Escola Lacaniana

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Psicanaliseonline: uma experiência ou um saber?

Por Maria Teresa Melloni

Analista Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise-RJ, mestre em História da Ciência da Saúde – COC/Fiocruz, professora de Fundamentos de Psicanálise no IBMR, autora dos livros: A perda d’Ele em Mim, um trabalho de luto e Rio de Janeiro: um psicanálise possível.

Introdução

Preparando-me para transmitir a vocês minha experiência com os desafios do tema dessa mesa: Tecnologia no setting analítico, já me surpreendi com o significante setting. Que lugar é esse, sobre o qual me puseram a falar? To set.

Em Função e campo da fala e da linguagem, Lacan diz: “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade da sua época”. (1998, p. 322)

Essa citação me faz questionar desde a formação do psicanalista, no que se refere ao funcionamento de uma Escola, até a sua prática.

Uma Escola que se propõe a formação de psicanalistas não deve se pautar pelo saber já sabido, pelo estabelecido, pelo hábito.

“O hábito ama o monge, porque é por isso que eles são apenas um”. (Lacan, 1975, p. 14)

Mas o analista, na sua formação, tem que abrir mão do Um, pois não veste hábito! Pelo contrário, o analista está nu, ele empresta a sua pessoa para ser vestido pela transferência. Assim, ele não faz grupo, não faz associação, nem universidade, não são todos iguais perante a lei.

Se a expansão da psicanálise para ‘novos mundos’ é importante, afinal é preciso que haja novas gerações de psicanalistas para que ela siga existindo. Por isso, o funcionamento das escolas de formação e seus dispositivos precisam rever seus fundamentos, abrindo mão de modelos tradicionais ou retrógrados.

Mas, eu deveria que falar de tecnologia no set!

A questão que me surge é qual funcionamento possível (o set) de uma escola, que garante condições para formar psicanalistas capazes de irem além do discurso dominante, dos estatutos de navegação, afastarem-se da tradição das rotas do comércio retrógrado dos settings e se lançarem em outros mares? Como manter o rigor da transmissão da psicanálise, como recomendava Freud e ainda estar à altura de nosso tempo, como preconizava Lacan?

Diante disso, cabe então a pergunta: enquanto analistas, que impasses e que saídas nosso tempo nos impõe diante de novos “desvios” (seriam desvios?)a que a psicanálise está submetida, sobretudo a partir da perspectiva neoliberal e da potencialização das redes sociais? Como sustentar tais desvios, tomando-os como possibilidades e não como impedimentos?

Mas o que estou fazendo aqui, se não sou da nova geração, nem de novos mundos?

Será que estou aqui como desviante?

Desviar é preciso

Foi então que me deparei com duas recentes publicações nos jornais!

  1. Jovem mineira de 27 anos, portadora de doença incurável, sofre desde os 16 anos com dores crônicas e intensas, pede ajuda pra realizar eutanásia na Suíça. Suicídio assistido, desejo de pôr fim a vida.
  2. A fundadora da empresa Bio Viva se tornou a primeiro paciente tratada com uma terapia genética para reverter o envelhecimento. O experimento, através de ação na composição do DNA, atrasou o relógio biológico da paciente em 20 anos. (Journal of Regenerative Biology and Medicine, abril 1922).
  3. E por fim, fui impactada pelo filme de Denys Arcand, Testamento, que denuncia o cinismo e a hipocrisia do politicamente correto e da moralidade contemporânea.

Mesmo com alguma intimidade com dores crônicas, relógio biológico e instituições moralistas da modernidade, me surpreendi com o avanço da nossa civilização sobre o envelhecimento, a morte e as diferenças culturais.

Estaríamos em um nível de civilização que permite nos livrarmos das dores crônicas? Adiar a morte? E moralizar a história e a arte?

Para matarmos uns aos outros, até para eliminarmos gerações futuras, já estamos bem desenvolvidos, vide o aquecimento global.

