Nessa terceira edição da série Biblioteca Nas Redes, trazemos hoje um trabalho da psicanalista e membro da Escola, Natahlia Figueira, apresentado na Jornada Clinica da ELP-RJ, em 2022. Confira o texto na íntegra abaixo e, se quiser comente no post do nosso Instagram:
“Morrer, dormir, quem sabe, sonhar…”
Biblioteca nas Redes – Por Nathalia Figueira
“Muitas vezes antes de adormecer –
nessa pequena luta por não perder a consciência e entrar no mundo maior – muitas vezes,
antes de ter a coragem de ir para a grandeza do sono, finjo que alguém está me dando a mão e então vou, vou para a enorme ausência de forma que é o sono.”
Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.
Não por acaso, no decorrer do dia a dia da clínica psicanalítica, são escutadas queixas sobre a dificuldade de dormir ou manter-se dormindo ao longo da noite, para obter um sono reparador. O mundo contemporâneo vem exigindo do homem atual o consumo exagerado tanto de mídias eletrônicas como de um ficar conectado às redes sociais. Adicionado a isso, a imposição de uma alta performance e desempenho no trabalho vem produzindo sujeitos zumbis, que vivem numa espécie de automático, num circuito sem intervalo para descanso ou para colocar em suspensão a sua realidade dentro do sistema capitalista.
A medicalização do sono vem sendo cada vez mais utilizada para enfrentar as dificuldades de adormecer. A insônia seria então uma espécie de verdade, que diz tanto do nosso contexto social como do que é singular do sujeito. Cabe aos analistas interrogar o sujeito contemporâneo no um a um de cada caso para algo daí poder despertar: o que é que tira o seu sono? O que te impede de ter um intervalo? E mais, quem não dorme, sonha?
“o sonho o guardião do sono”
O sono não se reduz à mera concepção de função fisiológica de repouso. Mesmo Freud dizendo que é “o sonho o guardião do sono” (Freud, 1996. Pág 62), outras funções são realizadas no momento de dormir pelo sono, como por exemplo o armazenamento da memória.
Ao lado dessa concepção de sono devemos também dar ênfase aos sonhos. Estes desempenham papéis diferentes de acordo com a cultura, mas sempre tendo em vista um caráter de despertar e de revelar algo de si. Entre os gregos, por exemplo, o sonhar carregava um sentido trágico com a suposição de um destino traçado. Na religião, durante um longo período, esteve ligado à revelação de causas divinas e com o passar do tempo os sonhos foram tomando uma significação mais subjetiva. Mas até os dias atuais vemos interpretações das manifestações oníricas das mais diversas.
Freud, com a obra “A Interpretação dos sonhos” (1900), inaugura uma nova concepção sobre esse campo, rompendo definitivamente com a ideia de premonição e trazendo para os sonhos o estatuto de formação do inconsciente. Se por um lado, o sonho é a manifestação do desejo inconsciente, de outro, é a organização que melhor mostra as leis da linguagem.
“A Interpretação dos sonhos”
Entender os sonhos como um texto foi ideia de Freud. Um texto que apresenta em seu escopo um conteúdo manifesto e um conteúdo latente. O autor do sonho está na primeira pessoa, mas também pode ser aquele que olha a cena, ou seja, aquele que se vê. O corpo do texto é feito de imagens retorcidas que colocam em pauta um conteúdo enigmático, lido em voz alta para um outro pode vir a provocar interpretação com efeito de ondas no sonhador (Lacan, 1970). O ponto axial é que mesmo não tendo uma mensagem direta ou um sentido único e estrito, o sonho pode abrir margem para o sujeito reconhecer onde ele está representado na cena.
Num percurso de análise a partir da transferência o texto do sonho torna-se operativo, coloca ao alcance do sujeito o jogo simbólico do efeito do significante trazendo à tona o encontro com o real que o sonho faz tocar. Tudo que toca o real diz respeito à cisão (spaltung), a maneira pela qual é definido o sujeito que, por fazer parte do universo da linguagem, fica excluído da própria origem marcada pelo desamparo.
“Umbigo dos sonhos”
Ponto curioso que Freud postula é o umbigo dos sonhos (Unerkannt), ponto que nos faz pensar sobre a cicatriz no corpo, resultante do corte do cordão umbilical, central no corpo.
Marca na pele que faz limite com o que é desconhecido para o sujeito. Etimologicamente a palavra umbigo vem do latim umbilicus, marca o “um” (uno) + “bigo” (bebê), portanto, Um bebê. Se o umbigo dos sonhos diz respeito ao insondável, àquilo que não é possível dizer definitivamente, assim também é o umbigo do corpo, ponto de origem, de nascimento e portanto impossível de alcançar como um todo.
