Escola Lacaniana

(21) 2294-9336

A paixão segundo GH: Limite do humano?

Sandra Edler[1]*

 

Antes de entender, meu coração embranqueceu como os cabelos embranquecem”

                                                             Clarice Lispector

 

 

A narrativa pode ser a morada de extremos da condição humana no que se refere à dor, ao espanto e à barbárie. Tanto é assim que, durante sua estadia forçada num campo de extermínio, Primo Levi (É isso um homem?/1989) percebeu em si mesmo e entre seus companheiros de infortúnio, que o sonho de sobreviver vinha acompanhado do desejo de relatar, ou seja, fazer a narrativa de parte do que tinham vivido às famílias, aos amigos e mesmo ao mundo. E esta percepção nos parece bem nítida na avalanche de material escrito sobre o Holocausto que chegou e chega continuamente à publicação. Isso só para citar apenas um exemplo.

A paixão segundo GH é um romance de Clarice Lispector (1964/2009) que trata de uma situação extrema; surge em 1964. Foi um livro escrito nos meses finais de 63, produzido rapidamente, num fôlego só. Escrito na 1ª pessoa, reflete uma experiência, vivida pela personagem no dia anterior – algo difícil de transmitir, que se revelou maior do que esperava e que a colocou face a face com o insuportável: “ontem perdi durante horas e horas a minha montagem humana”. (p.11). “Não sei se terei uma outra para substituir a perdida”(p.12) . “Receio começar a fazer um sentido, com a mesma mansa loucura que até ontem era o meu modo sadio de caber num sistema” (p.13). A vida humanizada, domesticada talvez em excesso. “Eu havia humanizado demais a vida,” (p.12), reflete Clarice através de sua personagem.

Para fazer o relato, a narradora recorre a um artifício: “enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão. Pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la, irei sozinha.”(p.16). Será preciso coragem para seguir em frente e cumprir o propósito de dizer o que é preciso dizer.

“Naquela manhã, antes de entrar no quarto, o que era eu? Era o que sempre me haviam visto ser, e assim eu me conhecia” (p.23).

Clarice apresenta sua personagem: GH, iniciais impressas nas malas de couro, uma mulher de classe social alta, escultora, mais por capricho do que por vocação, moradora de uma cobertura. Uma casa bem montada, limpa e decorada. Uma vida igualmente bem montada.

Quando começa o relato GH está sozinha em casa, sem a empregada que se demitiu e o amante que a deixou. Decide fazer uma limpeza no quarto recém-deixado por Janair que supunha sujo e empreende uma visita aos fundos. A partir deste incidente doméstico, aparentemente banal − a demissão da empregada − a personagem sai do contexto organizado e limpo, deixa a moldura de proteção, uma existência impessoal, sustentada pela imagem que corresponde ao que se espera dela, referida ao desejo do Outro, para se expor a uma experiência de horror e, ao mesmo tempo, de transformação. E começa transpondo o limiar da cozinha, avançando pelo corredor que dá acesso ao quarto. Dali podia vislumbrar o vão central do prédio, os fundos de todos os apartamentos, com seus treze andares. Se por fora era branco, revestido de liso mármore, o bojo do edifício era como uma usina: esquadrias e janelas enferrujadas, um emaranhado de fios, resíduos escurecidos pelas chuvas, vidros quebrados. Dirigiu-se então ao corredor escuro que antecede o quarto dos fundos.

Mas, − relata a narradora, “ao abrir a porta, meus olhos se franziram em reverberação e desagrado físico”. (p.36). “Em vez da penumbra confusa que esperara, eu esbarrava na visão de um quarto que era um quadrilátero de branca luz; (p.36). “O quarto era o oposto do que eu criara em minha casa, o oposto da suave beleza que resultara de meu talento de arrumar, de meu talento de viver, (…), era uma violentação de minhas aspas, das aspas que faziam de mim, uma citação de mim”. (p.42).

Como observa Benedito Nunes (citado por Gotlib, N, 1995), a personagem passa por um esvaziamento e está prestes a chegar à nudez.  Mas parte para a limpeza, ainda investida pelas convicções e certezas que, acreditava, davam sustentação ao antigo estilo de vida.

