Ana Luísa Saleme Colnago
Psicanalista, Membro da ELP-RJ; Mestre em Psicologia pela UFF-RJ
Desde seus primórdios, a Psicanálise enfrenta muitas resistências na sociedade. Não poderia ser diferente. No final daquele que ficou conhecido como o século das ciências, ela surge como um novo campo de saber, mas um saber que questiona, interroga; um saber que inclui o furo, o Real, trazendo consigo possibilidades de subversão.
Uma das maneiras pelas quais essas resistências à psicanálise aparecem é através das inúmeras tentativas de regulamentá-la; tentativas de restringir sua prática a uma determinada categoria profissional, regular por lei o que pode ou não fazer um psicanalista, torná-la uma profissão, permitindo a criação de faculdades de psicanálise, e por ai vai. Freud, seu fundador – e que era médico de formação, lembremos – diante da acusação de charlatanismo sofrida por um de seus colegas não-médicos da Sociedade Psicanalítica de Viena que praticavam a psicanálise, Theodor Reik, escreve em 1926 o belíssimo artigo A Questão da Análise Leiga, no qual simula um diálogo com uma Pessoa Imparcial na tentativa de fazê-la compreender o que é a psicanálise. Freud defende contundentemente que a prática da psicanálise não deve ser restrita aos médicos. Destaca que o que é necessário para que uma análise ocorra é a transferência, e não qual é o diploma daquele psicanalista. Assim, Freud sustenta a psicanálise leiga. Termina seu artigo dizendo que “as coisas que realmente importam – as possibilidades na psicanálise de desenvolvimento interno – jamais poderão ser afetadas por regulamentos e proibições.” (FREUD, 1926/1996, p. 240, grifo do autor).
A questão da análise leiga logo nos lança à pergunta: Por onde passa a formação de um psicanalista? Ou: como se dá a formação de um psicanalista? Falar de formação do analista e de não-regulamentação da psicanálise é trazer nas entrelinhas a interrogação do que é a própria psicanálise. E talvez seja essa uma interrogação que devamos sempre sustentar, como fazia Lacan, que na primeira aula de seu seminário de 1964, momento seguinte ao da sua expulsão da IPA, diz: “(…) estou aqui, na postura que é a minha, para sempre introduzir esta mesma questão – o que é a psicanálise?” (LACAN, 1964/2008, p. 11, grifo do autor). Uma questão que, embora deva ser sempre recolocada e abordada, talvez não deva ser respondida. A interrogação do que é a psicanálise faz com que nós, psicanalistas, trabalhemos. No entanto, como respondê-la sem cair numa regulamentação? Desse modo, é muito mais interessante mantê-la como um norte.
Esse é o ponto que torna o tema da formação do psicanalista um dos mais delicados no campo da psicanálise, apesar de parecer simples, num primeiro momento. Mesmo que não haja uma grande dificuldade de compreensão conceitual, deve ser abordado com sutileza e cuidado. É como andar por um caminho feito de cascas de banana, uma atrás da outra, no qual é preciso andar com muito cuidado, pois a cada passo é possível escorregar e cair, fazendo justamente o que nos colocamos contra: a regulamentação da psicanálise.
Com sutileza, então, pensemos: como se dá a formação do analista? Em A Questão da Análise Leiga, Freud (1926/1996) ressalta que só a instrução teórica não é suficiente para tornar alguém analista; aquele que quer praticar a psicanálise deve submeter-se a essa experiência de ter sua pessoa afetada pelos processos de análise. É interessante que nesse artigo de Freud já encontramos o chamado tripé da psicanálise. A formação do analista passa pela análise pessoal, supervisão e estudo teórico.
Recorto o significante experiência utilizado por Freud, que aparece também nos seminários e escritos de Lacan. A psicanálise é leiga por ser da ordem da experiência. Primeiro de tudo, é preciso experenciá-la no divã. Isso nos traz um desafio: como, então, convencer alguém que nunca passou por essa experiência de que não se deve regulamentar a psicanálise? É essa mesma interrogação que se faz Freud em Análise Leiga. Ou mesmo: Como tentar elucidar para quem nunca a experimentou o que é a psicanálise?
As tentativas de regulamentar a psicanálise persistem e ainda acontecem nos dias de hoje, no Brasil, na França, e em outros países. Há 19 anos, escolas, instituições e sociedades de psicanálise se organizaram num movimento chamado Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, movimento do qual nossa escola faz parte, para lutar contra a regulamentação da psicanálise, notadamente articulando-se para barrar os projetos de lei no Congresso Nacional que possuem esse propósito.
