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Cecilia Oliveira[2]
“Se consigo criar um vazio, meu projeto foi um sucesso”. ( Kengo Kuma)
“Não há como ler as memória de meu pai sem ver nelas o reflexo dos cadernos do meu avô.” (Laub, 2011, p.132)
Neste texto, traçarei um paralelo entre um recorte do livro “Diário da Queda”, de Michel Laub, e uma experiência de análise. Importante ressaltar que não se trata aqui de bancar o “psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho”, como bem adverte Lacan (2003, p.200). Tomo o texto em sua vertente ficcional e recolho os elementos que me permitem pensar a respeito do que se transmite de uma geração a outra do indizível do desejo do Outro, assim como o que se pode fazer, contingencialmente, diante deste indizível numa análise.
Acompanhamos no livro o relato de fatos marcantes na história das três gerações sob a visão do narrador. Os capítulos são assim nomeados: “Algumas coisas que sei sobre meu avô”; “Algumas coisas que sei sobre o meu pai”; “Algumas coisas que sei sobre mim”. Há ainda os capítulos intermediários que são as “Notas” e os dois finais, “A queda” e “O diário”.
Ressalto, em minha leitura, o avô marcado pela experiência traumática do horror do Holocausto, a posição do pai de uma culpabilidade e, para o filho, personagem narrador, o relato de uma posição melancólica.
O personagem escreve um diário entremeado de memórias que lembram associações livres. A memória da participação do personagem na queda de um colega de sala, a relação com seu pai, as memórias do avô, suas relações amorosas e sua relação com o álcool.
O que esse texto pode nos instruir a respeito do que se passa de uma geração à outra? O que se transmite na continuidade geracional que tanto possibilita o acontecimento de uma vida como determina seus entraves, seus limites, suas fixações?
Na escrita do “Diário da Queda”, percebemos uma virada na posição do personagem em seu modo de conduzir sua vida. Ocorre uma retificação, possibilitando uma mudança em sua relação com a bebida e em relação ao desejo de ter um filho.
O que teria funcionado para este personagem como uma possibilidade de mudança, um reviramento em sua posição sintomática?
Jacques Lacan em 1961, em seu “Seminário sobre a Transferência” faz um apontamento importante a respeito da constituição do sujeito do desejo. Dirá que três gerações bastam para situar a composição do desejo em um sujeito. Não é necessário rememorar, numa recorrência perpétua, até o pai Adão (Lacan,1992, p.289).
O humano é marcado e mesmo determinado pelo desejo daqueles que o inserem no campo da linguagem e da fala. Desejo que se revela por traços significantes, referidos ao campo simbólico e restos não simbolizáveis, campo do indizível, impressos na carne do vivente. A constituição do sujeito do desejo implica na marca de uma hiância radical, posto que nada responde plenamente ao que é demandado ao falante.
Temos, então, o desejo do Outro representado pelo desejo dos pais que transmitem a seus filhos algo que remete ao irremediável do desejo. Algo falta radicalmente. Cada novo sujeito se constitui a partir dos significantes e dos objetos nos quais se oferta na tentativa de satisfazer o apetite do Outro pai/mãe desejante. É o que Lacan indica ao afirmar que o desejo se compõe entre marca significante e paixão do objeto parcial. O objeto é sempre parcial, posto que nada satisfaz plenamente o apetite do Outro.
O indizível do desejo do Outro coloca o humano numa condição trágica. Não é sem habitar a posição de puro objeto, lixo, resto do Outro, que o falante poderá advir como sujeito.
O holocausto nos remete ao horror de saber-se puro objeto lixo, resto da humanidade. Como o autor do diário afirma: “Auschwitz é… a maior tragédia de todos os séculos… e se Auschwitz é a tragédia que concentra em sua natureza todas essas outras tragédias não deixa de ser uma espécie de prova da inviabilidade da espécie humana em todos os tempos e lugares” (Laub, 2011, p.133).
O homem conseguiu trazer à realidade algo que remete ao que Laub nomeia como inviabilidade da experiência humana. Em que a experiência humana pode ser tomada como inviável sob a leitura da psicanálise? Talvez possamos dizer que a inviabilidade radical na constituição de um sujeito comparece quando o indizível do desejo do Outro não consegue se inscrever viabilizando uma via desejante para o falante. Podemos exemplificar essa radicalidade nos bebês natimortos e nos abortos espontâneos. No entanto, a inviabilidade da experiência humana sempre está presente em alguma medida e comparece nestes restos não simbolizáveis, nessas repetições nas gerações.
Uma observação – Auschwitz contém witz que, em alemão, significa piada, chiste. O chiste em psicanálise refere-se a algo inconsciente, algo que se presentifica e que, no entanto, não pode ser lido por aquele que emite e precisará que Outro lhe devolva. O chiste em questão, presente no nome do que comparece frequentemente como marca desta tragédia, pode remeter à posição de objeto de todo humano presente neste horror. Retorna no nome para que seja lido e jamais esquecido, convocando o humano a insistir na escrita de um modo civilizatório a cada vez renovado.
Vemos, então, que a configuração do desejo pode ser assim decomposta em três tempos. O que leva Lacan a afirmar que, para situar a composição do desejo num sujeito, três gerações bastam. Na primeira, a marca do significante, o que implica a destruição do ser. Na segunda, temos que, porque o sujeito é falante e marcado pela fala, por efeito da entrada na linguagem, engendra o objeto como rejeitado. O que resultará na terceira geração, que é propriamente a do sujeito do desejo.
