Escola Lacaniana

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O Passador

Por Nathalia Figueira

 

O ato de contar histórias acompanha o homem desde seus primórdios. As gravações em pedras e a tradição oral fizeram com que muitas histórias fossem transmitidas de gerações a gerações, produzindo mensagens que foram apreendidas e refinadas ao longo dos tempos. Por meio da narrativa preservamos a memória, aumentamos o conhecimento sobre as coisas do mundo e principalmente: trocamos experiências uns com os outros.

Contar uma história é dividir com alguém a visão que se tem do mundo, é deixar marcas no que é contado, assim como o oleiro deixa a impressão de seus dedos na argila do vaso. Cada vez que uma história é passada adiante ela é também recriada pelo passador, que ao contar, reinventa a história a partir dos seus significantes ou dos significantes que tomou para si na experiência. Uma rede é tecida lançando e entrelaçando passado, presente e futuro, reunindo o sujeito que tomou a palavra e um outro que se pôs a escutar. Essa passagem é notória no momento que a criança, por exemplo, passa pelo letramento, ocasião na qual a leitura e a escrita são levadas a dimensão de função social, possibilitando um laço que a provoca, “ler o mundo” à sua maneira.

A narrativa possibilita o sujeito visitar o lugar do improviso levando-o a um trabalho que inclui, além de equívocos que podem aparecer na fala, tonalidades diferentes da voz, de um trecho para outro, assim como variações de ritmo e volume. Cada personagem quando contamos uma história é uma voz diferente que se pode experimentar. Desta forma, olhar e voz resgatam memórias, semblantes e arquétipos ligados aos ideais culturais ou familiares. No tempo da infância, destaco a influência dos contos infantis, nos quais a criança pode vivenciar um lugar ativo nas brincadeiras e a partir disso experimentar a realidade de forma criativa, produzindo possibilidades de elaboração e organização da subjetividade.

Penso que a investigação sobre o tema da narrativa surge para mim a partir da escuta que testemunha as mais diversas histórias na clínica psicanalítica e que percebe que um percurso de análise proporciona ao sujeito a construção de uma narrativa de si. Para tal introduzo duas questões: qual o lugar da transmissão como marca distintiva da diferença entre os sujeitos na nossa contemporaneidade? É possível pensarmos num novo modo de transmissão que não inclua a especificidade humana que são as experiências?

Em sua etimologia, o termo experiência aponta para algo que foi retirado ou separado de uma vivência; é um contato sensorial com a realidade. Toda experiência relaciona-se com o que se vê, com o que se pode tocar ou com o que se pode sentir, portanto com o que se pode provar, mais do que com as coisas do pensamento. Para a psicanálise a transmissão da experiência humana se dá por meio da linguagem que é sempre marcada por uma falta, ou seja, por um campo barrado e incompleto. Essa transmissão psíquica é necessária e concomitante à constituição do sujeito, sendo também determinadora de uma ordem simbólica, que perpassa por gerações, fazendo laço entre os humanos.

Fosse ao redor das fogueiras, nas mesas de jantar ou nas cabeceiras das camas, o contar histórias já foi palco de uma escuta e de uma atenção profunda ao saber de terras estrangeiras, de acontecimentos ocorridos há muito, muito e muito tempo atrás. Patrimônio da humanidade “(…) a experiência que se transmite oralmente é a fonte que beberam todos os contadores de histórias” (Benjamin, W., 2020, p, 21).

Ao longo do tempo, o narrar histórias ganhou vários recursos para além da oralidade: figurino, palco, trilha sonora, fantoches e outros elementos que vestem a narrativa e que envolvem o espectador para além da experiência com voz e olhar. Com o avanço tecnológico aumentou-se o leque de possibilidades com os recursos audiovisuais, os quais além de estimularem em demasia os sentidos, retiram o uso harmônico da voz. Em meio a um mundo barulhento e agitado estaríamos deixando de lado o olhar desprovido de pressa?

Escrito em 1936 o texto “O narrador”, de Walter Benjamin, aponta para um tempo pós narrativo, onde a informação prevalece sobre a experiência: “É como se tivéssemos sido privados de uma faculdade que nos parecia inalienável e era a mais segura de todas: a faculdade de trocar experiências. Uma causa desse fenômeno é clara: a cotação da experiência caiu”. (Benjamin, W., 2020, p, 20)

Para Benjamin o declínio da narrativa deu-se a partir da invenção da imprensa e isso fez com que o mundo passasse a dar mais importância à informação do que à transmissão das experiências. Diferente da narração que transmite uma experiência, a informação não se desdobra, é grão de poeira, e apesar de recebermos uma enxurrada de notícias ao longo do dia, estamos pobres em histórias surpreendentes. Um fato acompanhado de explicações não dá margem para milagres e mistérios como nos diz Byung-Chul Han, não deixa uma margem de liberdade necessária para a interpretação ser capaz de continuar a germinar.

