorístico que lhes é apresentado”. (Freud, 1927)

Este trabalho tem origem numa investigação clínica, de alguns casos em que a escuta, a despeito de qualquer intenção do analista, produziam frequentemente associações com efeitos chistosos, tanto para o analista quanto para o analisante.

Nele vamos tomar o chiste como equivalente ao humor, a ironia. Como disse Freud: “A representação pelo oposto serve de vários modos à elaboração do chiste (…). A única técnica que caracteriza a ironia é a representação pelo oposto” (Freud, 1905/1996, p. 74-76).

Interessante observar que estes efeitos surgiam na maioria das vezes, de construções de linguagem, que em princípio, queriam dizer algo sério. Como por exemplo: “eu gosto muito de plantas; no outro dia, plantei até um abacaxi”. Uma simples interrogação: “plantou um abacaxi?” provocou risos de ambas as partes.

Porém, nada garantia que ambos os risos tinham a mesma motivação.

Outro exemplo: “eu tenho medo de me queimar”, o próprio analisante interrogou-se: “Mickey Mouse”?

Em outras ocasiões, uma brincadeira do analista, em referência a uma fala do analisante, como: “é você precisa mesmo fazer exercícios”, produziu grande constrangimento, com uma longa interrupção da análise. Bem que Freud avisou: para haver chiste é preciso o riso!

Neste caso, a paciente sentiu-se ofendida na condição de “gorda” e procurou “uma terapeuta especializado em transtorno bi-polar, porque essa dava opinião”.

O chiste no divã

A estratégia de controle político no mundo contemporâneo atinge o sujeito no seu campo libidinal. Incapaz de encontrar a felicidade em meio a relação com seus parceiros, o sujeito se protege da castração, apegando-se na insistência frustrada em direção ao gozo do sintoma ou se entregando ao ressentimento e amargura de uma privação conformada. Suportar a vida com seus laços e embaraços supõe o abrir mão desse gozo consumista, acedendo ao desejo, ao admitir a castração em um mundo compartilhado com o imundo.

O acesso ao desejo foi o primeiro pilar que Freud instalou ao deixar o conforto de uma ciência conformada pelo conhecimento médico e dar ouvidos às vãs palavras das histéricas da época, nas quais ele pode ouvir o brado ao objeto perdido.

Da repetição desse apelo pulsional, Freud pode esboçar garatujas simbólicas e o colorido imaginário da condição trágica do sujeito psíquico no seu encontro com a falta-a-ser.

Inventava assim, um arcabouço para operar com o inconsciente e suas formações.

E depois dele, vários – Melanie Klein, Bion, Ferenczi, Fairbain, Lacan, e até nós seguimos trilhando atalhos para alcançar e sacudir as folhas do sintoma que brotou sobre as frondosas raizes da fantasia.

Peter Gay, biógrafo de Freud: uma vida para nosso tempo (São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 567), relata que, em 1938, na época de deixar a Áustria, dominada então pelo Nazismo, após a prisão e interrogatório de sua filha Anna, Freud foi obrigado a assinar um documento para a Gestapo dizendo que não havia sofrido maus-tratos. Após assiná-lo, ele acrescentou de próprio punho: “Posso recomendar altamente a Gestapo a todos”. Esta tirada de humor foi, no início, interpretada por Gay como uma tentativa inconsciente de suicídio, uma vez que a ousadia do médico vienense punha em risco sua própria vida, caso as autoridades nazistas reconhecessem ali uma fina ironia. Mas, num segundo tempo, o mesmo Gay reconhece que esta atitude demonstrava uma grande coragem e vitalidade de Freud e “seu senso de humor irreprimível”. Esta ambiguidade, que aponta tanto para a vida como para a morte, revela a ambivalência e o paradoxo próprios do registro do tragicômico e do humor negro, nesta estranha proximidade da angústia e do riso. Ou de como o humor pode ser um último véu a cobrir e descobrir o horror, permitindo a inscrição da intensidade pulsional no universo das representações, ainda que em situações-limite. Permite que o sujeito afirme seu desejo contra a pulsão de morte que o habita.

