Por Cláudia Blois
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras
Do cosmopolitismo das moneras…
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as
substâncias!” (Anjos, 1912)
Alguns famosos autores literários se identificam com a escrita apoética. Uma escrita apoética é aquela ao contrário da poesia, desprovida de poesia, que não segue ou que contraria o espírito ou as normas poéticas. O tema da mesa na qual me apresento com os meus pares é “memória e esquecimento”. A memória e o esquecimento possuem valor poético ou apoético? Ou seria uma junção de ambos?
Nosso interesse maior e que me leva a esse texto é um dos mecanismos de defesa do inconsciente, o recalcamento. Pretendo dar destaque a esse item, apontando para os destinos do recalcado, mais precisamente do recalque originário. É fato que nossos mais antigos desejos permanecem recalcados no inconsciente, pois sempre esbarramos em seus rebentos, os sintomas – uma versão do sofrimento no sujeito.
Sabemos que em nossa vida cotidiana estamos sempre sofrendo desse mecanismo do recalcamento e que, numa normalidade estranha, lembramos do que queremos esquecer e esquecemos do que queremos lembrar.
Em nossa constituição como sujeitos, o esquecimento e o traço estrutural se formam em uma só batida, fundadora da nossa constituição, ou seja, ‘’é preciso esquecer o significante originário, e esse esquecimento se faz por meio de duas ações indicadas por Freud em seu texto sobre a negação: a expulsão e a afirmação. “A expulsão é o
movimento pelo qual se dá o esquecimento, mas que não é aquele característico da foraclusão” (Didier-Weill, 2015, p. 41).
A foraclusão é um não que não conhece o sim e a expulsão é um não que conhece o sim da afirmação, tornando-se inesquecível. Esse esquecimento no qual dizemos sim, se torna inesquecível e nos obriga a passar a falar. Significa o grande impacto da vida natural do homem, um enfrentamento inicial que se apresenta na primeira infância,
antes da linguagem, em sua condição mais primitiva.
Nesse aprofundamento fundador do sujeito, nos cercam algumas histórias revisitadas por Freud, o criador da psicanálise. Para detalhar essa investigação desafiadora, irei explorar o caminho percorrido por Freud com o pai da Horda até chegar a Lacan com a metáfora paterna, nome do pai/ nomes do pai e significante.
Quanto ao totem
“Deveríamos supor que o desejo de matar está de fato presente no inconsciente e que nem os tabus nem as proibições morais são psicologicamente supérfluos, ao contrário, eles se explicam e se justificam pela existência de uma atitude ambivalente em relação ao impulso de matar” (Azevedo, 2001, p. 30).
Quando os filhos matam e comem a carne do pai, na cerimônia de Totem e Tabu acreditam na tentativa de internalizar sua força. Como isso não acontece, a lei se faz presente coibindo o desejo do incesto. Fantasias sobre a eternidade que somente os mitos trazem ao homem mortal, por isso Freud utiliza em sua construção teórica alguns mitos, para dar conta de nossa origem.
“Totem e tabu são nomes alheios, instrumentos de articulação do passado e do presente, do representável e do irrepresentável. No idioma freudiano, esse par pode ser caracterizado como construções que têm por fim revelar uma Verdade Histórica, termo empregado por Freud para designar a erupção no presente de material psíquico do passado que esteve até então recalcado.’’ (Azevedo, 2001, p. 30)
No campo de uma análise, o analista é o que viabiliza a emergência desses conteúdos recalcados, “o caminho iniciado pela construção do analista deve terminar na recordação do paciente”, observa Freud (1975, p. 265). A recordação do material recalcado – da Verdade Histórica – é uma noção elaborada mais esparsamente, já que uma ideia ao trazer o retorno do recalcado deve ser chamada de “verdade”.
Trazendo à baila o discurso literário na forma de poesia em uma confluência com o discurso analítico, incluímos o privilégio do figurativo sobre o literal, do simbólico sobre o material. O Pai Totêmico é sua “isca de falsidade” com a qual será revelada sua estrutura implícita, a saber, a lei primordial que funda a vida psíquica, o inconsciente. Uma “carpa de verdade’’1 para a psicanálise, ou seja, uma verdade que surge na e pela linguagem.
