“Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre o que é viver melhor
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje, na memória, eu guardo e sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente o que fez de manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho
Eu fiquei seu fã”
Sérgio Bittencourt
Poderemos contestar que o social radicalmente modificou e que nos tem deixado, nós, analistas, com dificuldades de abordagens para levantarmos hipóteses sobre os sintomas diante daqueles que nos chegam? A reação terapêutica negativa bate às nossas portas.
Vejamos, um breve histórico dos tempos.
Não foi em vão que Lacan, no Seminário “O avesso da Psicanálise”, monta seus discursos, dentre eles, o do capitalismo. Lembremos que, no movimento hippie, ou seja, o famoso e mundial levante estudantil de 1968, protestaram contra o capital e queriam liberdade sexual e social. Não à dependência do capital.
Quem não lembra da capa deste seminário? Um estudante a debochar de um policial!
Marx, por sua vez, nos diz que o homem é um elemento “a-mais” na engrenagem industrial contribuindo assim para que parte do lucro com o qual a empresa reinveste no sistema, Lacan nomeará como objeto “mais-gozar”.
Com o que nos deparamos na atualidade? Seja ela moderna, pós moderna, o que for, constatamos uma inversão de valores: o sujeito humano ao bel prazer do capitalismo. O que aconteceu com o social e o sujeito do inconsciente?
Não podemos nos queixar da liberdade que a vida moderna nos trouxe, mas nos deparamos com a depressão, a hiperatividade, as toxicomanias, bulimia, anorexia, alcoolismo, como queixas primeiras.
O sexo tornou-se uma mercadoria como qualquer outra e a morte perdeu a sua sacralidade. O ideal de cada um cedeu espaço para o objeto que traga satisfação sem limites!
O pensar, o julgar, o comer, o transar, o casar ou não, a vida em família, os ideais mudaram seus rumos. Estão em outras direções implicando novos deveres, dificuldades e sofrimentos.
O sujeito atual não pensa mais na ética como anteriormente, seja ela social ou como para nós, analistas, em função do desejo. A satisfação encontrou seu lugar primeiro. A ética e a política não orientam mais seus pensamentos de sujeito do inconsciente, estão a desejar, ou em falta, tendo o excesso como norma.
Posso pensar, como Lacan, que seus tempos lógicos não estão em vigor como propostos por ele? Ou seja, o tempo de compreender está colabado com o momento de concluir? Há pressa!
É interessante pensar em relação ao objeto proposto por Freud ao sujeito do inconsciente que se expressa pelas vias de seus sonhos, lapsos e atos falhos e de que nossas relações com o mundo se dão não por intermédio de um objeto, como hoje, mas pela falta dele. A perda não faz parte de seus propósitos para que suas identificações sexuais sejam estabelecidas. O Édipo nos orienta neste sentido e, portanto, uma fonte de neurose. A depressão veio substituir as neuroses de defesa? O que poderemos dizer da função paterna? Como nos aponta Melmam, o sexo se banalizou. É encarado como uma necessidade, caiu o limite que o tornava sagrado como a morte, não se fala mais no desejo. O desejo sexual é tratado como simples atividade corporal, fazendo do sexo uma mercadoria entre outras. O corpo é prioritário, a estética vigora!
Vamos a Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu. Lá, encontraremos sua fala que diz respeito à identificação dos sujeitos em relação ao líder. Tratam do amor a ele, líder, tais identificações.
Já, em Totem e Tabu, no mito do pai morto, o parricídio, Freud nos relata, a partir de um mito, a primeira identificação por incorporação e amor ao pai.
Vamos primeiro ao mito: se o sujeito está submetido ao sistema linguageiro, posto sem garantias, ele deverá considerar esse furo de estrutura. O mito virá para fazer esse furo se presentificar, e é nesse lugar que virá se alojar o pai como “ao-menos-um” que sustentará o lugar da impossibilidade sabendo que essa referência é sempre uma impostura. O pai virá se apresentar da mesma forma que o mito, como elaboração que permita fazer borda ao furo, implicado no ato de falar. O pai não virá para obturar tal furo, mas não deixar este furo aberto e ao mesmo tempo não obturá-lo, sendo assim elidido. Ora, para tal incumbência, deverá estar ali, não estando. Sem demasia. Assim o pai não é o Outro do Outro como garantia da linguagem, pois ele mesmo está submetido a ela, mas será apenas com ele, mesmo que seja um paradoxo, que o sujeito deverá contar para sustentar seu ponto de impossibilidade e de inconsistência, permitindo assim o luto da completude.
Se, para nós, analistas, que lidamos com as singularidades dos sujeitos, o que presentificamos no homem de hoje é uma generalização de traços, comum a todos. Portam as mesmas qualidades e defeitos? A insatisfação impera a qualquer custo, o desejo cedeu lugar ao gozo. Os objetos são envelopados e descartados, são intercambiáveis. E o pai, a autoridade, o mestre, onde estarão? Em falta. É como se não ocupassem mais seus lugares.
Vamos ao pai da horda. Foi morto e, no entanto, permaneceu mais vivo do que antes. Estabeleceu-se a lei, a culpa e abriu caminho para o Édipo. Hoje, o pai não é mais a autoridade em função de referência.
Diante das forças econômicas, verdadeiros mestres da situação, o pai vem perdendo seu lugar, precisa lutar pelo reconhecimento e apreciação. A desaparição do conceito de autoridade em detrimento ao reconhecimento.
Lacan aponta no Seminário RSI: “identifique-se ao Real do grande Outro real e vocês obterão o que nomeei com os nomes-do-pai”. A topologia nos auxilia com a revirada do toro, e sinaliza o lugar e a função paterna como “lugar vazio”: tudo cabe e nada cabe!
Não seria também uma função do analista? A ciência lida com o enunciado e o psicanalista com a enunciação, ou seja, lidamos com o dito e a ciência com o dizer, já que nos propusemos a dar conta em nossos trabalhos da realidade psíquica dos sujeitos.
Perguntamos: Como tentar articular esse social descrito e suas consequências com o sujeito do inconsciente?
Tivemos há algum tempo a psicanálise de grupos e a psicanálise breve. Não se sustentaram!
O que poderemos propor, já eu Freud nos disse que o individual e social são a mesma linguagem?
Cito Lebrum
“Com efeito, psicanálise e ciência procedem do mesmo ncaminhamento de saber, mas o que as distingue é a relação de seus saberes respectivos com a origem: de um lado um saber que deve ser cortado de sua enunciação e de outro, um saber que quer manter o laço com ela; o que nos permitiu definir a ciência como um saber sem verdade e a psicanálise como um saber não sem verdade”; “de um lado, um saber cortado de seu nascimento, do outro, um saber que permanece articulado com sua emergência.”
Nosso desafio é a inscrição do saber na medida que a verdade do sintoma se presentifica em sua falta. Esse “nada” apontará o lugar da verdade para o sujeito.
Nos questiona Lebrum: “Como trabalhar no social já que o pai real é subtraído no mesmo tempo que o sujeito e a verdade?”
Pergunto: Precisamos sair dos consultórios ou mais precisamente manter-nos na crença de que é pelos limites do Simbólico que teremos acesso ao desejo humano e que a linguagem é o que funda o sujeito e dele não abrir mão como a ciência?
Concordo com Lebrum quando diz: “A especificação da intervenção do psicanalista não é sair do saber para mostrar seus limites, mas fazer com que esse limite seja portado pelo próprio saber”. Continua: “…sem que essa especificação seja exaustividade e que acontece o mesmo com sua responsabilidade frente ao campo social.”
Aqui vou retomar o que disse no início: a reação terapêutica negativa bate às nossas portas. Sim, Freud já nos alertou de sua presença.
Quando diferencia defesa de recalque, apresenta como recalque um modo especial de defesa, e assim sendo o conceito de defesa abrange os processos de proteção do eu, quando o recalque se mostra insuficiente para dar conta das exigências pulsionais e da angústia de castração.
A defesa é o conceito principal das neuroses e de algumas psicoses, aproximando defesa a constituição do sujeito e do recalque originário, este furo primeiro no isso, em torno do qual defesa e recalque se associam.
Lacan virá esclarecer o conceito de defesa, acentuando que não se trata de defesa do eu e sim do sujeito, já que Freud até então estava com dificuldade de distinguir eu do sujeito. Clareando este ponto, aborda a questão da resistência com a defesa. Com relação à defesa, dirá da aplicação sobre o sujeito em relação à angústia, ao desejo e ao gozo.
No seminário A Angústia, dirá: “… as defesas diferentemente do recalque não são contra a angústia, mas contra o sinal da angústia…”
Não estaríamos nós, sujeitos do inconsciente, neste tempo presente, a nos defendermos do sinal da angústia cuja castração ela porta? A depressão como “sinal” de que alguma perda estaria eminente e seu consequente luto? O objeto cambiável já não estaria conseguindo tamponar esse furo estrutural?
Questiono, também, o que estaria a nos acossar, no que diz respeito aos planos de saúde em que a demanda é crescente e o assujeitamento do analista às normas da instituição poderiam estar apontando para uma nova abordagem do social pela via do sujeito do inconsciente em sua singularidade?
Cabem a nós interrogações e a nos darmos conta de que “a especificação da intervenção do psicanalista não é sair do saber para mostrar seus limites, mas fazer com que esse limite seja portado pelo próprio saber.”
Saber não sem limites!
Bibliografia
– BITTENCOURT, S. Música: Naquela mesa, 1970.
– CRUGLAK, C. Clínica da Identificação. RJ: Cia de Freud, 2001.
– FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego (1921). In: Obras completas, v.XVIII, 1976.
– ________ Totem e tabu e outros trabalhos (1913-1914). In: Obras completas, v.XIII, s/d.
– LACAN, J. (1998a). O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. In: J. Escritos. RJ: Jorge Zahar.
– . (1962-1963) O Seminário, Livro 10: A angústia. RJ: Jorge Zahar. 2005
– . O Seminário, Livro 12: RSI: aula de 15/04/1975 (Inédito)
– . (1969-1963) O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. RJ: Jorge Zahar. 1992
– LEBRUM, J.P. Um mundo sem limites: ensaio para uma clínica do social. RJ: Editora Cia de Freud, 2004.
– MELMAM, Charles. O homem sem gravidade, gozar a qualquer preço. RJ: Editora Cia de Freud, 2008.