No lugar da sujeira e das tralhas acumuladas, GH encontra um desenho primitivo, feito com um pedaço de carvão: a silueta de um homem, uma mulher e um cachorro, que se destaca da parede. Seria um mural oculto com figuras desnudas mais parecendo múmias rígidas, autômatos. Em certo momento da observação do quarto, descobre a barata. Antes de entender, meu coração embranqueceu como os cabelos embranquecem(p.45). Num canto escuro do guarda-roupas agora vazio,  de encontro ao rosto, bem próximo aos meus olhos, movera-se uma barata grossa. A narradora engole o próprio grito. “Procurei imediatamente me apaziguar diante do meu susto”: nada, não era nada” (p.46). Tenta se tranqüilizar para seguir. Era uma barata que lentamente se movia pela fresta do armário. E pela grossura e lentidão percebia-se que era uma barata velha. Eu tinha verdadeiro horror a baratas, confessa a si mesma.

O encontro súbito revelou algo vivo dentro de um quarto morto, seco. A presença da barata trouxe uma lembrança de infância, uma infância pobre, que implicou o convívio com percevejos, goteiras, baratas e ratos. Lembrou-se de, uma ocasião, ao levantar o colchão onde dormia e ver um amontoado de baratas. A lembrança da pobreza, aparece à narradora, como algo extraído de um passado longínquo, quase pré-histórico. O horror da barata, da velha e grossa barata, fez-se absurda e estranha numa vida clara, limpa, ordenada, sedutora e de forma apurada. A terrível barata da pobreza da infância da qual estava afastada a léguas e léguas de distância. Olhava para ela indiferente como olhara a antiga emprega Janair da qual pouco recordava as feições. Sem qualquer atenção ou interesse. Olhava Janair à distância. Olhava talvez a própria infância à distância, tão longe ficara da sua pobreza, refugiada numa realidade outra, que gostava de apreciar. Um tanto morna e entediada, talvez, mas agradável de se ver.

GH como que interage com a barata. Há um jogo de olhar com olhar: “era uma cara sem contorno. As antenas saiam em bigodes do lado da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos” (p.54). Os olhos eram pretos e pareciam fixos nela. “Era uma barata tão velha como salamandras, quimeras, grifos e leviatãs”. Ela era antiga como uma lenda (p.54). E emergia por uma fresta pela porta do armário.

A personagem percebe ter condições de matar a barata e fecha os olhos, como que para esconder dela, suas intenções. “Sem nenhum pudor, comovida com a minha entrega ao que é o mal (…), levantei a mão e num só golpe fechei a porta sobre o corpo meio emergido da barata” (p.52). “Com os olhos ainda fechados eu tremia de júbilo. Ter matado abria a secura das areias do quarto até a umidade”. “Abri devagar os olhos, em doçura, em gratidão, timidez, num pudor de glória” (p.53).

A porta do armário estava fechada e dela emergia metade da barata. Aos poucos percebi. “Eu não havia empurrado a porta com bastante força. Havia prendido a barata (…) mas a deixara viva”. “Viva e olhando para mim. Desviei rapidamente os olhos, em repulsa violenta” (p.53).

GH tenta empreender um novo golpe. “Mas foi então que vi a cara da barata” (p.54). “Ela era arruivada. E toda cheia de cílios. Por um instante fiquei com a mão parada no alto. Depois gradualmente abaixei-a.” (p.54). A barata estava imobilizada à entrada da porta do armário. GH, por sua vez, sente-se igualmente imóvel, prisioneira no quarto. “De repente gemi alto” (p.57). “Abria-se em mim, com a lentidão das portas de pedra, a larga vida do silêncio, a mesma que estava no sol parado, a mesma que estava na barata imobilizada” (p.57). A imobilidade pura e simples. A narradora praticamente nos oferece uma fotografia do momento.

“Aguardei que a estranheza passasse, que a saúde voltasse. Mas reconhecia, num esforço imemorial de memória, que já havia sentido essa estranheza: era a mesma que eu experimentava, quando via fora de mim o meu próprio sangue, e eu o estranhava” (p.58). A personagem, entre o horror e a atração percebe que iniciou uma viagem sem volta: “mas eu tinha que ir. Eu tinha que cair na danação de minha alma, a curiosidade me consumia” (p.58).

“Foi então que lentamente como de uma bisnaga, foi saindo a matéria da barata que fora esmagada. Crescia para fora como de uma bisnaga de pasta de dentes”. (p.61). “A matéria branca brotava para cima de suas costas como uma carga” (p.61).

A personagem percebe que iniciou uma viagem sem volta. Despida de sua montagem e da máscara civilizada que a revestia, percebia, com nitidez, o outro lado da vida em que tudo se misturava. “Eu sabia que estava entrando na bruta e crua glória da natureza”. Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos” (p.68).

