Maria Teresa Saraiva Melloni
Desde os idos de 1970, me vi às voltas com as agruras de levar o texto de Freud a jovens graduandos em psicologia, como também trazê-lo para minha iniciante prática clínica.
As traduções disponíveis na época não eram adequadas, até pela diferença entre as línguas portuguesa e brasileira, ao mesmo tempo em que se clamava por novas traduções que respeitassem o vocabulário próprio que Freud usara para definir os conceitos que criou. A tradução é fundamental na transmissão, pois, mesmo que se tenha acesso ao original, se é com significantes que operamos, é necessário traduzi-los, por vezes até mesmo forjá-los em nossa própria língua, como ferramentas de trabalho que são.
Foi nessa época que o debate em torno da tradução da obra de Freud transbordou para além do campo dos especialistas ganhando destaque na comunidade psicanalítica. As críticas centravam-se fundamentalmente nos termos psicanalíticos adotados pela prestigiosa tradução inglesa de James Strachey, a Standard edition of Sigmund Freud complete psychanalytical works, que havia estabelecido um padrão terminológico internacional. Discutia-se uma possível revisão dos termos “técnicos” psicanalíticos, cuja tradução passou a ser considerada por muitos como demasiado medicalizada e biologizante e afastada da linguagem original freudiana, mais ligada à experiência cotidiana e afetiva.
A tradução brasileira, a Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud passou por um processo análogo. Além de ter se tornado desatualizada ao português fluente, padeceu do defeito de ter sido traduzida do inglês. Uma nova tradução, a partir do alemão e conforme critérios mais atuais, se fazia necessária. Entretanto, mesmo buscando incorporar esses avanços, é provável que nenhuma das novas traduções, incluindo a nossa nova edição brasileira, sobreviva incólume a um atual crivo crítico.
Derrida nos alerta de uma de uma tradição logocêntrica da cultura ocidental que crê na estabilidade do significado. Essa ideia cartesiana da função do tradutor pressupõe uma total dissociação entre o sujeito e seu discurso, de forma a dar à palavra, uma autonomia, independente de quem e como a está usando.
Quando esta expectativa de fidelidade a uma tradução verdadeira foi por terra, criou-se a consciência da atuação direta sobre o texto, da construção de um novo texto, da co-autoria e recriação do original, o que provocou a impressão equivocada de uma “liberdade total”, em que qualquer interpretação seria possível; o tradutor parecia poder tudo com seu texto.
Atualmente, no entanto, cabe repensar essa liberdade e redefinir limites, buscando a identidade própria da tradução, sem deixar de levar em conta toda a complexidade da prática tradutória discutida no âmbito do pós-estruturalismo.
Até hoje se desenrola uma luta secreta entre a fantasia de um saber absoluto baseado no culto do arquivo e um delírio interpretativo que não quer saber de nada. Entre história e memória, descortina-se um espaço de articulação entre uma história da teoria do inconsciente, a história do próprio Freud e, finalmente, a história da psicanálise como terapêutica.
Assim, a afetividade do tradutor ou da tradutora passa pelo amor que têm pelas línguas e culturas com as quais trabalha, diz Milner (2012), pelas paixões e alegrias do corpo a corpo com o texto (do) outro, até que encontre a tradução relevante.
O processo de tradução evidencia o conflito conceitual sujeito-objeto. A relação estabelecida entre o leitor e o texto é sempre terceirizada: leitor – autor – texto.
Ou autor na língua de partida, leitor na língua chegada e a própria língua, como veículo. E a psicanálise, desde Freud, nos alerta sobre a resistência da linguagem na representação da Coisa.
A linguagem é uma das possibilidades de simbolização. Ela é tanto física quanto psíquica – tanto palavra quanto ideia. Corpo e psiquismo. Na Grécia arcaica, a palavra não valia apenas por seu sentido manifesto, mas trazia consigo um signo a ser decifrado para que um outro sentido oculto pudesse emergir, num processo interminável de decifrações (Garcia-Rosa, 1990). Ali a palavra era portadora de sua Alétheia, de uma verdade que precisava ser desvelada – manifestada aos olhos do corpo e do espírito. A verdade da palavra era uma busca e não a coisa em si.
É interessante relacionar a interpretação dos sonhos à Alétheia grega já que a própria etimologia da palavra (a: negação; lethe: esquecimento) sugere a preservação de um conteúdo. Tal noção de verdade se opõe à de opinião ou crença comum, pois sua fonte, interminavelmente decifrável, não está sujeita a uma definição preestabelecida. Ela não é explícita ou evidente nem pretende sê-lo.
Tratando-se de tradução, qualquer que seja a situação, quer ela se passe numa mesma língua ou entre uma língua e outra, há sempre um leitor ou um receptor que se apropria do significado do outro e o traduz para o seu próprio idioma, o que poderíamos chamar de um “ato de transferência”. Todo leitor é um tradutor, porque qualquer que seja a sua língua original, jamais será a do autor.
O autor não é o outro semelhante, mas enquanto lugar-função é o Outro. Ao investir-se da função de tradutor, o leitor estará supondo ser esse Outro, capaz de gerar significados. Mas ao terminar de ler o texto, perceberá que é como ser faltante, incompleto, falho, cheio de lacunas a serem preenchidas por outro que se proponha a ocupar de novo esse lugar, ou seja, outro leitor-tradutor.
