A pouco menos de dois meses do início da edição de 2023 do Curso de Introdução à Psicanálise da ELP-RJ, resolvemos fazer uma série no nosso perfil do Instagram, para explicar melhor o que pretendemos com essa atividade anual, a porta de entrada mais direta para quem quer se aproximar ou fazer parte da Escola. Para isso, escolhemos um texto escreito peelo psicanlista e nosso membro-fundador, José Nazar, e reproduzimos esse trabalho, na íntegra, aqui embaixo.
O Currso deste ano está previsto para começar no início de abril. Em breve traremos a programação e o tema de 2023 e, em seguida, iniciaremos o período de inscrição. Até lá, leia, reflita e se quiser perguntar alguma coisa, entre em contato pelos nosso direct no Intagram .
“Partimos do seguinte, que raiz do campo da psicanálise colocada em extensão, única base possível para motivar uma Escola, deve ser encontrada na própria experiência psicanalítica, quer dizer, tomada em intensão? Única razão justa a ser formulada da necessidade de uma psicanálise introdutiva para operar esse campo”
Jacques Lacan, Proposição de 9 de outubro de 1967: sobre o psicanalista da Escola, primeira versão.
Qual objetivo de um Curso de Introdução em Psicanálise? A quem e a que se destina? Qual a importância de tal empreendimento?
Poderíamos dizer que está em jogo a assim chamada formação em psicanálise. Seria esta a demanda em questão? Mesmo que se diga que não é disso que se trata e que tal curso não guarda relação alguma com a formação do psicanalista, mesmo assim, alguma dúvida restará em instância na dependência da subjetividade de cada um. Como lidar com tal impasse? Como ministrar um Curso de Introdução em Psicanálise sem responder a uma tal demanda, implícita ou explicitamente colocada por parte daquele que o busca?
O que se pretende com um Curso de Introdução em Psicanálise?
O compromisso da Escola Lacaniana será o de apresentar aos postulantes os conceitos fundamentais da psicanálise. Da mesma maneira que o psicanalista apresenta o inconsciente a seu psicanalisando, uma Escola de Psicanálise terá como função criar as condições necessárias para que conceitos da teoria freudiana possam ser transmitidos com clareza e precisão, no sentido de encontrar eco entre seus postulantes. De que maneira a instituição pode provocar o assentimento ou a abertura necessária de uma posição subjetiva, na direção de uma elaboração que produza um caráter mais simbolizante dos conceitos, na constituição de um ensino condizente com uma transmissão? Não é tarefa fácil, simples, por assim dizer.
Como alguém se torna psicanalista? O que é necessário para alguém ocupar o lugar de psicanalista?
Sabemos que é impossível tornar-se psicanalista sozinho. Auto-análise, isso não existe. A formação psicanalítica implica uma articulação de três elementos fundamentais: psicanálise pessoal, supervisão e ensino teórico. Esse tripé se sustenta e encontra sua razão de funcionamento numa nodulação que se dá graças à transferência. A transferência de trabalho motiva a relação de um psicanalista em direção às suas formações.
Portanto, uma psicanálise pessoal é o fundamento de todo processo. Só que isso não basta. Da mesma forma, uma instituição não pode formar um psicanalista. Além da psicanálise pessoal, é necessária uma prática teórica extensiva com outros psicanalistas, o que constitui uma transferência de trabalho a serviço da transmissão em psicanálise.
O tornar-se psicanalista e sua autorização implicam a concorrência de outros psicanalistas, o que abre uma nodulação exemplar: a de um não-sem uma instituição. Um psicanalista em percurso deverá estar em contato frequente com a teoria psicanalítica como autoridade simbólica. Esta será elaborada às custas dos efeitos da psicanálise pessoal, juntamente com os pares de uma escola. Pode-se dizer de uma prática da teoria a partir dos efeitos de análise, uma elaboração do saber inconsciente. Esse é um ponto crucial, o qual diz do contato que o postulante terá com a teoria: O ensino e o saber interessados na transmissão em psicanálise, são antinômicos ao conhecimento.
A formação do psicanalista, ela mesma, é interminável. É permanente! Não existe uma formação acabada. O inacabado de uma formação coincide com a hiância estrutural que fundamenta o campo freudiano. O processo de uma psicanálise pessoal pode terminar. Veremos que não se trata de uma tarefa fácil, tanto do lado do psicanalisante quanto do lado do psicanalista, mas é possível. Pode ser que uma psicanálise pessoal alcance o seu termo, pode ser! Mas a formação de um psicanalista será sempre permanente. Trata-se do surgimento de um puro desejo. Um desejo decidido cujos efeitos o postulante sofrerá no andamento de sua psicanálise pessoal. A emergência desse desejo é crucial para que esse processo se estabeleça. Aqui reside o traumático por excelência de uma transmissão da psicanálise: O nascimento do desejo do analista, o qual será o voto de um psicanalista. É uma questão estrutural que diz respeito à ética da transmissão da psicanálise.