Freud nos remete ao conflito da lei simbólica, como uma lei desejável. É desse conflito que surgem os dois tabus fundamentais do totemismo – parricídio e incesto – aos quais correspondem os dois desejos recalcados no Complexo de Édipo. A intensificação dessa teoria se encontra em Moisés e o monoteísmo, quando Freud defende a hipótese de que existe o homem Moisés e a lenda do Homem Moisés, e assim a lenda descobre o 1 Carpa é um tipo de peixe e, também, conotativamente, no sentido de “fala”, “conversa’’ (Azevedo, 2001, p. 32). Ser pego literalmente pela boca no ato da fala (carpa) e na escrita, ser pego na letra dessa fala com o intuito de dar palavras a esse simbolismo metafórico. Homem. Neste dualismo, o intuito de Freud é dissociar um Moisés do outro e se vê
levado a reescrever a história e justificar a existência de cada um.
Quanto à metáfora
O pai primevo de Freud se insere na conjunção do personagem com a figura e, sobretudo, realça a figura de linguagem – a metáfora. O sentido figurado da metáfora é o que carrega a presença e a ausência; é uma adição, um acréscimo, e nessa mais-valia se projeta o “nome alheio”, um nome além do nomeado.
No advento da metáfora do pai, a “isca de falsidade” fisga a “carpa da verdade” a respeito do pai metafórico como progenitor e engendra a origem das neuroses.
O retorno de Lacan a Freud sobre a metáfora paterna busca o significante, priorizando o significado, enfatiza como este deve estar advertido da qualidade polissêmica e inefável do significante, ou seja, a importância da linguagem: “é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas” (Lacan, 1998, p. 277). O fato de a linguagem tocar o registro da poética é ainda outro sinal de que ela resiste a apropriações por parte de discursos rígidos. Há uma ressonância nos textos de Lacan, uma forma de ler que pode ser escutada do dito, do significante.
E é a partir daí que Lacan constroi o conceito Nome do Pai (NP); a linguagem não sendo apenas uma ordem e sim a ordem das ordens. E quem fala? A coisa freudiana se engaja onde Lacan anuncia: “eu a verdade falo”. Essa personificação da verdade se dá em uma seção intitulada “a coisa fala de si mesma” (Lacan, 1998, p. 410). A coisa é o isso (o id), que se estabelece no princípio do prazer, que busca alcançar o objeto perdido. Por isso a coisa fala, o isso que fala não é uma entidade, mas um espaço relacional. Diz a verdade, mesmo que não normalmente, ou seja, “a verdade do inconsciente deve ser situada nas entrelinhas” (Idem, p. 437).
Essas entrelinhas são caras à poesia, pois na intenção não diretamente expressa na mensagem é que se encontra o princípio da realidade do psiquismo, onde a fantasia se insere. A tensão e distensão para resgatar o objeto perdido se atualizam no movimento metonímico. Esse encontro acidental com a verdade a revela nua na estrutura da
linguagem que fragmenta qualquer um que a espreite e espie.
Quanto ao psicanalista
É preciso que o psicanalista faça uma distinção entre significante e significado. Tais redes não se sobrepõem; são as bases que distinguem a linguagem do signo. E o que é o signo senão o que é constituído pela relação entre significante e significado. Nas representações gráficas, há uma oposição colocada por uma barra, e esta barra impede a unificação dos dois termos, o signo declina e a primazia do significante é estabelecida como um traço distintivo da linguagem.
O significante desliza nas associações, tendo como modo de funcionamento a metonímia e a metáfora. O coexistir do significante e a transformação do significado junto com a significação, a qual, conforme formulada na Coisa Freudiana é um fenômeno que ocorre ao longo do eixo horizontal do significante. A significação é o
produto final e engloba os dois eixos que formam a estrutura da linguagem, o eixo metonímia e a metáfora. O produto dessa significação é o sujeito em sua subjetividade. Essa significação mais profunda é o que chamamos de “castração simbólica”. O desejo sempre se constitui sob o signo da mediação; é o desejo de fazer com que seu próprio desejo seja reconhecido.
