Abílio Luis Ribeiro Alves
Não há a teoria psicanalítica sem a práxis e vice-versa. O que não impede que o discurso e os textos psicanalíticos circulem no âmbito acadêmico sem que o seu articulador esteja necessariamente referido à experiência clínica. O que, contudo, nos deixa uma questão: como incluir o real da experiência? Isso interroga aqueles que tomam a psicanálise a partir da análise pessoal, da sua prática e, ainda, da formação de analistas. A clínica nos faz revisitar constantemente a teoria que Freud nos deixou inacabada.
Dentro dessa perspectiva, temos que resituar a normatividade edipiana e o primado do falo no caminho da posição sexuada. Se Freud não reduz o problema ao destino anatômico, ele, no entanto, não desconsidera os efeitos imaginários da anatomia para propor o binarismo sexual infantil em termos daqueles que “têm o pipi” e aqueles que “não o têm”. O Édipo, o seu complexo e o primado do falo exercem papéis cruciais na teoria freudiana sobre os sexos. Sabemos que sua tese o levou aos impasses relativos ao rochedo da castração. Assim, vamos também abordar as contribuições e avanços de Lacan para o impasse teórico-clínico de Freud.
Édipo, significação do falo e significação fálica
O homem é um organismo vivo e pulsante que precisa transpor a realidade selvagem e inóspita de sua condição prematura e desamparada ao nascer, alguém que necessita ser acolhido e introduzido na ordem simbólica. Para o falante não há mais natureza, não se trata de instinto, mas de um gesto de amor e investimento com palavras que banhe o filho do homem nas águas da linguagem. Freud não propõe uma natureza humana, mas uma norma transmitida pela cultura e vivida no microuniverso social de uma trama familiar que ele denominou de complexo de Édipo. O Édipo não é propriamente uma estrutura, pois nem todos os seus elementos presentes podem ser articulados simbolicamente entre si. Ele é estruturante quanto ao sujeito e à sexualidade que se constitui no seio da trama familiar edipiana.
O complexo de Édipo é o modo particular como cada um o experimenta na sua sexualidade infantil. Assim, o advento humano e a sexualidade são estabelecidos a partir desse mito freudiano _ o mito que alude ao estruturante na cultura e no sujeito. Dessa maneira, não é suficiente ocupar um corpo anatômico, a existência do homem comporta uma origem e uma história que se marca a partir de uma nomeação dada pelo outro, um primeiro voto. Ao nascer o sujeito recebe um nome que nomeia uma falta. A criança vem no lugar da perda narcísica dos pais. Ela adquire um valor, uma medida, uma razão no amor e desejo deles _ a significação do falo introduz o sujeito na ordem simbólica da significação fálica.
Freud postula primeiramente que a criança é o falo de sua mãe, ela é o objeto que tampona a sua falta _ vertigem da completude materna. Quando a mãe desvia o olhar de seu filho e mira num para além dele, a falta é localizada num outro lugar _ o lugar do pai. A mãe traz o pai, ele é a metáfora do enigma de seu desejo _ aquilo que há de real e inominável no Édipo. Por isso, o nome do pai é uma metáfora desse enigma como propõe Lacan. Nessa trama parental, abre-se o tempo em que o pai é aquele que é dotado do falo, é ele quem dá a mãe o falo-bebê. Logo, sua função entre a mãe e a criança é reguladora, o pai traz a lei que barra o gozo materno e o gozo da criança de ser o falo da mãe. Entre a mãe e seu filho ele também está submetido à barra que denominamos de castração. Resulta daí duas consequências: o pai é o rival odiado e, ao mesmo tempo, aquele com quem, pela via do amor, o filho deve se identificar. Acontece que a norma freudiana pensada a partir de Édipo está centrada no caso masculino. Esse é um problema.
Podemos abordar o falo a partir dos três registros: o simbólico, o imaginário e o real. O Édipo, estabelecido por Freud, foi tratado maciçamente na via do imaginário pelos pós-freudianos, contudo, Lacan o dá um estatuto simbólico em “A significação do falo” (1958).
O Édipo freudiano, mesmo na breve exposição realizada acima, nos permite tomar o falo enquanto um significante submetido aos deslocamentos e condensações nos tempos da construção edipiana. A significação é produto da metáfora e metonímia. A metáfora paterna instala o falo como um significante, como algo que representa parcialmente o inominável que é o enigma do desejo da mãe. Esclarece Rabinovich (Companhia de Freud, 2005: p.10): “O texto A significação do falo já supõe a produção da significação fálica por ação da metáfora paterna”. A significação do falo realizada pela metáfora paterna engendra a significação fálica.
A autora segue ponderando, a partir de sua leitura do texto de Lacan, que da instalação no sujeito da metáfora paterna e a significação do falo decorre a posição inconsciente. Então, ela faz uma citação textual de Lacan: “a instalação, no sujeito, de uma posição inconsciente sem a qual não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo…” (Rabinovich, p.11).
Sobre essa passagem, ela diz tratar-se da instauração da posição subjetiva em que o falo permite que o sujeito venha ocupar a posição de sujeito do inconsciente, o que possibilitaria a sua identificação com “o tipo ideal de seu sexo”. Tipo ideal que não quer dizer anatômico e sim, a posição subjetiva frente ao falo como ideal. Sabemos que Freud aí se detém no rochedo da castração: protesto masculino e inveja do pênis.
Seria preciso que Lacan viesse a intervir com a sua leitura de Freud e a sua clínica para estabelecer algo do sexual que estaria fora do significante, da função fálica, e que ele vai enfim colocar do lado da posição feminina no falante nas fórmulas da sexuação no avançado seminário 20.
O falo é a única inscrição possível do sexual no inconsciente, entretanto, isso não permite uma toda inscrição do sexual. Lacan, para referir-se ao que da posição do sujeito escapa à lógica fálica, precisou lançar mão do real e do objeto a: causa de desejo. Isso lhe exigiu toda uma travessia teórica.
A marginalidade dos sexos que não sejam o do macho
Se as mulheres foram consideradas loucas e demoníacas, o que dizer das sexualidades que não obedeciam às normas morais, religiosas e “naturais” da heterossexualidade? Para além da condenação religiosa, esses sujeitos receberam, inclusive de certos psicanalistas, os diagnósticos de psicoses e perversões. Contudo, as distintas formas de posicionar-se frente ao sexo não carregam necessariamente em si um tipo de patologia. Elas são vistas como patológicas pelo discurso social que norteia e domina a norma e a moral dita civilizada. Dessa maneira, outras formas de existência e de expressão da sexualidade tornaram-se cativas da discriminação do discurso falocêntrico do macho. Assim, as expressões e discursos que contrariavam a norma vigente tornavam-se marginalizados.
A própria psicanálise freudiana se encontrava no impasse teórico-clínico do rochedo da castração. Até que Lacan tomou essa marginalidade de uma maneira genial, pois colocou a questão dos sexos e do gozo feminino para além dos limites da função fálica: do simbólico ao real e articulando o registro do imaginário com o nó estrutural do sujeito. Os recursos simbólicos e imaginários no sujeito buscam fazer frente ao inominável e ao impossível sobre os sexos.
Quando falamos em escolha na psicanálise, estamos no campo do inconsciente. Logo, falar de posição sexual é incluir o inconsciente. Não é uma vontade consciente, e ela muitas vezes contraria o próprio sujeito. Contudo, esse não saber sobre as determinações de seu desejo e gozo não o eximem da responsabilidade de sua posição subjetiva frente ao sexo. Nesse contexto, a clínica se situa na dimensão ética da responsabilidade particular de um sujeito, ela não defende propriamente bandeiras políticas de determinados grupos e minorias. O campo de batalha da psicanálise se trava na travessia de uma análise realizada uma a uma.
Transgêneros e a (re)nomeação dos sexos
Ao empregarmos o termo no plural, transgêneros, é necessário que observemos que a psicanálise parte do particular para o universal. O que motivou o presente trabalho foi a escuta clínica de alguns sujeitos que trouxeram, cada um a sua maneira, questões sobre a sua posição sexual, mas referidos ao discurso e ao contexto daqueles que se reconhecem como transgêneros.
Se analisandos homossexuais se interrogam direta ou indiretamente sobre as imposições do desejo e do gozo que os contrariam determinando o sexo de seus parceiros (homo e não hetero), aqueles que se autodenominam “trans” vivem o dramático impasse da contrariedade entre a sua anatomia e o sexo no qual se reconhecem: “um sexo no corpo errado”. Se homossexuais enfrentam os problemas da escolha imposta sobre o sexo do parceiro, os “trans” os vivem em termos da identificação sexual.
Há estranhamentos e sofrimentos avassaladores relatados, pois tanto o mundo “os vê de uma maneira errada”, como a sua própria visão do mundo se distorce. As experiências de estranhamento podem provocar efeitos contundentes. Talvez pelo comparecimento de certos fenômenos, alguns tenham recebido o diagnóstico de psicose apressadamente. Isolamento, depressões, tentativas de suicídio, sentimentos de inadequação, confusão mental são quadros e situações relatadas por aqueles que chegam à análise. Seria o caso de postular que alguma representação sobre o sexual tenha sido abolida ou foracluída, algo que estivesse relacionado à sexualidade dos pais ou alguma percepção conflituosa da realidade anatômica?
Vejamos, de alguns casos em andamento que nos servem de referência para o presente trabalho, há um que permanece em dúvida diagnóstica, quanto aos outros, os caminhos que vão se desenhado em análise apontam para uma possível construção de uma posição desejante a partir da ressignificação dos seguintes pontos: a identificação ao sexo; a relação com o corpo; a (re)nomeação do próprio sexo.
Quando contestamos a afirmação de que “a anatomia é o destino” é porque não reduzimos o corpo ao seu estatuto biológico. O corpo é simbolizado e sexuado pelo Outro Materno. E se não estamos na estrutura da psicose, na foraclusão do Nome do Pai, estamos no Édipo como estruturante, em que se inclui a metáfora paterna, a significação do falo e a significação fálica. A significação fálica permite ao falante deslizar no discurso sexuado, mas há algo do sexo e do sexual que escapa ao simbólico. Há um sexo e um gozo que está não todo inscrito na função fálica, há um além do falo. Portanto, não se trata da foraclusão específica do Nome do Pai, mas de uma foraclusão generalizada do Outro sexo. A diferença sexual é uma construção do falante frente ao impossível do sexo feminino.
Quando Rabinovich cita Lacan quanto à posição subjetiva e inconsciente do sujeito e ao “tipo ideal de seu sexo”, ela não confirma a determinação anatômica, senão que se refere ao traço ideal do Outro com o qual o sujeito se identifica, algo que entra como significante a partir da significação do falo e decorrente significação fálica. Enquanto falantes, no entanto, estamos sempre a perseguir a realização de nosso sexo que nos escapa e nos faz deslizar na cadeia, na significação fálica. Nunca realizamos ou encarnamos por completo o ideal do sexo, resta um real que não se realiza. Seríamos, então, errantes em nossa busca de uma identidade sexual?
O sexo do Outro e, consequentemente, o do falante é a sua castração. O falo é o significante de uma presença sobre um fundo de ausência. Isso se marca no corpo. O ideal diz respeito a essa perda marcada no corpo e recoberta pelo falo enquanto significante. Essa marca real, que também se articula ao imaginário e ao simbólico, faz uma ancoragem. Os sujeitos freudianos se dividem pela norma edipiana entre “os que têm o falo e podem perdê-lo” e “os que não o têm e desejam tê-lo”. Lacan descortina uma possibilidade além do rochedo da castração e que situa o falante mais precisamente nas margens do simbólico com o real: fazer-se causa de desejo (semblante), o que ele atribui à saída feminina.
O que se passa com esses sujeitos que acusam o seu impasse “transgêneros”, ou seja, além dos gêneros definidos anatomicamente? Algumas falas nos trazem a questão nos seguintes termos: esses sujeitos não dizem, por exemplo, “sempre fui um menino ou menina ‘trans’”. O que eles dizem é que quando eram meninos ou meninas eles se percebiam desde muito cedo no corpo errado. Não identificavam seu sexo conforme a anatomia, embora pudessem reconhecê-la. Reconheciam ainda seus nomes masculinos ou femininos. O processo de mudança de gênero não apagou ou aboliu o registro de suas histórias. O que é afirmado é que o corpo que habitam contradiz uma percepção de si mesmo quanto ao próprio sexo. Pois bem, são capazes de reconhecer o que receberam dos pais em termos da nomeação sexual no nome próprio? Ainda que sim, algo vacila.
A normatividade freudiana para a saída do Édipo contempla a saída positiva e ideal para os meninos e deixa as meninas nas incertezas e apuros de um caminho truncado. O que isso pode nos sugerir? Não sei até que ponto Freud esbarra no destino anatômico dos sexos! É curioso que algo da anatomia, ainda que considerando a imagem e o corpo simbólico, entre em questão para os sujeitos transgêneros. Um analisando “trans” remete-se a um momento remoto da infância em que surge um sintoma que o acompanha na vida e que parece ter estreita relação com seu impasse quanto ao seu sexo. Trata-se de uma gagueira. