CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO a
Contrariando Freud, Lacan afirma que a angústia não é sem objeto e dedica o seminário da angústia a conceitualização desse objeto singular, que ele diz ser sua única invenção, o objeto a.
Vou trazer aqui algumas considerações sobre esse objeto de difícil definição, pois não se trata de um objeto em si, mas de pura falta.
Como falar de um objeto que não existe, mas que insiste e é o que faz a estrutura se mover?
Objeto peculiar, insistente por pertencer ao registro do real, inconsistente, pois no imaginário aparece como faltoso e se faz representar pelo (-ᵠ) e inexistente, já que não encontramos no simbólico um significante que o represente, ele resiste a toda assimilação pelo significante.
Lacan vai abordar a teorização do objeto a enfatizando três momentos que pressupõem uma anterioridade lógica já que se trata de um mesmo objeto. Ele nos fala do objeto caído, do objeto cedido e do objeto historizado ou passado no campo do Outro. Cada um desses momentos tem suas características especificas.
Quanto ao objeto caído, ele vai caracterizá-lo pela operação de “separtição”. A separtição é uma operação de corte que ocorre dentro de uma unidade, não uma separação, mas uma divisão por dentro. No nascimento, esse corte se dá entre o individuo e seus envoltórios, que são partes dele mesmo, a separação se dá no interior de uma unidade que é a do ovo. A separtição está desde o inicio, desde o nível da pulsão oral, inscrita na estruturação do desejo.
Lacan vai se utilizar deste conceito para falar da operação do advento do sujeito no lugar do Outro. Na entrada na linguagem, vai haver uma separtição do sujeito, que ao passar pelo corte significante sofrerá a queda de seu objeto. Aquilo que do ser não passa no significante se destaca do sujeito enquanto objeto. Este objeto a, esta subtração funda o sujeito barrado e o Outro barrado, pois ele cai do sujeito e do Outro.
Ele aborda os exemplos dos envoltórios, da placenta, no nascimento, fala dos mamíferos em geral, para fundamentar que a separtição se dá no nível do real, no nível do corpo. No caso da linguagem entre um corpo esvaziado de gozo e o objeto que continua ligado ao gozo.
Esse objeto caído, não tem imagem, nem significante, não é nomeável, está perdido, ele é o que resta de irredutível desta operação, representa o sujeito em seu real irredutível. É com ele que lidamos por um lado no desejo e por outro lado na angústia, um momento antes na angústia e depois no desejo.
Em consequência do engajamento do homem na cadeia significante, sempre haverá algo de separado, sacrificado que, citando o Mercador de Veneza, ele vai chamar de libra de carne. É essa libra de carne perdida, que será o suporte de toda função da causa. Esta libra de carne é a parte de nós que é aprisionada na máquina e fica perdida para sempre.
Em seguida, ele passa a abordar o objeto cedido, que, diferente da queda do objeto que se dá entre o sujeito e o significante, a cessão do objeto é uma operação da linguagem, que acontece entre o sujeito e o Outro. Embora ambos sejam objeto a, o objeto cedido é diferente do objeto caído. O objeto caído, como vimos, não tem imagem nem significante e o objeto cedido se manifesta no nível dos fenômenos e está relacionado à demanda.
O objeto cedido vem depois, são objetos plurais, são o objeto caído, nos diferentes níveis de estruturação do desejo, são os objetos da pulsão, oral, anal, fálica, o olhar e a voz. O objeto anal é o protótipo do objeto cedido.
A cessão é um momento constitutivo do objeto a, que vai representar o sujeito no que este tem de mais real, no seu ser em alguma forma de gozo.
No nível oral, encontramos o seio materno como objeto da pulsão. A mama é algo intermediário entre o bebê e a mãe, chamada de órgão amboceptor. A relação da criança com a mama é semelhante a sua relação com a placenta, a mama forma uma unidade com a criança. Por outro lado, a mama é implantada no corpo da mãe, isso faz com que nesse nível haja duas linhas de corte. Uma vai se dar na unidade viva bebê/mama e outra ocorre em relação ao Outro, ao corpo da mãe.
O desejo está ligado à função do corte, é essa separação que funda o desejo oral, que, neste nível, está do lado da criança. Já o ponto de angústia, ponto em que a criança se relaciona com a falta (falta do leite), está no Outro, no nível da mãe, pois depende do organismo dela, é a angústia de esgotamento. Associada ao desejo oral, encontramos também outra forma de angústia, ligada à fantasia do vampiro, que vai sugar o sangue do Outro.
Podemos ver que, nesse nível, o ponto de angústia difere da origem da causa do desejo, pois o desejo está do lado em que o objeto é extraído e a angústia está do lado do Outro.
