Escola Lacaniana

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Biblioteca nas Redes estreia com texto de Teresa Palazzo Nazar

Biblioteca Nas Redes-Teresa Nazar-08 JAN 24

Hoje damos inicio a uma nova série nos canais digitais da ELP-RJ: “Biblioteca Nas Redes” volta remodelada, por iniciativa da atual Secretária de Biblioteca, a psicanalista e membro da Escola, Márcia Cirigliano. O texto escolhido para a estreia é um trabalho da psicanlista Teresa Palazzo Nazar, apresentado no Colóquio Internacional Marguerite Duras, realizado na Maison de France, dia 04/12/2023, no Rio de Janeiro.

Portanto, fique ligado em nossos canais digitais, para não perder nenhum conteúdo da série!

 

 

Mar-dor e gozo em Mar-gueri-te

Por Teresa Palazzo Nazar

“O amor é como as outras coisas, isso não

pode durar para sempre…”

(Duras, 1952, p.16)

 

Em O marinheiro de Gibraltar, de Marguerite Duras (1952), o amor e o mar estão juntos no enigmático de suas naturezas, bem como o que é do desejo dos personagens principais do romance.

A partir de seus desencontros, um homem e uma mulher ligam-se num navegar e não sabemos para onde se dirigem. Ou será que o fim da viagem é apenas a busca por algo que lhes escapa? Caso encontrem “o marinheiro de Gibraltar”, o amor que os uniu na viagem morrerá. Mas quem é esse terceiro personagem em torno do qual a narrativa gravita? Ele está conectado com o impulso, com a inconsequência da juventude, mas também com o crime, o erotismo, o desejo de movimento, o mar…

Em um nível de leitura, um homem sem rumo e profundamente infeliz encontra uma linda e rica mulher, proprietária de um barco. Pela contingência desse encontro surge a oportunidade de navegarem juntos – ela, em busca de seu marinheiro, e ele fugindo de uma mulher e de um trabalho que não mais suporta. Um torpor psíquico se estabelece, onde a dor de existir é potencializada pela atração de um pelo outro. O que os atrai?

A viagem dos dois personagens interroga o leitor em relação ao desejo, esse estranho familiar que nos habita, e coloca em perspectiva algumas questões: O que uma mulher quer? Uma mulher “faz” um homem? O que une duas diferenças? Circunscrito ao campo do indizível, o gozo feminino é opaco, “zona branca”, o que na escrita de Duras comparece como uma experiência positiva. As interrupções das frases de Anna, a personagem feminina, aliás, como em toda a obra de Duras, indica algo do gozo feminino – esse que é da ordem de uma escrita sem objeto e onde outra satisfação pode ser alcançada.

Como mostrar o que não tem imagem?

Lacan disse que “as mulheres gozam de outra satisfação, isto é, da fala” (1982, p. 87). Esta corresponde ao gozo que pode ocorrer entre um homem e uma mulher sem o roçar dos corpos. Um modo de dizer que há satisfação na fala, bem como no escrito, que pode suspender em parte o submetimento à afirmação de que tudo o que se apresenta nos discursos dos falantes está submetido ao Falo. Ora, como isso será possível? Intervalos, silêncios, semidizeres, como os inaugurados pelo amor cortês em antigas épocas – mas também pelas invocações místicas, como as registradas por São João da Cruz a propósito de Santa Teresa D’Ávila.

Habitar a linguagem e fazer o uso dos recursos da língua de cada um dá acesso a outra via de satisfação, inscrevendo quem diz, quando seu dizer é bem-sucedido do lado das mulheres.

No Seminário XX Mais ainda (1982), Lacan nos diz, a propósito de suas “fórmulas quânticas” da sexuação, que todo ser falante, a despeito do imaginário de seu corpo físico, pode inscrever-se do lado do não-todo (fálico). Isso quer dizer que não é possível uma universalidade do “ser homem” e do “ser mulher”. E por quê? Porque alguém, sendo e se reconhecendo como homem, pode frequentar o feminino, ou seja, o não-todo. A literatura é prova disso. Uma mulher que se reconheça como tal, frequenta o outro lado das fórmulas quânticas, na medida em que não pode estar completamente do lado do não-todo; ela tem falicidade.

Na obra de Marguerite Duras, o feminino se mostra por uma escrita singular caracterizada por intervalos, pequenos silêncios nas falas das personagens femininas. São buracos de pensamento os quais circunscrevem uma região ainda não explorada, o que seria da ordem do feminino. Diz a escritora:

“Esses livros são dolorosos de escrever, de ler, e essa dor deveria nos conduzir a um terreno… um terreno de experimentação. Bem, quero dizer, eles são dolorosos, é doloroso porque é um trabalho relativo a uma região ainda não explorada… é aquele branco da sequência de que você falava. Não quero dizer psicanálise… esse feminino, digamos. Não? Talvez seja isso que provoque a dor.”