A digitalização trouxe uma novidade que Benjamin não pôde prever. A partir do ano 2000 sofremos um baque no universo tecnológico com o aumento das mídias sociais. Deste período em diante, passamos a viver numa crescente que abrange uma série de diferentes plataformas que disseminam informações e conteúdos, que exercem uma influência grande na vida dos usuários. Agora a “realidade passou a ser moldada por informações e dados” (Han, C. B, p, 27) e já faz um tempo que todos percebem a vida com vistas para essa nova forma de ser. Não é mais a imprensa que fornece a maior parte das informações na atualidade, mas é o próprio usuário, nas redes sociais, o fornecedor. Enquanto se posta, curte e compartilha, o sujeito se submete a um estilo de dominação que é disfarçado de liberdade, uma ordem sedutora e inteligente (smart) de sistema. Entrega-se às necessidades, opiniões e preferências aprimorando os recursos e as estratégias digitais de mercado a partir do comportamento de cada um.

As micronarrativas nas redes sociais não oferecem nenhum poder de fazer laço apesar do slogan de estarmos todos conectados. Os influenciadores e responsáveis pelo conteúdo de crianças e jovens testam produtos alimentando um mercado desenfreado pela busca de objetos inúteis e sem valor. Esse tipo de conteúdo carece de gravidade e cria uma comunidade na forma de mercadoria. Estão todos vendendo alguma coisa na internet e vivenciando uma atrofia do tempo nas micronarrativas de stories numa sequência de fatos momentâneos. Em algumas plataformas não há espaço para histórias.

Nos anos 70, Lacan apresenta o discurso capitalista como uma verdadeira aberração. Esta seria uma outra forma de escrita, um outro discurso formado a partir da mutação do discurso do mestre. Discurso que não permite laço, mas que amalgama o sujeito, anulando a impossibilidade e a impotência da produção, fazendo vigorar uma alienação ainda mais forte que submete e coloca o sujeito à dominação do outro. Ele é tanto o capitalista quanto o proletário, é o senhor mas também, o escravo. Os efeitos da imersão neste discurso é de um gozo categórico que impõe ao sujeito a servidão do superego. Circula nas redes uma promessa de cura do mal estar. Mas será isso possível? Uma única palavra que indique ou aponte para algo que nos falta perto dos dispositivos que carregamos no bolso, é o suficiente para obtermos sei lá de onde, uma solução imediata. Fica claro que o mal estar na civilização vem aumentando justamente porque não se pode ter mal estar nenhum e o que ainda nos salva como humanidade é que por mais que se tente sufocar a falta com objetos, mais é evidenciado
que há algo que nos falta. Cabe ressaltar a grande busca por análise nos últimos anos, principalmente depois da pandemia. Talvez haja uma necessidade de narrar sobre si e de contar as experiências nos tempos atuais, justamente porque estamos carecendo disso na contemporaneidade. Estariam os psicanalistas alcançando em seu horizonte a subjetividade da época em que estamos?

Freud foi o mais fabuloso e maior contador de histórias da psicanálise. Publicou histórias clínicas, tomou a literatura e a arte como campo de investigação da subjetividade humana, e nos deixou como herança um grande arcabouço que serve como fonte para continuarmos a pensar no sujeito. Seu legado junto ao princípio ético da psicanálise propicia o lugar onde a transmissão se articula com um outro tempo, o do sujeito. Tempo que é diferente da demanda imposta pelo discurso capitalista.

É função do psicanalista dar as condições para que o analisando construa sua ficção e possa atravessá-la, além do que devemos estar advertidos sobre a promessa de felicidade deste século do ego. Mantenhamos em nosso horizonte a formação permanente do psicanalista, prezando pelo tripé fundamental e possibilitador do nascimento do desejo do analista, porque se a travessia da fantasia tem um final, a travessia da teoria é interminável.

Termino este trabalho com uma fábula para nossa apreciação:

“Um velho, em seu leito de morte, revela a seus filhos a existência de um tesouro oculto em
seus vinhedos. Bastava desenterrá-lo. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio
do tesouro. Com a chegada do outono, porém, as vinhas produzem mais que qualquer outra
na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência:
a felicidade não está no ouro, mas no trabalho duro”.
(autor desconhecido)

Nathalia Figueira

Bibliografia:
CHUL HAN, B. A crise da narração. Petrópolis: vozes, 2023.
BENJAMIN, W. O contador de histórias. São Paulo: Hedra, 2020.
LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
LACAN,J. Discurso de milão
FREUD, S. Romance familiar. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

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