Plínio Leite Jr
Psicanalista – Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise RJ
Vingança
Lupicínio Rodrigues
Eu gostei tanto,
Tanto,
Quando me contaram
Que lhe encontraram bebendo e chorando
Na mesa de um bar
E que quando os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz
Não lhe deixou falar.
Eu gostei tanto,
Tanto,
Quando me contaram
Que tive mesmo que fazer esforço
Pra ninguém notar.
O remorso talvez seja a causa do seu desespero
Ela deve estar bem consciente do que praticou
Me fazer passar esta vergonha com um companheiro
E a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou.
Mas enquanto houver força em meu peito
Eu não quero mais nada,
Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar
Você há de rolar como pedras que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar.
Prólogo
Entre muitas outras escolhi esta música, para introduzir este trabalho, por ouvi-la como um fragmento da dor de amor, um fragmento de vida.
Propor falar da subjetividade amorosa a partir do cancioneiro popular traz, implícita, a suposição de que as letras das canções configurariam um campo muito peculiar de saber. Um saber, informal, cotidianamente apreendido à revelia dos trâmites acadêmicos, via o fluxo melódico que se nos infiltra nos mais diversos espaços de existência, do mais intimo e inumano ao mais compartilhado. Em assim sendo, enquanto saber materializado em texto, que suposições subjetivas estariam a atravessar as letras das canções populares que falam sobre o amor? Observamos que a M.P.B., na década de cinqüenta, do século passado, caracteriza-se por ser predominantemente poética, ou seja, aquilo que é enunciado configura uma mensagem que pretende expressar um estado subjetivo, um sentimento. Contudo, para além da preocupação expressiva, haveria uma preocupação formal: não se trata apenas de “o que” dizer, mas também “como dizer”, configurando um trabalho de criação de uma forma de expressão, Esta forma de expressão, por sua vez, traduzir-se-ia em uma linguagem mais abstrata acarretando o recurso mais freqüente a metaforização.
ACREDOCE/SOFRENGANO
A M.P.B., da década de cinqüenta, nos remete para além, certamente, do prazer, colocando o sujeito frente à morte, castração maior. Não se trata de perdas, mas do movimento constante, por ser pulsional, da busca do encontro impossível. Daí, podermos afirmar, que em nome do amor, a M.P.B., cantou a paixão,
Viver uma paixão? É demais!
Estar apaixonado? É coisa de louco!
Possivelmente, em algum momento, já ouvimos ou ouviremos algo semelhante. Estas interrogações com suas respostas exclamativas nos falam o quanto a paixão é desmedida, sempre transborda. É insensata, ignora a razão e o bom senso. Aproximá-la do destempero ou equipara-la à desrazão são clichês, mas é desse modo que ela se apresenta na experiência da psicanálise. Uma análise não se contrapõe ao sentimento, não visa disciplinar, pelo saber, aquilo que não tem remédio nem nunca terá. O que não significa que vá se resignar a este sentimento. A análise joga o jogo da paixão, que inclui um tanto de ignorância irredutível, até levá-la a um novo destino.O apaixonado sofre, pois a paixão dói. Uma dor que em si mesma não tem nenhum sentido. Ela está ali feita de carne ou de pedra. Temos que tomá-la como a expressão de outra coisa, destacá-la do imaginário que a recobre e levá-la a ser simbolizada. Atribuir um valor simbólico a uma dor que é, em si, puro real, emoção brutal, hostil e estranha é o que a torna suportável. A paixão se mantém como lugar de uma insensatez, ela não é a mesma de todo dia e nem por isso menos real. A paixão é movida pela promessa de felicidade através do encontro com a unidade perdida.O sujeito apaixonado supervaloriza o ser amado como parte idealizada de si, contudo isto apenas contribui para o sofrimento, visto que o amado jamais irá corresponder ao ideal projetado. O amante é movido pelo desejo de capturar o amado para si como objeto, sustentando a ilusão de que o amado tem o que lhe falta.
O inconsciente ao presentificar-se, via queixa do apaixonado, surpreende trazendo para boca de cena, como se acontecimento novo fosse, a castração. E o sujeito, na sua manifestação neurótica, recorre à denegação que comparece travestida na fantasia da paixão. Enquanto denegação da castração – não há como de dois fazer um – a paixão busca encobrir o desconhecimento que há em relação ao desejo que, constante, insiste. A paixão, sempre variável, porta a experiência passional que se dá a conhecer em estados abruptos, por vezes violentos com movimentos finitos e temporários.