O psicanalista atento a esse sujeito que está assujeitado às leis do significante suscita surgir o sujeito desejante. Essa condição estrutural, onde o Nome do Pai interpõe a separação, é que seria formulada em termos da inscrição da criança na linguagem e que se atualiza em uma análise.
Eu e a escrita apoética
Como ilustração dessa minha jornada na Poesia como Metáfora Paterna cito Augusto dos Anjos. Este poeta lança mão de um vocabulário técnico, científico e filosófico, floreia seus poemas com peças apoéticas… tem uma visão cósmica, se respalda no sincretismo literário, enobrece a individualidade da pessoa humana.
O Eu é aquele que fala ou serve para se referir a si mesmo quando gramaticalmente é o sujeito da oração. Em seus versos ele traz o lamento da castração com que todo sujeito se depara e geralmente nega. Metaforiza em verso; expõe sua ferida narcísica… que sangra. Mostra a castração no pedaço de carne – é seu recalque originário, cravado em suas entranhas, onde ele se põe a trabalhar. Augusto dos Anjos, nasceu em 1884 e viveu até os 30 anos, morreu de pneumonia, tendo seu livro Eu publicado em 1922. Pelo rigor de sua forma, foi um dos poetas mais lidos do Brasil. Os poemas de Augusto dos Anjos me trouxeram a seguinte questão: O EU é o fantasma do sujeito do inconsciente, vagando em suas elucubrações para encontrar seu objeto perdido?
Sua poesia apoética traz o que de mais determinante, forte e intenso se realiza na constituição de um sujeito, seria seu SINTHOMA? O eu que não quer fazer o mal, introduz o bem como secundário, essa concepção dualista, a existência de duas instâncias desprovidas de um ponto em comum, mas que podem originar-se de um mesmo lugar. No inconsciente nós estamos no simbólico, no sujeito metaforizado, porque o sujeito é o desejo ligado à falta, o sujeito metonímico, a falta do ser. Augusto dos Anjos nos sensibiliza com a sua escrita apoética porque traz ao nível do horror, do trauma, o que escrever e viver a partir daí. Seus fantasmas foram expostos intensamente. Eu diria que alguns sujeitos vivem em verdadeiras moradias mal assombradas e que mesmo não sendo o senhor da sua própria casa, visitam esse lugar do inconsciente que é da ordem do horror, mas que também funda o sujeito, para que ele não afunde.
A memória e o esquecimento, em Augusto dos Anjos, unificam-se em um imperativo metafórico da vida sobre a morte, pois ambos os conceitos representam os limites extremos da existência humana. Ele era o próprio eu, na tentativa, através da escrita, de nomear o sujeito do inconsciente, usando a poesia como metáfora.
Freud nos revela o amálgama pulsional entre o belo e o feio, a morte e o amor, entre eros e pulsão de morte enraizando o erotismo na própria morte. Devido a este fato, este amálgama pulsional é responsável pela metamorfose do Horrível em Belo.Termino meu texto em um apelo ao outro:
POR MAIS POESIA EM UM MUNDO INSONE!
Referências
ANJOS, Augusto dos. Eu. Ceará: Armazém da Cultura, 2012.
AZEVEDO, Vicentini Ana (2001). A metáfora paterna na psicanálise e na literatura. São Paulo: Edunb, 2001.
DIDIER- WEILL, Alain (2015). Os nomes do Pai. Rio de Janeiro: Contra capa, 2015.
FREUD, Sigmund (1934-38/1975). “Moisés e o monoteísmo”. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, v. 23. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p.13-161.
LACAN, Jacques (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1988.
FREUD, Sigmund (1912-13) ‘’Totem e Tabu”. In: Ediçao standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. 13. Rio de Janeiro: imago, 1975.