Escola Lacaniana

(21) 2294-9336

A MASCARADA NA CONTEMPORANEIDADE – Biblioteca Nas Redes: especial de Carnaval

mascarada na contemporaneidade

Quem disse que Carnaval não tem nada a ver com Psicanálise? Ainda no fim do clima carnavalescco, a Biblioteca Nas Redes desta semana traz um texto da psicanalista e membro da ELP-RJ, Flávia Chiapetta: “A Mascarada na Contemporaneidade”. O trabalho faz a conxexão entre a Mascarada da Psicanálise, a folia e o Feminino, a partir da música “Máscara Negra”, de Zé Kétti. O que essa músicca tem a ver com a Feminilidade? Confira o texto na íntegra:

A MASCARADA NA CONTEMPORANEIDADE

Flávia Chiapetta de Azevedo

Afinal, o que quer uma mulher?

Sabemos que é a partir dos significantes advindos do Outro que o sujeito poderá se constituir como tal. Mas, se não há no campo do Outro um significante que represente “A Mulher”, então, como poderá ela se fazer representar como sujeito, sendo mulher?

Insignificável, não subjetivável, furo no Outro, todas essas expressões nos ajudam a definir a questão que gira em torno do feminino como uma falta radical.

O sujeito não existe como tal enquanto significante. Ele é apenas representado por um significante para outro. Mas, no caso da posição feminina, não há o outro significante. Não há o S2, o significante do saber do Outro, que poderia tornar o feminino representável, e dar lugar de sujeito a uma mulher.

Pela falta de representação do feminino no inconsciente, uma mulher, ao querer se fazer reconhecer como sujeito, esbarra neste ponto de falta, no qual não há sujeito reconhecível.  Para sustentar o questionamento da feminilidade, fica-se exposto a encontrar, para além da dialética do significante, o furo. É precisamente essa falta de simbolização que está na origem do horror que a feminilidade pode causar. Horror, sim! Porque o sujeito se vê no vácuo diante do real.

Nesse sentido, uma hipótese possível para a questão colocada sobre o que quer uma mulher seria: ela quer que um ponto de apoio lhe seja fornecido, lá onde o inconsciente a deixa no vácuo pela falta de significante. Essa demanda pode tomar vários caminhos. Uma das saídas possíveis é a mascarada.

Uma história muito interessante me caiu nas mãos durante o carnaval. Trata-se da história que deu origem à música Máscara Negra, de Zé Kéti. Uma marchinha carnavalesca de grande sucesso: na mesma máscara negra/que esconde o teu rosto/eu quero matar a saudade/vou beijar-te agora/ não me leve a mal/ hoje é carnaval.

Pois bem, a música Máscara Negra foi composta para homenagear uma mulher que Zé Kéti conheceu num bloco de carnaval, mas só foi ver seu rosto três anos depois, porque ela usava uma máscara, uma máscara negra.

A história completa é a seguinte: era carnaval e Zé Kéti foi desfilar no Bloco das Piranhas. O esquema do bloco era simples e muitíssimo difundido no carnaval, com homens que se vestiam de mulher.

Mas Zé Kéti, surpreendentemente, conseguiu conhecer uma moça. Sim, uma moça que desfilava no Bloco das Piranhas! Sumiu com ela durante todo o carnaval.

Ao voltar ao convívio social, revelou que ela não tinha tirado a máscara nem por um segundo sequer. O mistério continuou no ano seguinte e no outro. Eles se encontravam apenas no carnaval. E somente no terceiro ano a mulher deixou que Zé Kéti tirasse sua máscara.

A história é interessante porque, em primeiro lugar, revela a complexidade da sexualidade humana. Como somos gerados pela via sexuada, portanto, marcados pela linguagem, não agimos de forma instintiva, no sentido de uma fixidez do comportamento, mas, ao contrário, a linguagem permite ao sujeito deslizar pelos significantes. No carnaval, especialmente os blocos adquirem um valor simbólico, porque permitem que o sujeito brinque, através das máscaras, com a presença-ausência do falo. Assim, um homem pode mascarar-se de mulher. E uma mulher pode sair num bloco para homens mascarada de mulher.