Lembro Freud em 1930, ao pesquisar sobre o Mal-estar na Civilização, ele concluiu: “Atualmente os seres humanos atingiram tal controle sobre a natureza que não lhes é difícil recorrem a eles para exterminar até o último homem” (Freud, 2006, p. 79)

Esses três recortes falam de diferentes relações do sujeito com o impossível de controlar, instituir, moralizar.

Como sabemos, a morte e suas diversas expressões na cultura, a fragilidade e a perecidade do corpo, o desamparo diante das forças da natureza e as impossíveis e vulneráveis relações de complementaridade com nossos semelhantes, que chamamos de amor, são o motor do processo civilizatório, seu desenvolvimento, suas invenções e seus recursos.

Desde Freud, a morte e o sexo aparecem ligadas à primeira mitose, na origem do gameta. Em Lacan, ambas estão inscritas no Real, impossível de ser significantizável, que não cessa de não se inscrever. Por isso, o sexual e a morte, enquanto causa, estão na origem do sujeito falante, na sua divisão.

Assim também, o não dito do inconsciente é a rota da direção do tratamento psicanalítico e o não-sabido deve ser o norte de uma escola de formação de analistas.

Ainda impactada com o avanço da ciência e da moral, encontro o vodcast Dois Pontos, com o psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira, que equipara a ação dos algoritmos sobre o sujeito, suas tendências, suas preferências, a uma demonstração do inconsciente de Lacan. Será? O inconsciente de Lacan é da ordem do Real, nas formações do nó borromeano RSI.

Como vêm, a participação nesta mesa só me trouxe questões! Será uma decepção?

Então vou falar de Inteligência Artificial!

É fato que hoje já sofremos a invasão da IA nos nossos consultórios, como também nas formações do inconsciente. Sim, ela é capaz de enunciar com a minha própria voz, algo que eu mesmo, nunca houvera tomado conhecimento). Assim como um resto diurno invadindo sorrateiramente o conteúdo latente de um sonho.

Mas isto quer dizer o fim da clínica psicanalítica?

No texto Anotações sobre Enunciado (dito) e Enunciação (dizer), Wadson Damasceno diz: “O enunciado é o que se diz, a enunciação é o que se disse sem querer, na escuta do que se diz. Na IA falta um sujeito que possa sustentar esse ‘sem querer’”, (Damasceno, Wadson. 2024). Ou seja, esse não dito do desejo.

Na comunicação da IA, a mensagem se dirige a um sistema de informações universais, que responde do lugar do saber-sabido e do acúmulo do saber (informação). Ao contrário do que se passa numa análise, onde o analista se furta a esse lugar, devolvendo o vazio da enunciação, berço para que o analisante deposite aí seu produto, um saber sobre a verdade do sujeito apenso na linguagem, entre dois significantes.

Uma psicanálise se conduzida pela IA, desconsideraria a recomendação freudiana no texto Conselhos aos jovens médicos: “As técnicas apresentadas são as únicas adequadas à minha personalidade. Outro analista deve adotar medidas diferentes”. E concluiu com as seguintes advertências: “não ensinar, não dirigir, não apelar para o intelecto “. (Freud, 1912, p. 149)

Hoje é fato que a tecnologia, as telas, as mídias sociais, as plataformas de sessões on-line estão incluídas na condução do tratamento!

Até o evento da pandemia, que irrompeu das profundezas do mais íntimo do orgânico, para desestabilizar o pouco de cultura que abrigava a prática psicanalítica do início do século XXI, qualquer fator estranho a tradição freudiana, era denunciado como uma prática desviante. Mas um vírus pôs em cheque toda tradição da comunicação, como também da prática psicanalítica.

Mas seria a prática da psicanálise, uma questão adstrita apenas à área da comunicação? Alguns psicanalistas se tornaram mestres nas técnicas da comunicação!

Se lemos Freud, podemos afirmar que não!

 

Psicanaliseonline

Com esse desafio, vamos tentar aqui, avançar um pouco mais sobre a prática do psicanalista quando a tecnologia não só chega aos nossos consultórios, como também participam das formações do inconsciente, a partir das seguintes questões:

– qual o papel da realidade imaginária na condução de uma análise?