O sintoma é substituição, metáfora

Sabemos, como indica Freud, que o sintoma é “o signo e o substituto de uma satisfação pulsional que não teve lugar… o resultado da moção pulsional tocada pelo recalcamento” (Inibição, sintoma e angústia). Lacan ensina também que recalcamento e retorno do recalcado são “uma só e mesma coisa, o direito e o avesso de um só e mesmo processo” (Seminário 3, 14/12/55).

O sintoma é substituição, metáfora. Ele é antes de tudo um fenômeno linguageiro. Assim, em “A relação de objeto” (23/01/57), Lacan observou a propósito de Dora: “seus sintomas são elementos significantes, ainda mais que sob eles corre um significado perpetuamente móvel, que é a maneira com que Dora se implica neles… o sintoma é neste caso apenas uma metáfora”. Ou ainda, em “Os quatro conceitos …” (13/05/64): “o recalque primordial é um significante, o que se edifica para constituir o sintoma, (é) um andaime de significantes. Recalque e sintoma são homogêneos e redutíveis às funções de significantes. Sua estrutura, mesmo que se edifique por sucessão, como todo edifício, é, contudo, no final, inscritível em termos sincrônicos” (o que reenvia à escritura sincrônica mesmo do Nó “Bo”).

Como pedras no caminho do analista, é a amarração RSI destes troncos poderosos que resistem à intervenção, que mantém o sintoma ao abrigo das intempéries.

Mas Lacan insiste na presença do irredutível do real na construção do sintoma, propondo ir mais além, resgatando seu acesso pela via da metáfora, que abre para um novo sentido, mais ainda, sempre outro. (“As formações do inconsciente”, 13/11/57).

E no Seminário dos “Quatro conceitos…” ele indica que é pela repetição que se traduz a dimensão impossível do Real. A compulsão sublinhada por Freud em “Além do princípio do prazer”. (O sintoma é real APPOA).

Os chistes e sua relação com o inconsciente

No seu livro “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, Freud equivale o chiste à brincadeira ou à piada humorística ao enunciar: “numa brincadeira pode-se até dizer a verdade”. Assim, o recurso ao falei de brincadeira ou é de mentirinha pode ser a maneira de uma verdade ser anunciada, através do faz-de-conta. Esta verdade se diz através de um sentido insólito brotado do non-sense, do paradoxo, do absurdo, ao qual se segue uma revelação de sentido, que é sempre surpreendente e fugaz, seguido da descarga do riso. Qualquer tentativa de explicar ou aprisionar esta verdade num discurso formal levaria à perda do seu sentido humorístico, fazendo dela um saber triste ou sério. Por meio do atalho do humor, diferentemente, o sujeito assiste, ao mesmo tempo em que tangencia a sua própria divisão, sua condição sexuada e mortal. Para Freud, tanto o chiste,como o humor seria uma criação simbólica repentina, quando através da surpresa e do
inesperado eclode um sentido novo. Ambos estão articulados e dependem totalmente da linguagem e do deslizamento de sentido da palavra.

Por isso, Freud faz referência à terceira pessoa colocando em cena o Outro como o lugar do simbólico, do código da linguagem, com toda sua ambigüidade, polissemia, equívoco e jogos de palavras, além da pessoa de carne e osso que a encarna. Precisa ser da paróquia para entender a piada.

Em “Função e campo da fala e da linguagem”, de 1953, Lacan escreve que esta obra (Os Chistes) era “a mais incontestável, porque a mais transparente, em que o efeito do inconsciente foi demonstrado nos confins de sua sutileza”. Isto porque, nesta gratuidade criativa da linguagem, o chiste desafia o real, no seu próprio não-sentido.

No Seminário RSI, Lacan situa o chiste na ordem do simbólico, o cômico, na ordem do imaginário e o humor, na do real.