Mas essa história carnavalesca me interessou, em particular, porque traz, de forma metafórica, a questão da mascarada. Por definição, máscara é um modo de disfarce, que transforma aquele que a usa em alguém que não é. Vale lembrar que a posição feminina, tal como a masculina, também está submetida à ordem fálica, por isso mesmo podemos encontrar mulheres em blocos de carnaval para homens, como também em estádios de futebol, ou em cargos executivos, e  na presidência…

Mas o falo não é suficiente para significar aquilo que seria a feminilidade propriamente dita. Vale lembrar que a referência ao falo se manifesta a partir da sua presença ou ausência; o sexo feminino, se reconhecido, é como ausência de falo, de falo a menos, e não como furo. Dessa forma, a mulher é não-toda submetida à ordem fálica.  Deve-se deduzir daí que, por falta de identificação, uma mulher só poderia se afirmar na posição feminina a partir de um disfarce, uma máscara?

Lembremos que o complexo de castração, sob a forma da “inveja do pênis”, prepara a menina para o Édipo. A menina, ao constatar a diferença, e isso ocorre de imediato, sente-se injustiçada, quer “ter uma coisa assim também”, e se torna vítima da “inveja do pênis”. Em consequência disso surge o ódio da menina em relação a sua mãe, por ela não ter lhe dado esse órgão tão valoroso. Ela, então, se afasta da mãe e se volta para o pai, na expectativa de receber aquilo que lhe falta – o falo – sob a forma de seu equivalente simbólico, o filho.  É por isso que as mulheres têm uma tendência a quererem ser amadas. Ser amada, ou seja, ser o falo para o Outro, para dele obter aquilo que lhe falta. Ser o falo para tê-lo, eis o destino da feminilidade.

Uma grande questão no desenvolvimento da sexualidade feminina refere-se à relação originária da menina com a mãe. O próprio Freud não cessará de chocar-se com a questão de saber se a entrada da menina no Édipo faria realmente desaparecer a relação primária com a mãe. Tanto que no texto Sexualidade Feminina, ele observa que as escolhas amorosas das mulheres atualizavam suas relações com as mães e não com os pais, como seria esperado. Ou seja, mesmo voltando-se ao pai para obter dele o falo, a menina continua atrelada à relação originária com a mãe. A “inveja do pênis” corresponde ao desejo de ter o falo para ser o que falta ao Outro.

Mas é importante lembrar que o falo é um significante e, por isso mesmo, não se pode nem sê-lo nem tê-lo, a não ser imaginariamente. É possível se disfarçar de falo, como encena a mascarada. Lacan nos diz que a posição da mulher é empurrar o que é, enquanto falo, para com ele se parecer. Na mascarada, a mulher faz aparência de ser o falo. Disso temos muitos exemplos na contemporaneidade. Desde o surgimento do movimento feminista, que reivindica igualdades para homens e mulheres, é crescente o número de mulheres que acessam lugares que eram de domínio masculino. A meu ver, esse movimento chegou ao seu ápice na contemporaneidade, em que se observa uma ostentação fálica, do lado das mulheres. Atualmente encontramos mulheres exercendo o poder em vários setores da vida social: são bem sucedidas profissionalmente, administram bem as funções domésticas com a família; e tudo isso exibindo um corpo perfeito.

O interessante é que quanto mais um sujeito feminino se apropria do gozo fálico, mais se inquieta com sua feminilidade. Podemos encontrar, com frequência, mulheres bem sucedidas em sua vida profissional, mas devastadas pelo fracasso no amor. Esse fato é importante, porque revela o quanto o falo é insuficiente para significar o furo do feminino.

Li recentemente uma reportagem de moda sobre o uso do espartilho. Essa peça do vestuário feminino tem o objetivo de afinar a cintura, mas o interessante é que, pela pressão que exerce no abdômen, pode causar varizes. Ou seja, o sujeito fica com a cintura fina, mas cheio de varizes na perna. Não há espartilho, botox (toxina botulímica) ou silicone que dê conta do real em jogo na experiência do tornar-se mulher.

