Antonio Carlos Félix da Cunha
Psicanalista; Membro da ELP de Vitória; Mestrado (UFES) e Doutorado (UERJ)
Naquela pequena adega, quase clandestina, de um bairro do Rio de Janeiro, meu pai jogava cartas. Jogava-se ali Sueca, um jogo de cartas de origem portuguesa, onde a regra maior era jogar naipe sobre naipe. Era jogado em dupla, quatro pessoas, estando os parceiros distribuídos alternadamente.
Quando criança, eu sempre arrumava um jeito de estar ali, naquele espetáculo privado, que acontecia quase todos os dias após o trabalho. Meu pai jogava bem, as pessoas disputavam sua parceria e isso me enchia de orgulho. Ele alimentava um ar de soberba, mas sempre bem humorado com tudo o que acontecia naquele cenário.
Mas o que me animava a permanecer entre eles era esperar pela última rodada, aquela em que meu pai, sacando antecipadamente sua carta sobre a mesa, adivinhava as cartas dos adversários, dando fim à partida. Ele dizia em tom de brincadeira: “me dá seu As de copas que você guardou até agora; me entrega seu Sete de Paus que está escondido em suas mãos.” Um gran finale! E eu, pequeno, olhava aquela cena em estado de júbilo e me perguntava secretamente: como meu pai podia saber a carta do Outro?
É claro que durante o jogo ele contava e memorizava as cartas jogadas, fazendo jus ao seu apelido de infância: cabecinha de ouro. Mas nada disso tirava o brilho da cartada final ao ver meu pai triunfar na partida, fazendo dele aquele que sabia. Eu é que não sabia das consequências de se imaginar um pai assim todo poderoso, com as cartas nas mãos.
Essa imagem fixada – Aquele que sabia – se converterá num imperativo categórico que determinará boa parte da minha existência: tenho que saber! Talvez saber para não ser apanhado na última rodada, ao mesmo tempo em que mantinha a suposição de que existia aquele que sabia.
Na verdade, essa suposição é uma etapa necessária e ponto nodal em toda dialética da castração, o pai imaginário. É um momento fundamental a ser ultrapassado. Ali, onde existe uma impossibilidade de gozo, Lacan (1969-70/1992, p.121) nos diz que erigimos um pai que acreditamos nos privar desse gozo, um pai que sabe gozar: “Não são vocês, nem ele, nem eu, que imaginamos, isto vem da própria posição. (…) É uma dependência necessária, estrutural, de algo que justamente nos escapa, o pai real.”
Um saber suposto ao pai cuja expertise veio com ele, de sua terra de origem, uma maneira de estar presente em terras estrangeiras, não sem seu jeito chistoso de se relacionar com o outro, pois o chiste, diz Freud (1905/1969, p.204), “(…) é a mais social de todas as funções mentais que objetivam a produção de prazer.”
Assim, meu pai chistava enquanto jogava, tecendo laços para além mar. No entanto, se naquela adega ele se familiarizava, em casa se silenciava sobre sua experiência de travessia, de ter deixado, aos 23 anos de idade, a sua terra natal, seus entes queridos, seu primeiro amor e seus amigos de juventude.
Não pôde se despedir de pai, de mãe e de alguns irmãos que já não se encontram mais aqui. Até sobre isso, calou-se. O que pude escutar de meu pai foram duas histórias fantásticas: a da “santa em carne” (Santa Maria Adelaide) que todos os anos tinham de lhe cortar o cabelo que crescia e das batatas que, armazenadas nos porões das casas, não apodreciam durante todo o ano.
Embora desconfiasse da veracidade dessas histórias – como fazem as crianças sobre as teorias sexuais infantis dos adultos – me agarrei mais ao jeito como ele as contava do que propriamente aos seus conteúdos. Só depois fui me dando conta de que ele dava um jeito de introduzir o fantástico e o espirituoso na maioria das coisas que dizia. Tornar o cotidiano fantástico e chistoso – pois há sempre algo de absurdo nos chistes – não seria uma maneira desse homem suportar seu desenraizamento? Possivelmente, um saber fazer aí, não como fuga, mas como uma maneira ativa de lidar com o real da imigração.
Mas esse jeito, embora eficaz para ir vivendo, não apaga os restos da experiência de seu desenraizamento, uma vez “… que nenhuma geração pode ocultar, à geração que a sucede, nada de seus processos mentais mais importantes…” diz Freud (1913/14, p.188).
Meu pai enfim, 20 anos depois, retorna à sua cidade natal. Não consegue permanecer por lá os três meses previstos. Um mês depois, cá estava em solo brasileiro, com saudade da gente. Trouxe-nos presentes, lembranças e um monte de fitas cassete, com uma infinidade de músicas portuguesas. Eu contava aproximadamente com dez anos de idade. Olhei para o gravador, coloquei as fitas aleatoriamente e comecei a escutá-las. Dentre tantas ouvidas, uma única música, uma única letra permaneceu em meu ser e em minha memória inconsciente.