Lacan passa do nível oral para o nível fálico, deixando o anal em espera, passa do objeto oral para a angústia de castração, para mostrar que há uma inversão no nível fálico em relação ao oral. Devido às características do órgão peniano, neste nível, o ponto de angústia e a causa do desejo coincidem do lado do sujeito.
A angústia de castração está do lado do objeto fálico, angústia da queda do poder fálico, não está do lado do Outro. O orgasmo é homólogo do ponto de angústia do nível oral. A angústia é provocada pelo fato do instrumento ser posto fora do jogo no gozo.
O falo imaginário (-ᵠ) tem função mediadora em todos os níveis da relação do sujeito com o objeto a, menos onde se espera que ele funcione, isto é, na relação sexual. É esse esvaziamento da função fálica, justo onde se espera seu funcionamento, que constitui o principio da angústia de castração.
Lacan aborda a castração com uma nova visão, afirma que não se trata do órgão cortado, e sim da detumescência do órgão após o orgasmo na relação sexual. A queda de sua potencia vital substitui a fantasia de mutilação. A detumescência faz do órgão masculino o objeto caído, a angustia esta ligada a esta queda, desta forma o falo adquire seu valor mais pela possibilidade de ser objeto caído do que por sua presença. É isso que dá o lugar da castração na história do desejo. Com a detumescência, o falo toma a função de a enquanto objeto caído, mas a com o sinal de menos (-ᵠ), como objeto perdido. O objeto perdido se torna o fundamento do sujeito desejante.
No registro da visão não há falta. Não conseguimos ver o que falta a nossa imagem. A presença no Outro não tem resto, não conseguimos vê-lo. A imagem é sempre satisfatória e fascinante, pois a visão é cega para a castração, que é sempre elidida no nível do desejo que se projeta na imagem.
O desejo no nível escópico é nulificação do objeto a, que neste campo se reduz ao ponto zero, sendo fonte de um apaziguamento traduzido pelo termo contemplação. O desejo escópico é contemplação estética do mundo, uma suspensão do dilaceramento do desejo. É o que melhor se presta a mascarar a angústia de castração, pois num campo de beleza nada falta.
Como explicar o desejo escópico se não há desejo sem falta? Lacan vai afirmar que o objeto separtido está reduzido ao ponto zero, mas está aí causando o desejo.
Aqui, o ponto de desejo e o ponto de angústia coincidem, mas não se confundem. A angústia emerge no lugar do desejo. É porque o objeto a está zerado, nulificado, que o desejo escópico, às vezes, mascara a angústia – a angústia do que falta no desejo. Sobre o desejo e a angístia no nível da visão, Lacan coloca:
“A relação recíproca entre o desejo e a angustia apresenta-se nesse nível
especifico, sob uma forma radicalmente mascarada, que esta ligada às
funções mais enganosas da estrutura do desejo” (Lacan. Sem. X p.287).
Nada falta no campo da visão, com exceção do que está atrás, nas nossas costas, que não podemos ver. Para anular esse ponto de angústia, temos que ficar contra as paredes.
Para falar da pulsão invocante, Lacan vai se utilizar de um objeto ritual, o chofar. O chofar é um chifre que emite um som e é utilizado em cerimônias religiosas. Seu som tem um caráter comovente e inquietante que desperta emoções pela via do afeto auditivo, comovendo a todos os seus ouvintes. A função do chofar é renovar e relembrar a aliança com Deus e seu som parece ser a voz do próprio Deus. Ele é convocado no pacto entre o homem e Deus e invoca o objeto no Outro. O objeto que apela a voz de Deus, aqui o Outro.
Lacan coloca que, para além da fonetização da cadeia significante, temos a dimensão da voz que sustenta o objeto. A voz é um significante emitido e este não está separado de seu emissor, é preciso que o significante esteja suportado pela presença do Outro. Associa a voz ao supereu, o supereu vem pela voz e, como ela, é da ordem da existência.
A voz porta uma dimensão nova na relação do sujeito com a angústia, ela é eminentemente objeto de angústia. Na relação com a voz, o ponto de angústia está relacionado à voz que pode faltar.
Nesse nível, encontramos o desejo invocante, que invoca a voz do Outro, como o chofar ilustra bem, na renovação do pacto religioso.
No nível do desejo anal, estamos lidando com a demanda do Outro, que vai possibilitar o acesso do excremento à subjetivação e elevá-lo a categoria de objeto a.
A educação que leva ao controle dos esfíncteres pode gerar um excesso de devastações. Aqui, a demanda tem um papel decisivo, pede-se à criança que retenha as fezes por algum tempo e depois pede-se a ela que as solte. A demanda se apresenta em dois tempos: no primeiro, as fezes são pedidas e valorizadas, a criança se orgulha de seu produto, que é parte dela, é ela e, portanto não quer perdê-las, se sente reconhecida, a partir daí as fezes adquirem um valor elevado e especial, a criança se sente valorizada por atender a demanda do Outro. No segundo tempo, essas fezes são renegadas, ela tem que descartá-las e não deve ter muitas relações com as mesmas.
Neste nível, temos a primeira relação da criança com a demanda do Outro, encontramos aí um reconhecimento ambíguo, o que está ali é ao mesmo tempo a criança, mas não deve ser ela e ainda não é dela, tem que ser descartado. Nesse momento, o desejo é de reter e esse objeto será o modelo do objeto do dom.
Aqui, o sujeito se constitui como dividido, ambivalente na relação com a demanda do Outro. Temos aí a origem da ambivalência obsessiva.
A evacuação do objeto anal vai ganhar importância no nível fálico, pois será o protótipo da imagem da perda do falo.
Por fim, Lacan vai falar do objeto a passado no campo do Outro ou objeto historizado. Para isso, lança mão do pai. Colette Soler, em seu livro sobre o Sem. X[1], questiona: “O que é que necessita o apelo à função do pai?”.
Durante o seminário, ele desenvolve sua teoria sobre o objeto a e a castração, sem falar do pai. O que produz a separação dos objetos da pulsão e a castração é o Outro da linguagem e não o pai.
Ao falar do nível da voz, ele se refere ao supereu e essa voz superegoica implica a função paterna.
O objeto historizado ou passado, no campo do Outro, não é anônimo, é eletivo, não é qualquer um, carrega as marcas de uma história, é um objeto identificável e nomeável.
O objeto caído tem como efeito um desejo, mas um desejo infinito, indeterminado. O objeto ao qual o desejo vai se dirigir não está definido aí. Colette Soler coloca que: “a, causa o desejo, mas não causa o desejável“[2].
Lacan aborda dois modos de desejo: o desejo infinito que se dirige a um objeto indeterminado, em que qualquer objeto pode ocupar esse lugar de alvo do desejo e o desejo finito, que tem como alvo um objeto determinado, um objeto historizado. Para que o desejo se fixe a um objeto-alvo será preciso apelar à condição do pai.
Quando Lacan coloca: “O desejo do pai é a lei”, isto não quer dizer que o pai faz a lei, e sim que o pai é convocado aí como desejante, enquanto um sujeito que deseja. Nesse sentido, é preciso a existência do pai (não necessariamente o genitor). O pai é uma função de existência, ele sabe a qual objeto a seu desejo se endereça. Lacan coloca: “O pai … é o sujeito que foi longe o bastante na realização de seu desejo para reintegrá-lo em sua causa.” (Sem. X p.365/366).
Um desejo que reintegrou sua causa é um desejo finito, fixado por um objeto a passado no campo da história, isto é, um objeto historizado, que porta, ao mesmo tempo, indícios imaginários e significantes.
O pai pelo desejo que tem por sua mulher designa o objeto historizado. Encontramos aqui a função do nome, o pai nomeia o objeto ao qual seu desejo se refere. A mãe, objeto incestuoso, está no lugar de ser o objeto a historizado do pai. Ao mesmo tempo em que o pai nomeia a mulher seu objeto de desejo, ele a subtrai do filho, enquanto objeto incestuoso, já que ela é o objeto ao qual seu desejo se refere. O pai é uma condição suplementar à operação da linguagem para que um sujeito possa entrar num desejo finito.
A subtração do objeto a provocada pelo significante, sem referência à interdição, precisa ser redobrada pela função do pai no nível do objeto a historizado, isto é, passado no campo do Outro. Se isto não ocorre, teremos desejos infinitos, com objetos indeterminados, desejos não fixados no laço social. Lacan valoriza as formas de desejos finitos orientados para um objeto historizado, nomeável – são desejos vivazes no laço social. Daí a importância da função do pai para a constituição do objeto a e do desejo.
__________________________________
BIBLIOGRAFIA
LACAN, Jacques – O seminário livro 10: a angústia – Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2005
SOLER, Colette – Seminário de leitura de texto ano 2006 – 2007: Seminário A
angústia, de Jaques Lacan – São Paulo: Escuta, 2012
__________________________________
[1] Colette Soler – Seminário de Leitura de Texto Ano 2006 – 2007
Seminário A Angústia, de Jacques Lacan – p. 161
[2] Idem – p. 161