Toda interpretação é motivada pelo desejo e contém em si algo de agressivo, por isso, a tradução deixa sempre um resto, o mais um que não se conta, resíduo, rastro que irá permitir que o processo de leitura seja inacabado e prossiga.
A relação possível que os psicanalistas podem ter com a obra do Freud, é uma relação de falha, de falta, no tributo ao Pai, uma père-version.
Assim como um Pai, o autor é “porta(a)dor de uma falta”1. O que o autor teve em mente só pode ser descoberto, como uma imagem em espelho manchado, como uma tradução deflorada da sua originalidade. Mas, como um Pai, o autor se submete à castração, porque traduzir é preciso!
Traduzir é trair o original. Por outro lado, aprisionar o saber numa assepsia, em nome do purismo e da impossibilidade de lidar com o intraduzível, é impedir a comunicação no culto ao silêncio: um enigma que não requer interpretação, e sim experiência.
No seu livro A Fuga de Freud, David Cohen relata em detalhes , as circunstâncias históricas que levaram a fuga da família Freud – num total de 16 parentes, empregados, sua biblioteca, coleção de esculturas e alguns móveis, dentre eles o célebre divã.
Freud teve seu patrimônio financeiro confiscados pelos nazistas e só conseguiu fugir por intervenção da embaixada dos EUA e da princesa da Dinamarca, Marie Bonaparte, nascida na França, sobrinha bisneta de Napoleão I.
Antes de partir, a Gestapo exigiu a assinatura numa declaração de que ele havia sido tratado com cortesia. Novamente, a ironia de Freud se fez presente: “recomendo calorosamente a Gestapo a qualquer um”, escreveu.
”A fuga é o instrumento mais seguro para se cair prisioneiro daquilo que se deseja evitar”. (Freud, 2015)
Foi assim que Freud teve que escolher entre a bolsa e a vida.
Para salvar sua obra das fogueiras nazistas, Freud teve que deixá-la exposta a contaminação de outra línguas. Sua obra ficou a cargo de Kurt Eissler, um jovem psicanalista vienense que emigrou para os Estados Unidos e que foi o primeiro a constituir um vasto lugar de memória para o movimento psicanalítico: os famosos Arquivos Freud, depositados na Biblioteca do Congresso, em Washington.
Logo nos Estados Unidos, onde Freud esteve uma só vez, a convite e dizendo levar a peste.
Bettelheim no seu livro A Viena de Freud e Outros ensaios , relata sua dificuldade em interagir com os colegas norte-americanos quando de sua chegada na universidade de Chicago.
A psicanálise que conhecera em Viena era uma doutrina humanística, um corpo de idéias vivas sobre o comportamento humano. Nos EUA, Bettelheim se deparou com um discurso analítico científico, cheio de certezas acerca do modelo freudiano. Ele que lera Freud em alemão quando estudante em Viena, ao tentar ler o mesmo Freud em inglês, encontrou grandes dificuldades e acabou percebendo uma série de diferenças entre o Dr. Freud alemão e sua versão inglesa. Segundo ele, esses problemas se estenderiam inclusive à versão padrão de Freud em inglês, a poderosa Standard Edition, coordenada por James Strachey.
Por exemplo, a preferência por palavras de raizes gregas, para traduzir palavras simples do alemão corriqueiro, davam uma conotação cientificista ao frescor da descoberta freudiana. Desse modo o jargão psicanalítico ficava ao alcance de uma platéia maior e levava a uma ligação direta, e pessoal, com a história de cada um.
Um exemplo dessa tendência são os termos Id, Ego e Super-Ego. Em alemão Freud utilizara o termos Es, Ich e Uber-Ich. Em alemão Es é o pronome neutro, que ganha maior sentido quando se sabe que em alemão uma criança (das Kind) é tratada como Es. Assim, para o leitor alemão, o Es (o nosso Id) ganha uma conotação especial, sendo a maneira como tratam, e foram tratados, as crianças pequenas – onde teoricamente o “id” seria a fonte de todos o atos…Aquilo que nos acostumamos a chamar Ego era chamado por Freud pelo singelo nome de Ich o pronome ‘eu’ em alemão.
Bettelheim elogia a versão francesa – assim como a espanhola – por utilizar moi, ça (ou soi) e surmoir para a tríplice grega Id, Ego e Super-Ego.
Uma outra versão interessante para o inglês ocorre com o termo alemão Seele – que foi traduzido para o inglês como Mind (Mente). Ora, o termo Seele possui um equivalente no inglês: Soul (alma); no entanto esse termo foi omitido na tradução.
E assim, a alma de Freud foi substituída pela alma de Strachey na completa Standard Edition!
Traduttore, traditore.
- 1. Alusão ao nome de um seminário coordenado pela autora, na Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro, no ano de 2022- O ato analítico porta (a) dor de uma falta
BETTELHEIM, B. A Viena de Freud e outros ensaios, Ed. Campus, S. Paulo, 1991.
COHEN, David. A fuga de Freud, Ed. Record, S. Paulo, 2010.
DERRIDA, J. A escritura e a diferença, Ed. Perspectiva, S. Paulo, 2002.
FREUD, Obras Completas, vol 8, Ed. Cia. das Letras, Rio de Janeiro, 2015.
GARCIA-ROSA, L. A. O mal radical em Freud, Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1990.
MILNER, J. C. O amor da língua, Ed. Unicamp, S. Paulo, 2012.