Escola Lacaniana

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Espaço “Publicação Envia” -18/02/22 – indicação: “Qual a cor da nossa nota musical?”

Na segunda indicação do Espaço “Publicação Envia”, trazemos o texto “Qual a cor da nossa nota musical?”, de Ozenir Rosa Borges, publicado em 2013 na Revista “Berggasse 19” (Volume 5), por ocasião do Colóquio “Angústia: o afeto que não engana – Reflexões sobre o mal-estar contemporâneo”, que aconteceu em Niterói, RJ.

 

Confira abaixo a íntegra do trabalho. Para comprar a Revista, clique aqui.

 

QUAL A COR DA NOSSA NOTA MUSICAL?

Onezir Rosa Borges*

 

 

 

 “Dessa nota direi que se não é simbolizável, no sentido em que não poderemos inscrevê-la, em que não poderemos reter em nós o efeito eminentemente fugaz que ela produz e cuja extinção é estritamente tributária do real das vibrações sonoras que a suportam, ela é em compensação simbolizante. Simbolizante no sentido em que nos abre para o efeito de todos os outros significantes, como se fosse sua senha: efetivamente sob o impacto da Nota Azul, o mundo começa a falar conosco, as coisas a ter sentido: os significantes da cadeia ICS, de mudos que eram, despertam e começam, assim causados pela Nota Azul, a nos contar casos.” (Didier, 1997, p.61)

 

Podemos falar de uma linguagem musical?

A música, enquanto arte, envolve simultaneamente o Sujeito e um ato, sejam os da criação, da escrita desta criação, da leitura e interpretação, ou mesmo da escuta, quando esta se trata de uma escuta, causada por um objeto artístico que convoca o ouvinte, enquanto Sujeito do inconsciente. É, portanto, sempre de sujeitos e, que se trata a princípio, sujeitos chamados a desejar.

A música possibilita um modo de pensar o manejo pelo músico com o objeto a, em especial e em primeiro plano a voz, objeto causa de desejo, impossível de ser apreendido. Esse manejo nos dará pistas para pensar as notas musicais podendo fazer função de borda no vazio que portamos e se aproximando do conceito lacaniano de letra?

As notas musicais não são uma redução mínima que, isoladas e sozinhas, não significam nada?

É pela sua articulação que elas podem ser tomadas como significantes?

A linguagem musical é estabelecida por um determinado conjunto de regras próprias a esse campo, não podendo existir, no entanto, sem a presença de dois elementos: o ritmo e a altura sonora, trabalhando, assim, com a diferença e a tensão dos sons musicais e também, marcando e produzindo diferenças no tempo e no espaço musical.

A imagem sonoro-musical é formada, então, por um conjunto preestabelecido de materiais musicais em relação entre si, dentro de um espaço-tempo igualmente musical. Reporto-me aos discursos propostos por Lacan; leis, elementos, relações, funções, lugares.

Surge, assim, a possibilidade de o compositor veicular um endereçamento e uma transmissão, do real que, ele circundará com a música, fazendo comparecer uma escrita pulsional. Teremos, então, o valor cifrado de cada nota, na ausência da voz, presente apenas, por indicação e ainda, uma relação entre uma nota e outra.

Será que podemos ter como hipótese que é entre as notas no impronunciável, que o objeto voz é contornado, ou seja, a pulsão, escrevendo a relação do sujeito com o objeto voz perdida, que lhe causa?

Será que podemos pensar no modo como as funções de borda da letra – no caso, as notas- e da ressonância da voz, nos dão apontamentos para o enodamento entre R.S.I.?

O trabalho do compositor propõe, assim, um saber fazer com o nada.

As notas são separadas umas das outras, de modo que elas possam ser relacionadas a outras, ganhando uma posição intervalar em um conjunto. De letras, elas ganham função significante, mantendo, ainda assim, a dimensão de enigma?

Nessa medida de relacionamento de notas umas com as outras, o sentido musical e único da obra se presentifica.

É interessante notar como é pela via do silêncio – a ausência de sons – em parceria com o som musical que, o ritmo, ou seja, uma temporalidade se fará presente.

O silêncio na música aponta para o que não é abocanhado pela linguagem musical: o impossível.

O compositor se escreve, escrevendo a música, mas no registro de um enigma a ser dado a ouvir pela via de sua partitura.