“o inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gente” (p.68)

Há no romance uma escalada na direção da desorganização. Um desabamento gradativo da personagem, viajante sem guia a ponto de perder-se e sem poder valer-se do relato de outros viajantes, pois, “o horror sou eu diante das coisas” (p.17). No processo de desabamento acaba por mergulhar num limbo: “era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável, as raízes de minha identidade” (p.360 ). Eu me despregava da lei, mesmo intuindo que ia entrar no inferno da matéria viva. É que um mundo todo vivo tem a força de um inferno” (p.21).

Dá-se conta de que transitava, até então, num território suportável por ter delimitado um círculo pequeno que julgava protegido. Numa perplexa constatação percebe que a matéria que vasa da barata é a mesma que tem dentro de si.

“A desumanização é tão dolorosa como perder tudo, meu amor. Eu abria e fechava a boca para pedir socorro, mas não podia nem sabia articular” (p.73). “…Ali sentada, um cansaço todo endurecido e sem nenhuma lassidão me tomara. Um pouco mais ele me petrificaria”. (p.103).

A personagem é perseguida por um fluxo associativo no qual associa a barata à fêmea, à mulher, ferida pela cintura. À mãe que, igualmente, morreu paralítica.

Ao deparar-se com a barata imobilizada, ao sentir-se também paralisada, horas e horas no quarto em total silêncio e solidão, ao defrontar-se com as malas de couro empoeiradas, as iniciais GH impressas, a personagem enfrenta uma peregrinação por um deserto em sua aridez. Por fim, ao final da claridade da tarde, consegue num relance, ver-se em sua antiga vida, a vida bem montada que cultivara para si. As idéias brotam em associações escorrendo como uma pasta: a decisão de fazer o aborto, a morte do filho, matéria viva ainda sem forma definida. O leite que ingeriu da mãe e associa agora à massa branca da barata.  A infância longínqua. A pobreza com baratas, mosquitos. A garganta inflamada, as amígdalas inchadas. A impotência frente aos adultos e à vida. Sua pequenez diante da doença e da morte da mãe.

Como observa a biógrafa Nádia Gotlib, “a singularidade do romance está justamente nessa montagem do encontro ou dessa perigosa viagem, que não é a do herói nem do santo, mas do despir as glórias, pela deseroização…” (1995, p.359).  Equivalente talvez à destituição narcísica que acontece ao final de uma análise quando o revestimento imaginário cai por terra e o sujeito se despe de antigas crenças e suposições. Resta agora, como um significante qualquer em meio a tantos outros. “O mundo independia de mim” (p.179).

Em alusão às cascas da barata vai retirando camada por camada e revendo a composição de sua vida anterior voltada à harmonia e à boa forma e que não comportava qualquer interrogação. E eis que todos os questionamentos acumulados aparecem em rebordose chegando à idéia da “perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser.”(p.121). O verniz civilizatório é fino e vulnerável e pode romper-se diante de situações inesperadas deixando claro, em sua nudez, o real da pulsão. A situação extrema vivida e agora narrada permite algum grau de elaboração: o sujeito humanizado em suas dores, que se aflige, sofre e se interroga sobre o que pensa e faz diferente da persona irretocável mas que vivia como um autômato. “A dor não é alguma coisa que nos acontece − observa a personagem  − mas aquilo que somos” (p.175). Um processo progressivo de despojamento. Talvez por isso, G.H. Apenas as iniciais: o resumo do que restou da mulher em sua narrativa. “A linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível” (p.176), conclui a narradora. Visivelmente aliviada com o relato, G.H. faz planos para a noite que se aproxima: “Irei dançar e comer, não usarei o vestido azul, mas o preto e branco. Mas ao mesmo tempo não preciso de nada” (p.173).

 

Observação: Todo o texto da palestra foi baseado no romance A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector.

 

Referências bibliográficas

 

Levi, P. (1947/2009) É isso um homem? Rio de Janeiro: Editora Rocco

Lispector, C. (1964/2009). A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Editora Rocco

Gotlib, N. B. (1995). CLARICE uma vida que se conta. São Paulo: Editora Ática

Moser, B.(2009) CLARICE, uma biografia. São Paulo: Cosacnaify.

Nunes, B (1989) O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática.

 

 

 

 

 

 

 

 

[1]* Sandra Edler. Psicanalista. Mestre e doutora em Teoria Psicanalítica- UFRJ