Escola Lacaniana

(21) 2294-9336

A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA

Freud foi um homem que se dedicou a lidar com as paixões do ser humano. Em 1895, iniciou seus estudos sobre a histeria, época em que se deu conta de que haviam “ideias inconscientes que causavam patologias”. Ouvindo o relato de Breuer sobre sua paciente Anna O, quem aludiu a “cura pela fala”, e juntamente com o que escutou de Charcot e Chrobak, o levaram a teorizar sobre a etiologia sexual das neuroses, ainda que de forma incipiente. Começa, por volta dessa época, a pesquisar sobre o que será a contribuição princeps de sua teoria, a noção de inconsciente – inicia-se a psicanálise.

Datou “A interpretação de sonhos”, em 1900, como o marco inaugural da psicanálise. À época, já se apresentava revolucionário. No frontispício da obra, anotou, em latim, a frase de Virgílio, na Eneida: Flectere si nequeo superos, Aqueronta movebo[1]. Revolucionou o tratamento psíquico, substituindo a hipnose pela associação livre, baseando-o na escuta e interpretação de sonhos que o paciente discorria na consulta. “A interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do inconsciente”.[2]

Dez anos após, criou a Associação Psicanalítica Internacional visando conter os abusos que a psicanálise poderia estar sujeita em virtude da sua popularização – “Deveria haver alguma sede cuja função seria declarar: Todas essas tolices nada tem a ver com a análise; isto não é psicanálise”[3]. Freud se preocupava com a difusão da psicanálise, bem como com o seu exercício.

Em 1912, em “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, aludiu a resposta que havia dado a pergunta, feita em 1909, na Clark University – Worschester. “…como alguém pode tornar-se analista? Pela análise dos próprios sonhos. Esta preparação, fora de dúvida, é suficiente para muitas pessoas, mas não para todos que desejam aprender análise”[4].

Mais adiante, em 1918, em “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades”, ele desconsidera o ensino acadêmico, todavia, enfatiza o que viria a ser o estatuto da formação de um psicanalista: sua análise pessoal, as concepções teóricas e a prática supervisionada.

“…o psicanalista pode prescindir completamente da universidade sem qualquer prejuízo para si mesmo. Porque o que ele necessita, em matéria de teoria, pode ser obtido na literatura especializada e, avançando ainda mais nos encontros científicos das sociedades psicanalíticas, bem como no contato pessoal com os membros mais experimentados dessas sociedades. No que diz respeito à experiência prática, além da que adquire com sua própria análise pessoal, pode consegui-la ao levar a cabo os tratamentos, uma vez que consiga supervisão e orientação de psicanalistas reconhecidos.”.[5]

Em 1926, motivado pela acusação, em Viena, de charlatanismo contra Theodor Reik, Freud trouxe a lume o texto “A questão da análise leiga”, onde defende que a prática psicanalítica não teria nenhuma razão para ficar restrita aos médicos. É nesta obra que ele discorre de forma contundente, quais os critérios a serem consignados para uma efetiva formação em psicanálise. Chama a atenção para a dificuldade que haveria quando se ministram apenas as teorias da análise.

Eles absorvem as teorias da análise tão friamente quanto outras abstrações com as quais são alimentados. Poucos deles desejam ficar convencidos, mas não há qualquer vestígio de que estejam. Mas também exigimos que todo aquele que quiser praticar a análise em outras pessoas se submeta ele próprio a uma análise. É somente no curso dessa ‘auto-análise’ (como é confusamente denominada), que eles realmente têm a experiência de que sua própria pessoa é afetada – ou antes, sua própria mente – pelos processos afirmados pela análise, que adquirem as convicções pelas quais são ulteriormente orientados como analistas.[6]

Ainda em “A questão da análise leiga”, em outra passagem, Freud reitera a importância do instituto de formação, ou seja, um espaço para o estudo da nova ciência, bem como a necessidade de análise para os candidatos ao novo labor: “A análise, à qual todos os candidatos num instituto de formação analítica têm de submeter-se, é ao mesmo tempo o melhor meio de formar uma opinião sobre sua aptidão pessoal para o desempenho de sua exigente profissão”[7]. Na sequência, ele sugere aos iniciantes o trabalho clínico, o contato com os pacientes, no entanto, enfatiza: “…um jovem analista poderia muito bem preencher seu tempo trabalhando numa clínica psicanalítica para pacientes externos sob a supervisão de profissionais experimentados”[8].