Observamos que na condução das análises, frequentemente só o humor ludibria o Eu arraigado no enunciado, possibilitando quebrar o espelho narcísico, com a rebeldia do erotismo e do desejo do sujeito, diante das adversidades impostas pelo destino, pelo acaso e pela morte, tanto no sentido da castração, como no sentido do destino pulsional.

O riso seria um signo de que algo fundamental produziu-se no analisando e abre para ele novos canais de acesso à experiência analítica, que surpreende o sujeito na origem da sua divisão, algo com valor de Ato, como descreveu Lacan no seu Seminário 15, que reedita o traumático do Real, no registro do trágico.

Diferindo ato de ação, Lacan defende alguma coisa de inaugural no Ato, algo novo, que traz consigo uma mudança. Assim, ele aproxima o ato psicanalítico do ato político, pelo que ele tem de revolucionário. A peculiaridade do ato é que ele apresenta um efeito a posteriori na resposta que provoca no analisando.

Nesse sentido, pensamos que nem todo chiste, humor ou brincadeira tem efeito de ato psicanalítico. Poder-se-ia objetar que, em tais circunstâncias, embora o riso se manifeste, não necessariamente está presente o humor no sentido em que Freud o concebe. Afinal, esse humor, como disse Freud, “tem algo de sublime e nem todos os homens são capazes da atitude humorística; é um dom raro e muitos nem sequer conseguem fruir do prazer humorístico que lhes oferecem” (Freud, 1905), p. 162).

Kupermann, em seu livro “Ousar rir”, considera o humor uma ferramenta efetiva de intervenção clínica, justamente por promover esta subversão. Porém, a depender do lugar do analista na situação transferencial, tal manobra pode deixar o sujeito à deriva, na calmaria dos ventos do significante. Porque estamos navegando na sombra opaca do sentido, para além do Princípio do Prazer, entre o familiar e o estranho (Unheimliche), na experiência do Desamparo Fundamental. No humor, o sujeito se depara com sua condição entre duas mortes, entre um significante e outro, de cara para a sua escrita no Real, como objeto a.

Desinteresse pelo humor e pleo riso?

Joel Birman, no seu texto “Frente e verso”, apresenta uma hipótese para um certo desinteresse dos psicanalistas pós-freudianos pelo tema do humor e do riso, e diz que a psicanálise fixou-se no registro do drama porque foi perdida sua sintonia com o registro do trágico: “pois o que existe de risível e irônico nas diferentes formações do inconsciente foi devidamente recalcado, sendo aqueles substituídos pelas cavilações dramáticas” (Birman, 2005 p. 95).

Na minha clínica, aprendi que, muitas vezes, o surgimento do riso, como uma fruição gozosa, que envolve e surpreende tanto o analista como o analisante, ambos “da paróquia”, como disse Lacan, produz um corte significante tão profundo, que é capaz de suspender o recalcamento do discurso, arrancar o sujeito do deslizamento metonímico e deixá-lo perdido sem o rumo metafórico de um novo sentido.

“Para se rir do chiste, tem que ser da paróquia” disse Lacan no Seminário 5, Formações do Inconsciente. (p. 124).

Mas o que seria essa paróquia?

Seria suficiente falar a mesma língua? Penso que não! Tem gente que pede pra explicar… tem gente que fica ofendido… Não se trata de compreender! Trata-se de uma experiência insólita, paradoxal e desconcertante que nos acomete, sem que possamos nos situar numa cadeia discursiva. Diante de um chiste ou uma palavra espirituosa, somos objeto na enunciação, em vez de sujeito da enunciação.

Por isso, penso que no chiste somos tomados no desvario entre um significante e outro, lá no Real da cena fantasmática, despencados da cadeia discursiva. Não foi à toa que Lacan relacionou, no quadrilátero de Klein, o vértice do Ato com o Final de análise e a travessia da fantasia.

Se só o Real admite ser igual a si mesmo, a paróquia a que Lacan se refere, está na dimensão do gaio saber, do Real que ex-siste na cena fantasmática. Ou seja, um gozo do deciframento que propicia, alguma relação entre saber e gozo, como ao infans, no tempo do alingua, como diz Lacan em “Televisão”.