Mas, quando a música tem um intérprete que não é o compositor?  Exigirá por parte deste um trabalho de interpretar o que na partitura está cifrado; cifra de um gozo por parte do compositor, enquanto Sujeito que se apropria da linguagem musical, oferecendo ao intérprete e ao ouvinte, uma resposta singular frente ao enigma do desejo do Outro.

Quanto ao intérprete, ele, também, possui uma relação com o enigma que a obra musical porta, o que, aliás, podemos pensar, que é o que determina que o interprete se tenha tornado músico ou cantor.

Quando o músico está diante de uma obra musical, ela é tomada por ele como causa de desejo, fazendo com que, ao tocá-la, estudá-la e dar-lhe corpo, fazendo-a soar, suas próprias marcas sejam postas em jogo. Seu circuito pulsional será movimentado. Há, também, no intérprete um ato que implica criação e endereçamento.

E quanto à escuta musical: ouvimos como sujeito ou como Outro? Antes, porém, vamos apontar o amor na canção.

O sentido vem da enunciação. É por meio do sentido de amor, nas inscrições da canção, que nos damos conta do modo como os Significantes compõem o objeto amoroso. É, também, no espaço intervalar entre os Significantes S1 e S2 que a canção ocupa lugar como palco das representações sígnicas. Assim sendo, a linguagem da canção de amor é aquela que ocupa lugar onde faltam as palavras. É preciso um acidente como a emoção estética, para que a insuficiência dos nomes venha à nossa lembrança.

A beleza sonora, através do gozo da escuta, nos lembra uma fala de Caetano Veloso, e pergunto: É esse nome do sem-nome, que as coisas têm de nós dentro?

Quanto ao gozo da escuta, essas canções de amor na sua maioria remetem à perda amorosa.

Mas, o que se perde? Freud responderá que é o próprio Eu, o Eu tomado como objeto. No sofrimento amoroso, há um enfraquecimento e um esvaziamento do eu, em razão de uma identificação e de uma fixação no objeto.

O luto amoroso é diferente da melancolia. O melancólico sabe exatamente quem ele perdeu, mas não sabe o que ele perdeu neste Outro. Citemos Chico Buarque sobre a perda amorosa:

 

“Oh, pedaço de mim

Oh, metade afastada de mim. Leva o teu olhar  que a saudade é o pior tormento, é pior que o esquecimento, é pior do que se entrevar…

Oh, pedaço de mim, oh, metade amputada de mim…” [1](Pedaço de  mim – Chico Buarque)

 

Lacan afirma que o melancólico é o que está mais próximo da verdade por viver literalmente a castração.

Estamos, assim, diante da neurose que é uma metáfora da negação da falta, mas é ela que, através do desejo, é a mola propulsora da criação. Estamos pensando o amor como metáfora da falta (amante x amado).

Perda, falta, objeto de gozo, desejo, identificação, foram apontamentos feitos a partir do Sujeito do inconsciente que nasce já imerso na linguagem e que o faz prisioneiro dela. Será que, também, não somos prisioneiros de uma linguagem musical, ou seja, da “lalíngua”?

Restou a pulsão invocante…

Vamos a Didier-Weill que, em seu livro Nota Azul (1997), nos propõe quatro tempos lógicos e pergunta: “Ouvimos como Sujeito ou como Outro?”    (Didier, 1997, p. 69)

 

1º tempo: como ouvinte, em algum lugar, tudo se passa como se a música me trouxesse uma resposta. Essa resposta faz surgir em mim a antecedência de uma questão que me habitava como Outro (o ouvinte). A música, a produção do Sujeito musicante, seria a resposta a essa pergunta que me habitava. Como Outro, não sei que falta é esta que me habita, mas sobre a qual o próprio Sujeito (o criador) nada me diz, uma vez que ele diz essa falta diretamente, ou seja, é dito por essa falta (eu disse anteriormente: o compositor se escreve escrevendo a música).

Isso significa que descubro que esta falta que me habita é a dele próprio, também.

2º tempo: agora, sou eu quem é reconhecido como ouvinte pela música que a mim  chega, isto é, pela música que era uma resposta e que havia feito surgir uma questão em mim. As coisas se invertem, a música torna-se uma questão que me convoca como Sujeito a respondê-la.

Assi, música se constitui como que me ouvindo, como Sujeito Suposto ouvir. A música, a produção, o que era a resposta inaugural, torna-se a questão. Assim, a música, ao constituir-se como Sujeito Suposto ouvir, colocando-me agora na posição de Sujeito, vou responder por um amor de transferência. É importante ressaltar que, efetivamente, a música não produz o tempo todo efeitos de amor.