Assim três gerações bastam para explorar a constituição do desejo. Ao reportar-se à geração anterior o falante recorta marcas significantes. Ao ler nestas marcas a presença do desejo do Outro, na geração anterior, aí se implica e interroga a posição do pai. Nesta segunda geração, a posição enigmática do desejo se desvela um pouco mais e denota a posição de objeto do falante. Posição de fixação de gozo de um sujeito, traços que se repetem silenciosamente nas gerações.
A leitura da posição de objeto do pai, objeto de uma repetição imposta na geração, pode possibilitar ao falante alguma nova escrita de sua posição sintomática.
É preciso matar o pai para aceder a uma posição de desejo. Marcado por um desejo Outro como condição de vida, dívida sempre a pagar, o infans oferta-se como objeto do amor do outro, entregando seu corpo em troca daquilo que ao outro falta. Amor ao pai, garantia de subsistência do pai por culpabilidade?
A fixação do falante numa posição, que chamamos posição de gozo, figura-se como um modo de se fazer amado, clamando o amor do Outro, pai, sustentando este Outro numa posição perversa como a posição do pai Totêmico. Paradoxalmente, é desta posição que pode experimentar-se como podendo faltar ao Outro, o que possibilita certa liberdade numa via desejante. A resistência se faz em função de uma adesividade à posição de gozo, quando o falante parece querer consistir um Outro perverso não revelando para si este lugar do Outro, esburacado, lugar vazio.
Para que o falante aceda à posição de desejo é necessário que, na constituição, se marque seu lugar como falta, muito embora, como bom neurótico, ande tentando recuperar aquilo que supostamente perdeu, numa insistência de locupletar o outro.
Remeter-se à terceira geração no percurso de uma análise pode possibilitar uma separação da compulsão à repetição instaurada na constituição do sujeito do desejo. Leitura das marcas e fixações de gozo do pai numa certa revivência do assassinato do pai, podendo não estar aí fixado numa resposta à perversão do pai.
Faço, assim, uma leitura do que ocorreu com nosso personagem. Recorto a frase do livro: “Não há como ler as memórias de meu pai sem ver nelas o reflexo dos cadernos do meu avô” (p. 132). Trata-se, aqui, do personagem que lê nas memórias do pai o que fica escrito do seu avô. Leitura que pôde permitir certo deslocamento e outra escrita de sua posição sintomática.
Nas memórias do pai, suas marcas significantes, algo da posição de seu submetimento ao avô vislumbra-se como desejo do Outro, desejo enigmático, indizível, em que se coloca o campo de uma possível invenção, um fazer novo aí.
O que são as repetições nas gerações? A repetição no campo da psicanálise refere-se à repetição significante e também à repetição do traço diferencial, da marca de singularidade de um falante. Uma singularidade que comparece, com mais frequência de modo culposo, ou seja, numa fixação a uma posição que chamamos posição de gozo, na qual o sujeito se supõe amado pelo Outro. O destacamento do sujeito da repetição sintomática da série familiar implicará na anuência de um certo assassinato do Outro ao não mais repetir uma posição de objeto que supostamente poderia satisfazer o Outro.
Acompanhamos na clínica esses casos.
Acesso às memórias do pai… Um paciente traz em sua história um pai que sobrevive à nomeação de seis irmão, todos com mesmo nome, antes de seu nascimento. Sempre se insistia no mesmo nome. Este é o que vinga. Carregando o automatismo de repetição que se manifesta por uma impotência, este paciente faz cair por terra tudo o que poderia vir como efeito de seu nome. Se o pai vinga com o nome marcado por seis mortes, na geração seguinte estas mortes se revelam no real. Um dos filhos porta uma doença grave que o impede de fazer uso de seu nome próprio. Esta repetição insana, desejo de morte, leva mesmo o pai a impedir este filho de dar os passos que poderia. O pai não consegue investir no filho que é nomeado com seu nome, que repete a marca do desejo do Outro.
A memória da história do pai, a presença do desejo do Outro em sua história, a leitura dessa repetição na geração no percurso da análise deste paciente pôde vigorar como uma margem de liberdade. Possibilitou certa separação da compulsão à repetição instaurada na constituição do sujeito do desejo, rompendo com certo traçado imposto transmitido na repetição fundante do desejo nas gerações, viabilizando uma nova leitura e insistência em uma escrita de sua posição desejante,
É o que podemos ler também na obra sobre a queda. Num movimento de leitura dos significantes herdados e das fixações na geração anterior o personagem, deslocando-se de uma posição melancólica, permite-se um passo a mais, um movimento a mais.
Assim a “Queda” presente no título do livro de Laub me leva a articular a queda que o sujeito experimenta, queda do pedestal de amado, gozado, sofredor, quando de uma passagem de aprisionamento numa posição de gozo a um destacamento da repetição na série e uma separação da imposição de uma perversão do pai.
Referências:
LACAN, Jacques. A Transferência. In: Livro 8. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, Jacques. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. Em Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das letras, 2011.
[1] Texto apresentado na XIV Ciranda de Psicanálise e Arte. O Inumano: Reflexões sobre o Mal-Estar na Cultura. 14,15 e 16 de setembro de 2017. Organização: Escola Lacaniana de Psicanálise- ELP- RJ.
[2] Psicanalista membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, coordena o Fórum Clínico da Infância e Adolescência da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, Mestre em Psicologia pela UFES e Diretora de Escola de ensino regular e de educação especial.