Trata-se de “não compreender, não fisgar no sentido, mas roçá-lo tão de perto quanto se possa”, disse Lacan no mesmo texto, associando a intervenção chistosa, como a arte de entrelaçar engenhosamente as sílabas às notas musicais.

“O gaio saber admite a extimidade do gozo, ele admite que esse gozo não é, decerto, absorvível no saber, mas que tampouco lhe é exterior. Notemos, quanto a esse aspecto, que o saber alegre não é o saber onipotente, mas aquele que faz passar da impotência ao impossível. Por essa via, ele toca no real” (Miller, 2016 p. 110).

Já Laurent, chama de jaculação, a esse evento de corpo, produzido pela maneira que um significante é veiculado pelo analista, pelo significante que se liga menos ao seu conteúdo semântico do que a “um efeito de sentido real”. Em suas palavras: “Essa interpretação não é o acréscimo de um significante dois com relação a
um significante um. Ela não visa à concatenação ou à produção de uma cadeia significante”. Trata-se de um significante que seria novo em razão de sua capacidade de desencadear um despertar. (LAURENT, 2018, p. 65-71)

Conclusão:

Como já dissemos, a admissão do dito chistoso, começou a ser estudado por Freud em 1890, quando começou a colecionar piadas em relação aos judeus. Só depois da publicação “A Interpretação dos Sonhos”, em 1900, ele publica “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, onde o chiste já é apresentado como uma via privilegiada das formações do inconsciente. Porém “O chiste e sua relação com o Inconsciente” só é publicado quatro anos depois, em 1905, junto com “Os três ensaios sobre a teoria sexual”.

Note-se que os textos de 1900 alcançaram enorme sucesso junto ao público em geral, ao contrário dos textos de 1905, quando o primeiro (“O chiste e sua relação com o Inconsciente”) foi e é até hoje, desprezado, mesmo pelos psicanalistas e o segundo, (“Os três ensaios sobre a teoria sexual”), foi fortemente condenado, por admitir o caráter perverso polimorfo à sexualidade infantil.

E, finalmente, só em 1927, ele publica “O Humor”. Seria mera coincidência ou há alguma relação entre o chiste e a sexualidade? Como vêem até hoje esse é um tema pouco abordado pelos analistas. Lacan mesmo, na “A direção da cura e os princípios do seu poder”, não se refere ao uso do chiste ou do humor, como forma de abordagem da posição do sujeito frente ao gozo.

Mas no Seminário 5, “As formações do Inconsciente”, Lacan vai buscar na comédia antiga, Aristophanes, quando zomba de Sócrates, o que ele chama de apogeu de uma obra-prima ímpar, para dizer que “o isso calça as botas da linguagem”. (p. 140/141).

Fala sério, Lacan!!

 

Bibliografia

Birman, Joel. Frente e verso. In: Slavutzky, A; Kupermann, D. (org). Seria trágico… se não fosse cômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
Freud, S. Obras Completas volume 7: O chiste e sua relação com o inconsciente, imago, Rio de Janeiro, 1905/2006.
————- Obras Completas volume 17: O Humor, Imago, Rio de Janeiro, 1927/2006.
Lacan, J. Televisão in Escritos, Zahar Ed. Rio de Janeiro, 1975/2006.
————- Seminário 5, As formações do inconsciente, zahar, 1999.
Laurent, J. L’interprétation événement”, La Cause du Désir, no. 100, revista de l’Ecole de la Cause Freudienne, 2018.
Miller, Jean-Jacques. Les affects dans l’expérience analytique, La Cause du Désir, no. 93, revista de l’Ecole de la Cause Freudienne, 2016.
Safatle, V. (2005). Sobre um riso que não reconcilia: Ironia e certos modos de funcionamento da ideologia. Margem esquerda: Ensaios marxistas (pp. 131-145). São Paulo: Boitempo.

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