A pulsão é marcada no corpo desde o primeiro embalar da vida. Voz, olhar e colinho fazem parte do pacote que coloca os bebês com pálpebras cerradas, flutuando em movimentos suaves enquanto são embalados num nana neném que os entrega em segurança ao sono. No início é assim, o Outro é o porto do bebê, uma espécie de Morfeu que ampara e faz o bebê se entregar aos seus braços. Seria o ato de dormir um reencontro possível com as marcas deixadas pelo Outro originário? O que disso pode ser lido?
Nas palavras de Freud: “ (…) todas as noites os seres humanos põem de lado os invólucros com que envolvem sua pele, e qualquer coisa que possam usar como suplemento aos órgãos de seu corpo (…) Podemos acrescentar que, quando vão dormir, despem de modo inteiramente análogo suas mentes, pondo de lado a maioria de suas aquisições psíquicas. Assim, sob ambos os aspectos, aproximam-se consideravelmente da situação na qual começaram a vida”. (Freud, 1917. Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos)
Ato de entrega
De acordo com Freud dormir implica um ato de entrega. Mergulho no núcleo de nosso ser que leva sempre para o encontro com nossas insígnias. Se o sonho é a via régia para o inconsciente, o que a insônia pode nos dizer sobre o sujeito e as questões do nosso tempo? Se os sonhos são tão importantes tanto para construção da fantasia e sua travessia no percurso de análise, como incluí-los fazendo questões para aqueles que nem sequer dormem?
Lembro-me bem de como fiquei surpresa ao conhecer a dona Margarida. A pele branca, manchada e fina demonstravam os anos de sol. O mais marcante era sem dúvida um corpo decrépito e muito cansaço. Aos 87 anos de idade buscava análise por conta da angústia de ter um filho que não dava descanso. Mesmo com mais de 60 anos de idade. As sessões giravam em torno da mesma pergunta feita por Margarida: “o que será dele quando eu não estiver aqui?” A questão buscava no eco um singelo sussurrar da analista a caminho da porta: “fique tranquila, a senhora precisa descansar”.
Este foi um caso que marcou meu percurso na função de analista. A angústia de uma morte anunciada, coisas que só num consultório de psicanálise se vê e escuta fizeram parte desse caso. Alguém que buscou um Outro para poder descansar em paz. Como isso é possível? eu me perguntava. Dali por diante entendi que a função do analista está para além de qualquer ordem que julgue como correta manter a vida a qualquer custo. Uma das queixas de dona Margarida era que não conseguia pegar no sono nunca. Depois de um tempo soube da morte da paciente. E tenho a lembrança, como numa espécie de cena do sonho, ver-me sorrindo e pensando: “ela se foi!”
Ensaio para a morte?
O se entregar a dormir é um ensaio para a morte? E no final da análise, como fica essa entrega ao sono e os sonhos? É somente porquê o Eu é desinvestido que o sujeito alcança um estado de sono profundo. (Pereira, M. 2021) Ou seja, se o Eu não é colocado em suspensão o sujeito terá insônia. Se manterá dando luz, pelo menos naquele momento, onde não deveria ter. Portanto, a insônia é a não retirada de investimento da realidade externa que aponta para elaborações não feitas, pendências psíquicas geralmente inconscientes que podem trazer perturbações sérias para vida do sujeito.
Em 1900 com a inauguração da obra “A interpretação dos sonhos” Freud foi visto como um cientista excêntrico. A comunidade científica mais jogou pedra do que o aplaudiu. Aliás, demorou tempo para que a obra ganhasse uma boa repercussão. O livro é inaugurado com uma epígrafe da “Eneida” escrita por Virgílio: “se não posso mover os deuses de cima, moverei o Aqueronte” (flectere si nequeo superos, Acheronta movebo). Assim foi fundada a obra que deu início a psicanálise.
O rio mitológico Aqueronte localiza-se na Grécia e é um lugar que possui inúmeras histórias. Aqueronte pode ser traduzido por “rio do infortúnio” ou “inferno de dentro”. Segundo o mito, logo após a morte, a alma era levada por Caronte, o barqueiro que ajudava as almas na travessia para as portas do Hades. Lá Cérbero aguardava, e ali eram deixados todos os sonhos, desejos e deveres que não foram realizados em vida.
Morrer, dormir, quem sabe, sonhar…
O herói de Virgílio, Eneias, vai até a margem do rio do inferno para buscar um saber sobre o futuro a partir de sua origem. E de lá consegue retornar. Os únicos que conseguiram passar pelo horrendo guardião de três cabeças, saindo vivos do submundo, foram Hércules, Orfeu, Psique, Ulisses e Eneias. Se estes têm algo em comum além de voltarem do inferno com vida, o que já não é pouco, é o fato de todos terem conseguido colocar Cérbero para adormecer.
Por fim, a relação desconcertante entre morrer, dormir e sonhar requer uma entrega a si mesmo que não é qualquer. Na experiência de uma análise não é diferente, o sujeito precisa se entregar à aposta de um relançamento de sua vida, um novo despertar. Na melhor das hipóteses é a travessia do Aqueronte que entra no jogo: Morrer, dormir, quem sabe, sonhar…