Um psicanalista é aquele que pratica uma psicanálise. Mas não somente isso. Há um mais além da prática clínica: A transmissão. Sem esta, a psicanálise não sobreviveria. Nisto se encontra a responsabilidade do psicanalista. Por isso mesmo a formação do psicanalista é um assunto amplo, ultrapassa a práxis, e necessita de argumentos diversos que a sustentem de modo ético. Razão pela qual só pode ser na práxis da psicanálise que isto se opera.
Uma questão: O exercício da psicanálise é uma profissão? Se afirmarmos que sim, ela estará identificada a outros fazeres do humano, seria então mais uma dentre tantas profissões existentes no mundo. É lógico que com algumas particularidades. Se dissermos que não, ou seja, que a psicanálise não é uma profissão, teremos a árdua tarefa de dizer, com clareza, o porquê dessa negativa, bem como justificar o lugar impossível que o psicanalista ocupa em sua clínica. Tarefa desgastante demais. O psicanalista comparece no mundo inserido numa ordem socioeconômica, política e cultural. Como profissionais que aí se inscrevem, ele porta suas marcas e diferenças. Veremos a complexidade deste cenário, não somente pela particularidade que demarca a função do psicanalista, mas fundamentalmente, pelo fato de que a psicanálise, por se autorizar do inconsciente, se substrai a todos os outros fazeres do humano. Em hipótese alguma poderá ser considerada uma profissão. Esse é o primeiro ponto que assinala o vazio da ex-sistência do ser do psicanalista.
A afirmação fundadora, proposta por Lacan, “O psicanalista só se autoriza por si mesmo e por alguns outros” demonstra a complexidade de sua inserção, na medida em que apresenta uma consequência vital quanto à questão da garantia, na formação do psicanalista. Vale dizer, no momento do ato analítico ele está só, não conta nem se garante de nenhum Outro. Ele não contará com nenhuma ordem, instituição, teoria supervisor, etc., se alguém ocupa essa posição e acredita tratar-se de uma profissão, a partir da concepção de um campo fechado e completo, houve aí um erro de formação e, muitas vezes, se faz necessário um retorno às origens do processo, uma retomada do trabalho do inconsciente. Um psicanalista não se identifica aos conformes que demarcam as profissões do mundo, essas que se constituem na configuração de um objeto total circunscrito numa realidade. O exercício da função analítica não se orienta por padrões que regulam as reproduções práticas da vida, por isso mesmo o psicanalista está distante de um ver-se vendo profissional, e muito menos se aceita na posição de um sendo visto como tal. O que o especifica? Quais as suas insígnias? O que o diferencia?
A Escola Lacaniana de Psicanálise convida a todos os que se interessam pela descoberta freudiana a participar do Curso de Introdução, o qual tem por objetivo apresentar e transmitir os conceitos fundamentais da psicanálise. Esse exercício será coordenado por psicanalistas que contam com anos de prática clínica e teórica, e que têm o compromisso de insistir na transmissão da psicanálise. O desafio que a eles se coloca está na ordem de um movimento de insistência, no sentido de passar algo aos postulantes, algo vivo que venha sacudir o torpor que permeia o corpo teórico já dado. Esse algo é pouco.
O longo exercício de uma prática clínica e teórica permitiu a esses psicanalistas não se furtarem diante do impossível, norteador do ensino e da transmissão na psicanálise. Cada um estará aí como docente, por sua conta e risco, numa posição de se deixar instruir, pagando o preço a partir da posição de analisante. Resta sempre uma parte do saber que não se ensina, há saber que não se sabe. Ensino algum estaria aí para preencher essa hiância que é estrutural, pois não se trata de uma aquisição de conhecimento. Nada será linear; pura ruptura, descontinuidade! Ao contrário – e este sempre foi o exemplo de Lacan, ao demonstrar que a psicanálise não se ensina -, ensinar numa posição de analisante quer dizer praticar uma teoria a partir de um ponto de são-saber, ou seja, do que não se sabe. O exemplo de Lacan, ao um ponto de não-saber, ou seja, do que não se sabe. O exemplo de Lacan, ao ensinar que a psicanálise não se ensina, afirma que nenhum ensino em psicanálise se autoriza pela instituição. Ele não cessou de buscar meios de cercar o real como ponto de não-saber. Criou o matema como um meio de se poder ensinar como alguma coisa de uma psicanálise, no sentido de se transmitir esse inominável de estrutura que o discurso suporta.
No célebre e histórico texto de Freud que tangencia a transmissão da psicanálise, ‘A Questão da Análise Leiga (1926), encontramos: “Quando fornecemos a nossos alunos um teórico, podemos observar que este inicialmente produz pouco efeito. Eles recebem as doutrinas psicanalíticas com a mesma frieza com que acolhem as outras abstrações com que foram alimentados”. Freud já havia pontuado que o ensino em psicanálise não se dá pela via comum do conhecimento do conhecimento intelectual e direto, mas pelo viés de uma efetividade do sujeito do inconsciente. Ele já preconizava a instauração de uma nova modulação temporal, o só-depois, por onde esse ensino poderia produzir efeitos reais.
Há um impasse em relação ao ensino e à transmissão da psicanálise. A psicanálise é intransmissível. Entretanto, a transmissão acontece no processo e na lógica da cura, na qual cada um irá se dizer se experimentar como sujeito, como falta. O que se transmite não se ensina.
Em 1978 no congresso sobre a transmissão, Lacan afirma: “A psicanálise é intransmissível, é um tormento que cada psicanalista seja forçado – pois é preciso que seja forçado -, a reinventar a psicanálise”. Resta ao analista o esforço incessante rumo a uma criação, na medida em que não há transmissão integral da psicanálise. Por isso mesmo Lacan introduz o matema e a topologia com objetivo de obstaculizar os desvios que retiram a originalidade da descoberta freudiana. A psicanálise não se transmite, ela se inventa (na cura). Esta é a tese de Lacan.
Jacques Lacan, no seu retorno a Freud, não cessou de nos lembrar a importância de não se transmitir um saber pré-digerido, vale dizer, uma forma de ensino por onde se inscreve uma aquisição linear de conhecimentos comuns. O ensino em psicanálise não deve responder a uma demanda do aprender, na medida em que este gesto, por mais bem-intencionado que seja, não consegue causar consequências efetivas no sujeito do inconsciente. Esta façanha não é nada mais que um salto inocente no sentido de enganar a ignorância que é a própria e estrutural ao sujeito humano. O fundamental é que se possa elaborar um ensino onde cada um, desta ou daquela maneira singular, possa se fazer instruir pela douta ignorância, servir-se dela como um quadro, onde se ordena um saber. Esta premissa abre para um questionamento maior no percurso de alguém que queira insistir no campo psicanalítico.
Nesse sentido, os psicanalistas que estão no mundo como passadores da teoria psicanalítica terão que transmitir algo que os ultrapasse e cujos efeitos eles mesmos não cessam de sofrer: Um saber furado, o qual abre portas para questionamentos, na medida em que o saber em psicanálise se apresenta como uma verdade não-toda. A consideração desse ponto de não-saber norteia os rumos de todos os envolvidos nessa aventura. Ensino e transmissão em psicanálise dizem respeito aos elementos de uma formação psicanalítica que se realiza graças ao inconsciente, balizada pela estrutura de uma falta surgida na e pela razão freudiana. Ou seja, uma modulação real que escreve a castração do Outro como fato estrutural de fundação para o sujeito. O “se fazer instruir” na vida de uma prática teórica diz respeito ao tornar-se psicanalista como uma formação do inconsciente. O inconsciente, aqui, como “sendo”. Por exemplo, como sendo algo da ordem do fendido, como algo que pulsa, como algo que insiste em “querer ser”; o irrealizado! Não como algo que é ou não é das ontologias, mas tão somente como algo que “quer ser”, quer emergir. Nessa perspectiva, o estatuto do inconsciente é da ordem de uma ética centrada no real da pura insistência.
Falta ao Outro um significante que encerre a série dos significantes. Por isso mesmo há impossibilidade estrutural de qualquer que seja a garantia dada antecipadamente, seja no âmbito da prática como no da teoria. Nenhum saber dá conta desse furo no campo das significações. O princípio ético reside aqui: Não há, no campo do Outro, nenhum significante que possa delinear a ação do sujeito, seus passos, sua escolha. Da mesma forma que não há um significante – ou, se quiserem, um pai -, que responda aos clamores de um sujeito e que possa dar as coordenadas de seu desejo. Por outro lado, não há este ou aquele saber que garanta ao postulante seu desejo de ser psicanalista. O processo psicanalítico refuta o saber já constituído. O saber já sabido tomba, fracassa, permitindo o advento de novas séries de significantes eletivos. Uma psicanálise transcorre às custas de um dizer novo que promove consequências seriais na vida de um sujeito. A vida será concebida pelo viés do que irá se contrapor às exigências daquilo que já está dado, o dogmático, por exemplo. Nenhuma boa intenção institucional, estas que constituem no âmbito da composição linear e antecipada, poderá dar do surgimento de um psicanalista, a não ser que dos adaptemos ao desvio da descoberta freudiana e aceitemos a concepção de um produto acabado, como uma má formação congênita.