O inconsciente se coloca fora do tempo. Daí, deste, só temos acesso a sua lógica, que implica um só depois, que o neurótico traduz por tarde demais, instaurando uma pregnância imaginária que cola passado com futuro ausentificando o presente. Desta tradução resta apenas a nostalgia do que foi ou a ameaça do que virá. O único presente é o aprisionamento numa imagem primeira, congelada especularmente. Nesta vã tentativa denegatória da castração, o neurótico engana-se com a ilusão de nada perder – Acredoce/sofrengano – Simbólico, o tempo não para de se escrever e, enlaçado na teia da dor da paixão, o neurótico julga-se herói na luta contra seu invencível inimigo – o tempo. Assim, segue tropeçando no deslizamento do seu desconhecido desejo. A paixão faz com que o sujeito se encontre raptado por sua própria imagem, suposta miragem do Outro. Ele é apaixonado pelo espelhado, sua única imagem e cárcere.
Aprisionado pela presença- imagem, o apaixonado vive unicamente na dependência de um outro, pois que cego – sem ser Tirésias – não aceita que seja Outro. Narcisicamente solitário grita para todos por um suposto desejo que, por ser suposto, nada cobra, pois nada oferece. Resta uma máscara cristalizada, com aparentes movimentos, mas petrificada numa imagem que o faz alienar-se num outro também petrificado. No engano da cura, sua ferida narcísica, mais se infecciona ao tentar traduzir o impossível, como se proibido fosse.
Na paixão, o sujeito coloca o amado acima do amor, numa pregnancia imaginária e, não entendendo o de que se trata, desloca para o encontro dos corpos a busca da satisfação, sempre faltosa, do desejo. Assim, segue interditando o amor.
Fascinado pelo que devora, busca a cada momento, começar outra vez ao invés de começar de novo – o que implicaria uma saída – sua busca é de um tempo perdido e sua demanda o colamento com o objeto admirado, supostamente amado.
” Volta/ Vem viver outra vez ao meu lado/ pois não posso dormir sem teus braços/ pois meu corpo está acostumado/ volta!”
Ao sonhar com a fascinação de algo que teria sido, na ânsia de que não se modifique, odeia o desejo que pode puxar o tapete e remeter- lhe a outro objeto, pois isto o fará ver que seu objeto adorado pode estar numa viagem das “Mil e Uma Noites”.
Trágico o apaixonado não consegue viver a comédia e da razão nada quer saber, dimensionando cada acontecimento de forma que seu objeto de desejo fique cego, para sua total cegueira alienante.
Permitimo- nos, portanto, supor que na paixão há o amor sofrido, fascinação imaginária. Dimensão trágica do amor – não nomeavel, ou nomeavel apenas metaforicamente- que implica também uma espécie de alienação mortal ao se aproximar do que situamos como da ordem de um narcisismo,diríamos, trágico. O amor enquanto dom ativo está ausentificado, sendo a sublimação a via que a paixão amorosa pode tomar como alternativa possível para o beco sem saída que é a paixão em seu estado narcísico.
“Se insistem para que eu diga porque eu o amava, sinto que isso só pode exprimir-se respondendo:
Porque era ele;
Porque era eu ”
Montaigne
(logo após a morte de La Boétie, com quem viveu um relacionamento apaixonado e extremamente tumultuado)
Nada mais inumano que nossos afetos
Bibliografia
Freud,S. — A Psicopatologia da Vida Cotidiana ( SEB – Vol.VI, Imago, RJ, 1976)
———- Observações Sobre o Amor Transferêncial ( SEB – Vol. XII, Imago, RJ 1976)
———-Sobre o Narcisismo – Uma Introdução ( SEB – VOLXIV , Imago, RJ, 1976)
———-Inibição,Sintoma e Angustia (SEB – Vol XX , Imago, Rj, 1976)
———–Mal – estar na cultura – ( SEB – VolXX, Imago, RJ, 1976)
Lacan, J. -Sem. Livro I – Os Escritos Técnicos de Freud – ( Zahar edt, Rj, 1979)
Lacan, J. Sem. Livro 11 Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise ( Zahar Edt, RJ,1979
———–Sem. Livro 20 Mais, Ainda ( Zahar Edt. ,RJ, 1982)
———–Sem. Livro 8 A Transferência ( Zahar edt, RJ, 1992)
———Da Psicanálise e sua relação com a realidade , in Outros Escritos, Jorge Zahar Edt, Rj
Lyotard, Jeab-François – O Inumano – Considerações Sobre o Tempo Edt Estampa, Lisboa,
Nasio, Juan-David – O livro da Dor e do Amor, Jprge Zahar Edt, Rj,2997
Vieira, Marcus André – A Paixão Jorge Zahar Edt, Rj 2012
————————-A Ética da Paixão , Jorge Zahar Edt, Rj 2001