Para Freud, na formação teórica de um psicanalista poderia constar algumas matérias da formação médica como: psicologia, biologia, vida sexual e sintomatologia psiquiátrica. Entretanto, deveria ser acrescentado: “a história da civilização, a mitologia, a psicologia da religião e a ciência da literatura”[9]. Mas ao examinarmos os programas de várias instituições psicanalíticas, percebemos que essa recomendação freudiana não é muito valorizada. Por exemplo: Em sua obra, o velho mestre apresentou mais de trezentas citações literárias, mostrou que os escritores criativos têm sido, desde tempos imemoriais, os mais legítimos discursistas da mente humana, bem como foram os precursores da ciência e também da psicologia científica, conforme afirmou em “Escritores criativos e devaneio” (1907)[10].

Em 1955, Lacan redige “Variantes do tratamento-padrão”, quando irá afirmar que Freud enfatizava que a via de formação de um analista era sua própria análise: “O analista, com efeito, só pode enveredar por ela ao reconhecer em seu saber o sintoma de sua ignorância”[11]. Lacan põe ao lado do amor e do ódio a terceira paixão do ser, a ignorância. E é por essa via que o analista poderia se formar. É através dessa “ignorância douta” que ele vai poder trilhar a via do seu desejo inconsciente.

O fruto positivo da revelação da ignorância é o não saber, que não é uma negação do saber, porém sua forma mais elaborada. A formação do candidato não pode concluir-se sem a ação do mestre ou dos mestres que o formam nesse não-saber, sem o que ele nunca será nada além de um robô de analista.[12]

Lacan, que sempre se apresentou como freudiano, trouxe novas e importantes contribuições para o desenvolvimento da psicanálise. Suas contribuições foram no sentido de manter-se fiel a proposta do pioneiro mestre quanto a formação de analistas. Ao admitir-se que a psicanálise foi e é uma “prática teorizada”, pode-se concordar que um analista só pode dizer-se enquanto tal, prioritariamente, através de sua análise pessoal, não descurando, no entanto, de manter-se numa posição de um douto ignorante, não só em relação, a si, como em relação ao mundo.

[1] FREUD, S. (1900). A interpretação de sonhos. ESB, Rio de Janeiro, Imago, v.4. Se não puder dobrar os deuses, moverei o Aqueronte.

[2] FREUD, S. (1910 [1909]). Cinco lições de psicanálise. ESB. Rio de Janeiro, Imago, v. 11, p. 32

[3] FREUD, S. (1914). A história do movimento psicanalítico. ESB. Rio de Janeiro, Imago, v. 14, p. 57.

[4] FREUD, S. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. ESB. Rio de Janeiro, Imago, v. 12, p. 155.

[5] FREUD, S. (1919 [1918]). Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. ESB. Rio de Janeiro, Imago, v. 17, p. 217.

[6] FREUD, S. (1926). A questão da análise leiga. ESB. Rio de janeiro, Imago, v. 20, p. 226.

[7] Ibidem, p. 277.

[8] Ibidem, p. 278.

[9] Ibidem, p. 278.

[10] FREUD, S. (1908 [1907]). Escritores criativos e devaneio. ESB. Rio de Janeiro, Imago, v. 9.

[11] LACAN, J. (1955). Variantes do tratamento padrão, in Escritos. Rio de Janeiro, Zahar, 1988, p. 360.

[12] Ibidem.