Atualmente existem dois Projetos de Lei no Senado que tocam nessa questão. Um deles, o PLS 174/2017, visa regulamentar a psicanálise como uma terapia naturista juntamente com outras práticas que nada tem a ver com ela. A explicação da emenda é: “Regulamenta a profissão de Terapeuta Naturista, nas modalidades medicina oriental, terapia ayurvédica, outras terapias naturais, e terapias psicanalíticas e psicopedagógicas.”[1] O segundo é um projeto específico sobre a psicanálise, o PLS 101/2018, que “dispõe que o exercício da profissão de psicanalista é livre em todo o território nacional, quais são os requisitos da profissão, suas competências e deveres”.[2] São projetos amplamente abraçados por uma parcela mais conservadora do Congresso, sobretudo pela bancada evangélica, e que atendem a interesses mercadológicos, seja de cursos já existentes que se propõem a formar psicanalistas em pouco tempo, alguns inclusive com diploma, seja de faculdades que criariam a graduação específica em psicanálise. O Movimento Articulação está sempre acompanhando a situação desses projetos no Congresso e se articulando para que eles sejam rejeitados. Antes desses atuais Projetos de Lei outros já existiram. Provavelmente muitos outros ainda virão. Enquanto houver psicanálise, haverá resistência a ela. Enquanto houver psicanálise, teremos que sustentá-la.
Mas, afinal, o que seria regulamentar a psicanálise? Será que as tentativas de regulamentação da psicanálise vêm somente “de fora” dela, ou seja, do Congresso, da Justiça, do Estado, etc.? Não haveria regulamentação da psicanálise dentro da própria psicanálise? Dentro de suas instituições? E nós, não acabamos eventualmente regulamentando a psicanálise em nossas práticas sem perceber quando dizemos o que pode ou o que não pode ser feito em psicanálise, ou quando afirmamos o que é a psicanálise? Podemos dizer o que é a psicanálise não é, mas sendo ela da ordem da experiência, logo da experiência de cada um, é possível dizer o que ela é?
Em Ato de fundação (1971/2003), texto que Lacan escreve ao fundar a Escola Freudiana de Paris, e que poderia ser lido também como “Ata de fundação”, alguns postulados são criados para dizer do funcionamento dessa nova Escola. Uma escola de psicanálise necessita de postulados e regulamentos, para, vamos dizer, orientar o trabalho. Na nossa Escola possuímos um Regimento Interno e um Estatuto. Qual é o limiar entre postular e/ou estabelecer regras e entre regulamentar?
Lembremos da IPA, instituição fundada por Freud e frequentada durante um tempo por Lacan. A formação do analista na IPA é cheia de regras, formalizada, entre as quais se encontra a de que a análise deve ser feita com determinados analistas, os analistas didatas. O que a IPA faz não é uma regulamentação da psicanálise, mesmo que não pela via de restringi-la a uma categoria profissional?
Lacan, ao fundar a Escola Freudiana de Paris, traz esse significante “Escola” em seu sentido antigo, de escola como lugar de refúgio contra o mal-estar, lugar de abertura ao fundamento da experiência, espaço de presentificação da psicanálise no mundo. A Escola é esse espaço de formação em que o que está em jogo é a possibilidade de transmissão. E esse é precisamente um dos pontos que difere a Escola de Lacan das sociedades e instituições de psicanálise: se não é possível ensinar a psicanálise, justamente por ela ser da ordem de uma experiência, é possível transmiti-la, transmiti-la pelas vias da transferência de trabalho.
Por fim, o que é que não se regulamenta na psicanálise? Não se regulamenta a formação do psicanalista, que é sempre um percurso singular, pessoal, e não cabe em regras e normas pré-determinadas por uma regulamentação. Não se regulamenta aquilo que é propriamente analítico: o desejo de saber depurado em uma experiência analítica. A psicanálise é da ordem de uma experiência singular, no um a um. A formação do analista passa pelo “tornar-se psicanalista da própria experiência”, como nos diz Lacan (1967/2003, p. 248), e a experiência, essa não é regulamentável.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTI et AL. Ofício do Psicanalista: formação vs. regulamentação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
FREUD, S. (1926) A questão da análise leiga. (Edição Standard Brasileira), vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
________. (1971) “Ato de fundação.” In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
________. (1967) “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.” In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
SIGAL et AL. Ofício do Psicanalista II: por que não regulamentar a psicanálise. São Paulo: Escuta, 2019.
[1] Informação do site do Senado Federal: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129523
[2] Informação do site do Senado Federal: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/132513