  • o que é e qual a função da presença real do analista?
  • Há Real sem a nodulação RSI?

Freud disse que uma análise não é possível in abssentia ou in effigie, no entanto, como já mencionamos, ele adverte que as técnicas que ele apresenta são as que ele usou. Que cada analista deve adotar medidas diferentes. Há que inventar, portanto!

Assim como o registro do imaginário tem papel preponderante na nodulação, oferecendo alguma consistência ao Real no Simbólico, a transferência imaginária é condição para o estabelecimento da trabalho de uma análise.

Entretanto, o aspecto imaginário da transferência, tomando a figura do analista como outro especular na cena fantasmática e destinando a este as tendências da vida erótica, interferem no trabalho da associação livre. Portanto, seja na presença física ou na virtual, há que reduzir esse agalma com que o paciente recobre o analista, ou seja, a transferência imaginária deverá ceder lugar a entrada em análise de fato.

Na condução de uma psicanálise, a função da associação livre, chamada regra de ouro, é dar preponderância à fala em lugar do pensamento. Sabemos porém que tanto na presença física como na imagem virtual, a pulsão escópica estará sempre a favor da demanda de amor, seja narcísico, seja objetal. Por isso, a transferência, tanto no atendimento presencial como no virtual, é ao mesmo tempo, aquilo que move e o que resiste a uma análise. O desafio para o analista será sempre se desvencilhar das garras da demanda de amor.

É a presença real do analista, colocando-se como semblant de objeto a, que pode quebrar o sentido que o deslizamento metonímico do enunciado produz, apontando para efeitos de metáfora, que a enunciação deixa escapar. Isto é, o Real da presença do analista, deve furar a fala do analisante de forma a levá-lo a se surpreender com o Real que comparece na escuta. A surpresa é condição do inconsciente.

Assim se dá a passagem da transferência imaginária para a transferência simbólica, que toma o analista, no campo da fala e da linguagem, lugar do inconsciente, lugar do Outro. Por isso, Lacan diz no Seminário 11, que a transferência é a atualização da realidade do inconsciente.

Mas o que entendemos como presença real? É presença física?

O encontro permeado por uma tela de computador é impeditivo às operações verificadas no registro do que ocorre na tela fantasmática? Penso que não.

A tela da fantasia, como uma lente, se interpõe entre o sujeito e o mundo  – worstellung raepresentanz, significância, fantasia – vela e revela algo: o furo do olhar.

Essas linhas traçadas na tela da fantasia se atualizam entre os olhares, também na tela do celular ou do computador.

O visível não descarta o invisível. O olhar, seja na modalidade presencial ou virtual, recorta o invisível.

Assim como Freud colocou os pacientes a deitar, para desviar o olhar, cabe a nós criarmos formas de evitar a preponderância da transferência imaginária.

No limite da visão, o olhar se manifestará.

O ponto cego do olho, vazio da angústia sobre o impossível da visão, corresponde ao buraco da pulsão. Considerando a reversibilidade pulsional, esse mesmo ponto em que o sujeito olha, é por onde ele se perde como objeto, fonte de horror frente ao olhar do Outro.

Sempre haverá um ponto cego entre ser visto no olhar do Outro e o se dar a ver, seja na tela do celular, seja no olho ou na fantasia.

Haverá sempre algo de real no atendimento on-line que é o ao vivo da sessão.

Para terminar, cito Pedro Nava, em uma entrevista a Ignácio de Loyola Brandão: “a experiência é um farol voltado para traz.

Esse é o pouco que posso vislumbrar na experiência deste tempo que ainda está passando. Há que esperar para depois olhar pra traz.

 

Bibliografia

Damasceno, Wadson. Anotações sobre Enunciado (dito) e Enunciação (dizer). Texto inédito, 2024)

FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem na psicanálise 1912, Obras Completas vol. XII, Rio de Janeiro, Imago, 2006.

FREUD, S. O mal-estar da Civilização (1930). In O futuro de uma ilusão, O mal-estar na Civilização e outros trabalhos, Obras Completas, vol. XVIII, Rio de Janeiro, Imago, 2006.

LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1975.

LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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