(Gauthier, 1974)

Mas de que dor se trata? Teria isso alguma relação com o fato de que as palavras são insuficientes para dizer do lugar não-todo que frequentam por não estarem completamente submetidas à ordem fálica como os homens?

É uma questão…

Navegando lado a lado nas águas turvas da vida, um homem e uma mulher se falam, mas não há diálogo, pois habitam línguas distintas. Em O marinheiro de Gibraltar, Anna, uma das personagens principais, atende ao pedido do hóspede de seu barco, Alan, o homem que havia deixado uma vida infeliz e sem sentido para acompanhá-la, e começa a narrar sua história com o marinheiro – um homem que havia cometido um assassinato e que ela e o marido recolhem do mar como se acolhe aos náufragos de má sorte.

Num triângulo amoroso, alguém sempre destoa e, nesse caso, é o marido quem descompassa e sai de cena, suicidando-se.

Toda essa história é contada aos borbotões por insistência de Alan – o homem que aceitou o convite de ir à procura… de quem? Quem é o marinheiro de Gibraltar? Anna busca uma existência, como dito por ela mesma a certa altura da narrativa. É no mar que encontra calmaria para a ressaca moral e para os inúmeros desencontros com homens que decidiu receber em seu barco e com os quais eventualmente se deitou.

Seria ela o outro lado do marinheiro? “Uma entre outras necessidades de uma mulher” (Duras, 1952, p, 275), como reflete Alan? Marguerite está em Anna, mas podemos dizer que essa personagem mostra um pouco dos inúmeros semblantes femininos, esses “parecer-ser” que os discursos não dão conta de nomear e, de vez em quando, faz com nos defrontemos com o real. É o que esse livro enigmático nos mostra, isto é, a distância entre um homem e uma mulher, seus modos de gozo de naturezas distintas.

 

“Ninguém, senão a mulher – porque é nisso que ela é o Outro – sabe melhor o que é disjuntivo no gozo e no semblante, porque ela é a presença desse algo que ela sabe, ou seja, que, se gozo e semblante se equivalem numa dimensão do discurso, nem por isso deixam de ser distintos no teste que a mulher representa para o homem, teste da verdade, pura e simplesmente, a única que pode dar lugar ao semblante como tal.”

(Lacan, 2009, p. 34)

 

 

Isso quer dizer que, no encontro de um homem com uma mulher, ela lida bem melhor com o semblante porque com ele tem enorme liberdade, já que entra no jogo do amor a partir do que não tem. É em seu discurso que pode aparecer o que não diz mas mostra em seus silêncios. É desses impenetráveis vazios que é feita a escrita de Duras; bordas do furo, litoral que faz sua letra singular, sua literalidade.

“O litoral é aquilo que instaura um domínio inteiro como formando uma outra fronteira, se vocês quiserem, mas justamente por eles não terem nada em comum, nem mesmo uma relação recíproca”

(Lacan, 2009, p. 109).

Litoral entre um homem e uma mulher

Há litoral entre um homem e uma mulher? Se há, que barreira é essa que os aparta e ao mesmo tempo pode funcionar como imã?

Duras escreve sobre a impossibilidade de aplacar a dor da incompletude na qual toda mulher se vê confrontada. Entretanto, a escrita lhe franqueia o artifício de uma transgressão que a liberta das amarras de uma sociedade ainda profundamente patriarcal, introduzindo uma palavra sobre o desejo de uma mulher, mais além do gozo que se possa obter do seu corpo. É de outro corpo que se trata nessa escrita que Duras indica. Mar imenso de palavras, tal qual uma dor… Não tem começo, não tem fim. A escrita tem começo? O fim é quando o último sopro se esvai, quando se esgota a fonte por onde palavras jorram e se embaralham na fala, buscando a fonte que não se alcança, brumas do mar.

Refletir sobre o escrever e a dor em Maguerite Duras nos obriga a viajar a Trouville, para tentar alcançar num mar de letras algum dizer.

 

“Escrever.

Não posso.

Ninguém pode.

É preciso dizer: não podemos.

E escrevemos.

É o desconhecido que carregamos dentro de nós: escrever é isso que se alcança. É isso ou nada.”

(Duras, 2021, p. 63)

“O que se alcança são as palavras, o que fica por se dizer é o silêncio” (idem)

 

Ao fim de O marinheiro de Gilbraltar, é pela boca de Alan que a autora nos diz: “O mar estava lindíssimo nas Caraíbas, mas não posso mais falar” (Duras, 1952, p. 430).

 

 

Referências

DURAS, M. Le marin de Gibraltar . Paris: Gallimard, 1952.

______. Escrever. Belo Horizonte: Relicário, 2021.

GAUTHIER, X. Entrevista concedida a uma jornalista em 1974.

LACAN, J. Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

______. De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

 

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