No decorrer da leitura que fiz dos textos de Lacan e de alguns comentadores, deparei-me, a princípio, com opiniões distintas sobre a mascarada: ora indicavam a mascarada como um aprisionamento fálico; ora como uma saída simbólica possível para a feminilidade. Disso concluí que a máscara está referida à ordem fálica e, como tal, desdobra-se em duas vertentes: imaginária e simbólica.

Na vertente imaginária, a máscara é usada como defesa contra a angústia do furo do feminino. O sujeito-mulher foge do irrepresentável da feminilidade, põe-se ao abrigo do falo e se reveste dele como uma armadura. Aprisionamento imaginário que anula a expressão. Não seria essa a cara da contemporaneidade? Rosto sem expressão de tanto botox!

O furo do feminino, nesse caso, não é simbolizado, é tamponado pelo imaginário. E vale lembrar que aquilo que não é simbolizado retorna no real. Real do corpo, carne viva, como herpes que surge em dia de festa, ou varizes que vão aumentando.

O retorno no real daquilo que não foi simbolizado revela para o sujeito o lugar que ocupa como objeto. A imagem fálica, familiar, torna-se a imagem do duplo, causando uma inquietante estranheza.  Às vezes, é mais fácil sobrecarregar-se de trabalho e submeter-se a cirurgias estéticas do que se ver reduzida ao estatuto de objeto. A reação das mulheres, principalmente as histéricas, não deixa dúvidas quanto à angústia desencadeada ao se verem reduzidas a objeto de consumo, como revela Dora[1] ao afirmar que seu pai lhe vendeu a um outro.

Mas o sujeito pode servir-se da máscara, e não ser aprisionado por ela. Ele pode suspender uma ponta da máscara de tal forma que o mistério, e não o pedaço de carne, pareça surgir.

Na vertente simbólica, então, a máscara não só esconde, mas também sugere a presença, para além do véu, de uma feminilidade misteriosa. Aí está o lado enigmático e sedutor da máscara.

Lacan (1957-58) no Seminário, livro 5, As Formações do Inconsciente, comenta um sonho da paciente de Freud (1900-1901). Trata-se do sonho da “água parada”. O sujeito ― uma histérica ― sonhou que chegava tarde demais ao mercado e não encontrava mais nada no açougueiro nem na vendedora de legumes. Completa o relato, dizendo que havia ido realmente ao açougue e depois de pedir alguma coisa ao açougueiro, este lhe diz: “Não se pode mais tê-lo”. Fragmentos da vida de vigília que compõem o sonho. Freud (1900-1901) entende que, sob transferência, o açougueiro é ele.

O comentário de Lacan (1957-58) sobre esse sonho é precioso. Ele indica que o falo é atualizado nesse sonho em torno da frase “Não se pode mais tê-lo”. Trata-se do falo, na medida em que surge como objeto que falta. E acrescenta que não se trata, aí, de uma experiência frustrante, mas de uma significação como tal. O falo é significante, nesse caso, na medida em que o Outro não o tem.

Para se fazer mascarada, um sujeito deve percorrer o caminho da simbolização do imaginário. Ou seja, tomar o falo não como um objeto que se possa tê-lo ou sê-lo, mas como significante. Essa é a condição para que um sujeito-mulher possa tomar a máscara como semblante e suscitar desejo.

Poder sugerir a presença de uma feminilidade misteriosa é usar a máscara como semblante, e não como aprisionamento fálico. O semblante é esse instrumento que permite manter estreita a relação com o real que encobre. “Fazer semblante de” só é possível se o real está aí para sustentá-lo.

A mascarada pode servir-se da máscara para provocar o desejo, apontando para além da aparência algo que não pode ser oferecido a seu acesso. Algo que é apresentado por trás de um véu, mas que, por outro lado, não pode ser encontrado ali. A máscara insinua a presença de uma ausência, causando o desejo. Assim, o amor torna-se um verdadeiro baile de máscaras, pois amar é dar aquilo que não se tem ― o falo ― a um ser que não o é.

 

Referências bibliográficas

ANDRÉ, S. (1987). O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Zahar.

FREUD, S. (1916-17[1915-17]). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol XV. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

[1] Freud, S. (1905[1901]). Fragmento da análise de um caso de histeria. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol.VII. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *