Escola Lacaniana

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Órfã do divã? Sobre a possibilidade de transferência “on-line”.

Por Mariana Bruno Nepomuceno Da Silva

Sinopse: Esse artigo tem como escopo demonstrar a possibilidade do trabalho analítico somente por meio digital, sem que isso seja um óbice ao dispositivo da Transferência. Através do recorte de um caso clínico, pretende-se apresentar o “divã virtual” como ferramenta que propicia e viabiliza o desenvolvimento do tratamento analítico, mesmo sem a existência de um consultório físico, não se constit uindo um entrave para o processo de Transferência.

O objetivo desse trabalho é demonstrar que o dispositivo da transferência pode se fazer presente no atendimento on-line, tornando o processo de análise possível também por tal meio.

Decidi apresentar o meu próprio caso, que é uma análise só desenvolvida através da internet, sem haver qualquer atendimento “presencial”, por entender que a experiência pessoal é um bom argumento para demonstrar que é possível que a análise se desenvolva por intermédio do setting virtual.
Meu processo terapêutico se inicia no ano de 1997 e eu, no “auge” da minha maturidade dos recém completados 15 anos decido: quero fazer terapia. É, de fato, curioso que, sem haver ninguém em minha família, e, mesmo em minha volta, que fosse psicólogo e/ou psicanalista, tomasse tal decisão. Não conhecia, também, qualquer pessoa que fizesse análise.

O fato é que, como adolescente, muitas coisas me inquietavam e achava que precisava achar o “fio da meada”. Encontrar, em mim mesma, respostas às minhas indagações e angústias.

Foram, em média, 05 meses nesse tratamento até que decidi parar. A pergunta “Como foi a sua semana? ” não me fazia sentido, não despertava em mim nenhuma vontade de falar. Não queria dizer como havia sido a minha semana. Na realidade, eu queria falar tantas outras coisas… como me sentia em relação a alguns acontecimentos, quais pensamentos povoavam a minha mente.

Passados 12 anos dessa primeira tentativa de psicoterapia, uma amiga, a quem muito admiro, contou-me que estava fazendo análise. Ela teceu tantos bons comentários sobre a sua analista que me despertou, novamente, a vontade de voltar a fazer análise. Assim, marquei a consulta e fui.

As primeiras sessões foram boas. Achei que tivesse encontrado a analista certa. Aquela que me deixaria falar sobre o que me afligia. No entanto, era sempre mais do mesmo, não saía do lugar. Nem
mesmo conseguia entender onde eu queria chegar e optei por parar a análise. Permaneci com ela por, aproximadamente, 06 meses.

Aos 33 anos, após o nascimento do meu primeiro filho, no meio do turbilhão do meu puerpério, resolvi tentar mais uma vez!

Iniciei minha análise por volta de outubro de 2015, com uma analista com quem me identifiquei de pronto. As sessões eram ótimas! Recebia um abraço quando chegava e um quando saía. Sentia-me acolhida. Em algumas ocasiões, precisei levar o meu bebê, porque não tinha com quem deixá-lo, mas isso não era impedimento para a realização da sessão, e, por diversas vezes, minha analista pegava-o no colo e o colocava para dormir. Ela entendia que, naquelas ocasiões, não havia alternativa.

Com essa analista, tudo fluía! Minha fala era livre. Podia dizer tudo o que vinha à minha cabeça! Sentia que havia progresso em minha análise. Suas pontuações certeiras me faziam refletir e ponderar.
Após quase dois anos de análise, em uma das minhas sessões, veio a notícia de que ela estava indo morar em Portugal!

– Como assim, morar em Portugal? Como vou ficar? E minha análise… Agora que havia encontrado alguém com quem eu conseguia falar! Como eu vou fazer? E ela respondeu:
– Olha, podemos continuar on-line. Faremos a análise por vídeo! Muitos farão dessa forma.

Mas, eu não conseguiria! Como fazer análise on-line? Como não ter o abraço da minha analista ao chegar e ao sair de cada sessão? Como não sentar poltrona a poltrona, ficar frente a frente com ela? Como não me deitar no divã?

A análise, ao meu entender, à época, significava me arrumar para sair de casa, ir ao consultório, bater à porta, aguardar ser atendida, e, posteriormente, quando chegasse o momento, deitar-me no divã e falar.

Não compreendia o porquê de ser tão importante o uso do divã, mas isso fazia parte do meu processo de análise e, não ter o divã, me deixava insegura em dar continuidade ao meu tratamento.

Senti-me órfã! Orfã do divã! Por meio de chamadas de vídeo, não poderia me deitar no divã. E, diante disso, não seria possível a análise!

Paramos o meu trabalho de análise um mês depois, quando ela foi embora.

Tentei com duas psicólogas que seguiam outras linhas. Entretanto, a análise não fluía, e eu desistia. Minhas sessões duravam 03, 04 meses, no máximo. Faltava algo. E eu não entendia, até então, que falta era essa.

Chegamos ao fatídico ano de 2020. Ano da pandemia da COVID-19, da angústia lancinante. De um momento para o outro, nos confinamos em casa. As ruas vazias, a dúvida pairava no ar.

Meu sogro ficou doente. Câncer em estágio avançado, Eu fiquei grávida do meu segundo filho.

Minha gestação foi tão solitária , não se podia encontrar ninguém. Meu marido ficou cuidando do meu s ogro. Éramos eu, meu filho mais velho, com apenas 05 anos, e o bebê que estava no meu ventre.
Passamos muitos e muitos dias assim.

Meu sogro faleceu. Não iria conhecer o neto, que ainda estava em meu ventre.

Meu filho nasceu 3 meses após a morte do meu sogro. Ficamos eu e meu marido no hospital, sem poder receber visita.

O pós-parto também foi complicado. Havia muita insegurança do que ainda estava por vir. Havia o luto com o falecimento do meu sogro. Havia a solidão de não poder receber visitas.

Precisava retomar a análise! Mas, como seria? On-line? Pensei em falar com a minha antiga analista, contudo, não me sentia mais à vontade com ela.

Pedi indicações para pessoas que já faziam análise on-line. Recebi a indicação e agendamos uma entrevista.

Nessa primeira entrevista, no processo inicial de catarse desabei! Falei, muito. E chorei também:

-Isso! Pode chorar! – falou o analista do outro lado da tela do celular – a sua dor é válida. Você não está sozinha.

E eu não me senti sozinha, apesar de ele estar em qualquer outro lugar, que não ao meu lado. Não podia tocá -lo, ou apertar sua mão, ver se era baixo ou alto. Ainda assim, não me sentia sozinha. Ele estava lá para me ouvir falar. Eu estava lá para me ouvir falar.

Eu me sentia à vontade. Entretanto, ainda perdurava em mim o sentimento de “orfandade”. Seria possível desenvolver a minha análise fora do divã? Eu conseguiria sustentar essa análise com alguém que eu nunca havia visto pessoalmente?

Conversando com conhecidos sobre tais inquietações, foi me dito que, se houvesse a “transferência”, o processo de análise seria viável. E o que seria a transferência?

Diz Lacan que “a transferência, na opinião comum, é representada como um afeto.”
Segundo Antonio Quinet, em entrevista concedida ao canal do Youtube da Companhia das Letras,

A transferência é o amor dirigido ao saber, ao analista. Mas, esse
amor não é o de amizade, nem amor sensual. Esse amor ao analista é
decorrente da posição em que o analisando o coloca de suposto saber.
Aquele a quem eu suponho saber, eu amo.

O amor transferencial, então, é aquele em que há a expectativa que um, no caso o analista, conceda um saber sobre o que o outro, o analisando sente, sobre o que está acontecendo com ele.

Esse suposto saber não corresponde, de forma específica, sobre o analisando, mas, sim, se supõe que exista um saber presente em sua experiência e em seu sintoma que será explorado e depurado na
análise.

Denise Maurano diz que

A transferência ganha tal importância que ser á condição preliminar
para o estabelecimento do tratamento psicanalítico. Se, por alguma
razão, ela não se estabelece, se o paciente não é capaz de fazer um
investimento no analista, sustentado sobretudo em supor-lhe um
saber, e viver os efeitos disso, também em sua dimensão afetiva, a
utilização desse método fica inviabilizada.

Uma vez instalada essa transferência entre analisando e analista que, inegavelmente, perpassa pela simpatia, pelo fato de se sentir à vontade com aquela pessoa do analista, inaugura-se o acesso ao
inconsciente, dando-se, assim, início à análise.

A despeito da minha hesitação em começar, não havia outra escolha e eu precisava iniciar minha análise. E só tinha a opção de ser virtual, já que a pandemia ainda não havia acabado e eu tinha um
bebezinho para cuidar.

Iniciei, então, o meu trabalho de análise, que já perdura há quase três anos.

A cada semana, perto do horário marcado, arrumo -me como se, de fato, fosse para ir ao consultório. Após, clico no link da sala virtual onde nos encontraremos e aguardo.

-Oi, Mari! Como estão as coisas? O que temos para hoje?

Nesse momento, se inicia a minha sessão de análise.

Não é o setting que estabelece uma análise, e sim, a transferência e o ato analítico . É a função transferencial que vai inaugurar, em ato, a associação livre.

E a associação livre é a única regra da psicanálise imposta por Freud. As demais “normas”, que se convencionou denominar “setting analítico” a partir do texto de Freud “O início do tratamento”, são
designadas como condições para a psicanálise, como bem pontuou Antônio Quinet em sua obra “As 4+1 condições da análise”. Ele ainda acrescenta que “é a associação livre que marca o início da psicanálise e também o início de cada psicanálise – é o ponto em que a análise deve começar”.

Então, se o que instaura a análise é a transferência e o ato analítico, isso pode se dar tanto no consultório físico como no ambiente virtual.

Não resta dúvidas de que nem todos se adaptarão a esta modalidade de atendimento. Tampouco, haverá análise para qualquer um deste modo.

Mas, frisa-se que assim também é na transferência. Nem todos irão vivenciar a transferência com esse ou aquele analista , seja no consultório físico ou no virtual.

O analista e o analisando estão presentes na sessão virtual, ainda que não de maneira física, mas que não deixa de ser uma presença real.

O analista se faz presente através do seu “desejo positivado, um desejo decidido em ato, que s e manifesta no ato analítico para as análises acontecerem e permanecerem”, como pontua Quinet.

O analisando, por sua vez, comparece com seu inconsciente, que continua a se manifestar através dos sonhos, dos chistes, dos trocadilhos, da associação livre, dentre outras maneiras.

E o divã?

Esse pode continuar existindo ainda que na análise virtual. O analisando pode, por exemplo, deitar em seu sofá e deixar o dispositivo que estiver usando para a realização da análise atrás. Ou, pode ainda, pedir para o analista desligar a câmera.

Em verdade, diversas formas podem ser utilizadas para simular o uso do divã. Basta encontrar uma que atenda a regra da análise: a associação livre.

Hoje, não me sinto mais órfã. Me sinto em pleno trabalho de análise. Uma análise que sei que está apenas começando, mas que, no entanto, está em pleno desenvolvimento no que chamo de “meu divã
virtual”.

Bibliográfia:
BELO, Fabio. Clínica Psicanalítica on-line: Breves apontamentos sobre atendimento virtual. 1ª. ed. São Paulo: Zagodoni, 2020.

CLÍNICA e Transferência: Trabalhos apresentados no V Encontro do Campo Matêmico realizados nos dias 25,26 e 27 de setembro de 1992. 1 ª. ed. Rio de Janeiro: Escola Lacaniana de Psicanálise, 1993.

CONVERSA com o psicanalista Antonio Quinet. [S. l.: s. n.], 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UF37hJeE29A. Acesso em: 30 jun. 2024.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2ª. ed. [S. l.]: Zahar, 1985.

MAURANO, Denise. A transferência: Uma viagem rumo ao continente negro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

MOSCOVITZ, Jean-Jaques; GRANCHER, Philippe. Para que serve uma análise?: Conversas com um psicanalista. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

QUINET, Antonio. As 4+1 Condições da Análise. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

QUINET, Antonio. Análise Online: Na pandemia e depois. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Atos e Divãs Edições, 2021.

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