Aqui, aparece uma primeira torção em que há surgimento de um novo Sujeito e de um novo objeto. Nesse ponto do percurso, Didier assinala que tudo se passa como se. Como se nós mesmos produzíssemos as notas que nos atravessam, ainda que não sejamos nós que as tivéssemos produzido, ou seja, mas como se fôssemos nós os autores dessa música.

Como mencionei, o Sujeito, efetivamente, postula o amor do Outro por ele, mas o amor do Outro, como radicalmente impossível, numa perspectiva sobre a falta que habita o Outro.

A música de amor impossível é, na verdade, uma resposta que o sujeito dá ao Outro e é ao Outro que ele supõe o fato de amá-lo com um amor impossível.

Este 2º tempo se articula sincronicamente com um 3º tempo.

O Sujeito, agora, sendo ele mesmo músico, dirigindo-se, como disse, a um Sujeito Suposto ouvir, ou seja, a música, como um novo Outro que não é mais o Outro do ponto de partida.

Com esse novo Outro, o sujeto vai, também, identificar-se: ao mesmo tempo em que é falante é aquele que é ouvinte.

 

A partir desses 2º e 3º tempos em que Sujeito e Outro caminham lado a lado, separados pelo objeto a separador, o Sujeito encontra a segurança de que era, efetivamente, impossível encontrar o objeto. Só consegue girar a seu redor.

 

Vamos ao último e 4º tempo… Aqui, Didier diz que vai se permitir fazer um novo salto: passar para uma nova forma de gozo, correr esse risco, já que não é dado que se consiga atingi-lo.

Didier equipara essa nova forma de gozo ao de natureza mística.

Nesse 4º tempo, ele diz representar, no esquema de separação, não mais com o objeto a na lúnula, mas com o significante do grande Outro barrado, S (A) e o significante S2 que Lacan nos ensina a situar como sendo o do recalcamento originário, o do saber inconsciente.

Uma vez feito todo percurso, seja do ponto de vista do Sujeito, do Outro ou do segundo Outro, fica confirmado que o objeto é verdadeiramente volatizado.

O salto que Didier propõe diz respeito ao fato de o sujeito não mais se contentar em estar separado do Outro pelo objeto a, mas vai proceder verdadeiramente a uma tentativa da travessia da fantasia.

A Nota Azul, diz Didier, fala de um ponto em que “o Sujeito dividido pela tensão produzida entre a harmonia e a melodia” (Didier,1997: p.33), escuta além do que está presente na música e alcança “uma certa nota – ainda não presente – ao nível da qual a tensão entre sincronia harmônica e a diacronia melódica poderia ser resolvida” (Didier,1997: p. 34). É uma nota, portanto, virtual e efêmera,  que comporta, porém, um ponto de real.

Todavia, por ser talvez o que pode haver de mais real em uma música, ela – música –  não terá cor alguma, fazendo, em contrapartida, com que o Sujeito lhe dê alguma coloração. Segundo Didier, essa nota é no inconsciente sempre a mesma. O que a nota nos faz falar e produzir, em seguida, certamente não, ainda que se repita. Mesmo que a esperemos, ela nos surpreende, mas não retemos seu efeito.

Terminada a canção, seu efeito sobre nós se evapora.

O pintor e escultor Lee Ufan, diz que ouvimos uma nota, um som, quando se toca um tambor, mas ela não pertence nem ao tambor, nem a quem a toca. Essa nota musical surge no momento em que o sujeito ouvinte – a música – é criado. Não somos nós quem ouve a música, é a música que nos ouve. É pelo toque sígnico das canções que a nota faz sua assinatura a partir do Outro que é reconhecido pela a música como ouvinte, arrancando-o do lugar onde está e colocando-o diante de algo difícil de nomear.

Tal nota não pode ser simbolizável, inscrita, retida num significante, no entanto, ela é simbolizante. Desencadeia todos os efeitos de outros significantes, daí tudo começa a ter sentido, explosão de significação, o que torna o Sujeito da escuta, sensível aos desejos inconscientes.