Ai que saudades que eu tenho
De alguns anos atrás
Da minha terra querida
Com meus amigos leais
Ai! Que saudades que eu tenho
Da família que não vejo mais
Como estará minha casa
Como estará meu jardim
Onde eu colhi os meus cravos
Depois dos tempos ruis
Será que já me esqueceram
Os que gostavam de mim (…)
Hoje vivendo tão longe
Com outros iguais a mim
Sinto aqui dentro em meu peito
Uma tristeza sem fim
E para matar a saudade!
Sigo cantando assim… Ai! que saudades… (Roberto Leal)
Matar a saudade…! Como se mata a saudade do Pai? Como deixar de sofrer no lugar do outro, dispensar o “Ai!” da saudade, a dor de existir na qual permaneci ancorado, sem saber? “Se não há nada no termo final da existência além da dor de existir, melhor assumi-la como sendo do outro que ali está e que ainda fala…” (Lacan1958-59/2016, p.108). O sem saber, sustentado numa certa ignorância, ainda é um modo de encobrimento de que, para além dessa dor, o Outro não existe. Aí, dizia Freud (19301974, p.103): “(…) todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico pode ser salvo.”
Muito tempo depois, fui tomado por uma vontade louca de querer conhecer meus parentes portugueses. Comecei a ligar para todo mundo em Portugal, planejando uma viagem com meu pai. Ele não quis ir, pois o acidente das torres gêmeas deixara-o com medo de viajar de avião.
Sozinho então, escolhi a empresa TAP – Transporte Aéreo Português. Queria viajar com as origens. Quando entrei naquele avião enorme, cheio de gente desconhecida, fui tomado por um sentimento inicialmente estranho: falava-se rápido, cujo sentido me escapava. Aos poucos, tal sentimento foi se tornando familiar, o deslizamento significante do sotaque português trouxera a sensação de ser um deles, de um familiar pertencimento. Parecia que estava em casa. Esse mesmo sentimento me acompanhou em tudo que toquei, vi, soube e escutei no tempo que em Portugal estive pela primeira vez, como se eu estivesse matando uma saudade.
Voltei querendo ouvir mais meu pai. Como fazer falar um pai, do real do seu desenraizamento? Lacan, em RSI (1975-76/2007, p.114-15), ao problematizar a nominação que se limitava ao simbólico, pergunta-se: “O pai é aquele que deu seus nomes às coisas, ou bem deve ser interrogado ao nível do real?”
Tentando então interrogá-lo, tive a ideia de lhe pedir que me escrevesse três cartas, sobre os seguintes temas: crianças, futebol e mulher. Como já mencionei noutra ocasião, ele escreveu sobre os dois primeiros temas: de sua infância na aldeia, da sua paixão pelo futebol quando aqui chegou, da viagem de doze dias de navio. Mas a terceira carta, aquela que escreveria sobre a mulher, ele nunca enviou.
Esta carta, a letra desta terceira carta, ele não escreveu porque é impossível escrevê-la – A mulher – nem mesmo ele que adivinhava as cartas do outro. Seu naipe, S(). Não há saber do gozo do Outro! A saudade daquele pai que lia antecipadamente os trunfos do outro, que tudo sabia, que minha imaginação infantil queria preservar, mostrava-se agora quase dispensável, mas não fora do baralho. Ele pode ex-sistir ao jogo da vida, sustentando uma existência.
Pelas duas cartas que chegaram, descobri que meu pai fazia poesia com rimas simples e que tinha um jeito de escrever meio poético, dando um colorido às coisas do mundo. Mas o que realmente me espantou foi sua letra. Era uma letra viva, com tinta azul forte, que parecia um esboço de desenho. O “m” e o “n” estavam escritos de cabeça para baixo, o que dificultava ler o sentido imediato de algumas palavras.
Colocar as coisas dessa maneira ainda é algo novo para mim. Matar a saudade do pai, sair do circuito do princípio do prazer, que se repetia no refrão “Ai! Que saudade que eu tenho”, depende de cifrar o “Ai!”, ranqueando[1] outro tom – aí; podendo o “a” se separar do “i”, para seguir dizendo, com todas as letras: Que saudade que eu tenho!
BIBLIOGRAFIAS
FREUD, S. Os Chistes e Sua Relação com o Inconsciente (1905) In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. 7.
FREUD, S. O Mal Estar na Civilização (1930) In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970, v. 21.
FREUD, S. Totem e tabu (1912-13) In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.13
LACAN, J. O Seminário, livro 6 : O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar , 2016.
LACAN, J. O Seminário, livro 22: R.S.I. (1974-75). Tradução livre para estudo na Escola Lacaniana de Psicanálise Rio de Jan
[1] O lapso na escrita – ranqueando no lugar de franqueando – remete às seguintes significações: 1) Raquear, que significa o mesmo que hacker, isto é, explorar um sistema de computador para usá-lo de uma forma não prevista pelos seus desenvolvedores e 2) Ranquear, que tem o sentido de determinar a posição relativa de alguém ou algo.