O gozo nostálgico, efeito da música em nós, ou evocado através dos significantes, fazem referência a um objeto que se perdeu, e o amor é interrogado, mas também se refere a um estado de felicidade. Mas, acima de tudo, é uma escritura que não é qualquer, pois precisa da voz, do ouvido, do tom da dicção, das alturas e intensidades, do ritmo das acentuações, dos tempos fortes e menos acentuados do intérprete. São misturas fonéticas e sonoras, mostrando os impasses amorosos, a nostalgia do tempo de origem.

Se estamos tristes, sabemos nomear o que nos falta, e isso nos ocasiona sofrimento. No entanto, existe uma outra forma de tristeza, aquela que mostra que a nostalgia é uma espécie de “felicidade de estar triste” (Victor Hugo apud DIDIER,1997: p. 94).

A falta que se instala é de uma propriedade que não podemos designar. É como se o objeto tivesse evaporado. A felicidade é a sinalização de que não vamos nos abismar com a falta. A música nos chega como promessa de que é possível o encontro amoroso. Somos tomados pela esperança e pelo desejo de amar, porém a esperança surgiu de uma real impossibilidade: a de que a experiência amorosa pudesse suprir a nossa falta. O gozo é a espera.

A segurança está em que, ao girar ao redor daquilo que falta, criamos. Ao escutar uma música que nos toca, em certos momentos, criador e ouvinte tornam-se cocriadores. A saudade que marca o encontro do Sujeito com a música postula o ponto enigmático do desejo.

Lacan é bem incisivo, quando diz que o desejo, função central a toda experiência humana, é desejo de nada nomeável.

Voltando ao texto de Didier, nota azul: sua explosão produz uma paralisia da atividade de pensar. “A comemoração é o retorno, não do que éramos antes de ouvir a música, mas de um Outro que não nega a falta, antes suporta-a por um movimento de promessa de encontro. O que as canções de amor evocam é a partilha das faltas.” (ROSSI, 2003: p. 78)

Interrogo-me: o que será que pretendem os adolescentes que estão constantemente com o fone de ouvido de seus celulares postos à escuta?

Será que aquilo que eles pretendem é, a partir da sonoridade da voz materna, participar da comemoração da partilha das faltas, que a música nos oferece pela via da cor da nota de cada um, quando, na contemporaneidade, o que se busca é tamponar a falta com um pretenso objeto possível?

Neste tempo de escrita, me dou conta de que não mencionei a angústia. Ela foi convidada para a “partilha das faltas”? (ROSSI, 2003: p. 78)

Se foi, logo tomou o caminho da rua e deixou a comemoração para a alegria dos demais convidados.

A nota azul de Chopin, tomou conta da festa, mas será que podemos nomear a nossa nota de azul?

Estamos num outro momento histórico-cultural. Não importa! Seja a nota verde, vermelha ou tenha que matiz tiver, um parceiro, Delacroix[i], nos ajudará a dar o tom, seja musical ou cromático e ela nos arrancará de onde estamos, bastará um tambor e quem o toque, ela nos alcançará e seremos ouvidos por ela.

Quem canta, seus males espanta.

Diz Érika: “É para me acalmar!”.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

BUARQUE, Chico (1979). Pedaço de mim. In: Álbum Ópera do Malandro. RJ.

 

DIDIER-WEILL, Alain (1997). Nota Azul – Freud, Lacan e a arte. RJ: Editora: Contracapa.

 

ROSSI, Deise Mirian (2003). O amor na canção: uma leitura semiótico-psicanalítica.

SP: Editora Casa do Psicólogo.

 

NOTAS EXPLICATIVAS

 

* Psicanalista – Analista Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro

[1] BUARQUE, Chico (1979). Pedaço de mim. In: Álbum Ópera do Malandro. RJ.

[i] The “blue note” of the exhibition’s title is a phrase used by Sand in Impressions et Souvenirs when describing an evening with Chopin and Delacroix. The painter, talking to Sand’s son, Maurice, had been comparing the tones of colors in painting with the sounds in music when Chopin, inspired by the conversation, began to improvise on the piano, then stopped. Urged to continue by Delacroix, he said, “I’m trying to find the right color, but I can’t even get the form.” Delacroix responded: “You won’t find one without the other, and both will come together.” Chopin returned to the keyboard. Sand describes what comes next: “We begin to see soft colors corresponding to the suave modulations sounding in our ears. Suddenly the note of blue sings out, and the transparent night of azure surrounds us.” (Frederic Chopin: La Note Blue. In: http://www.paris-update.com/fr)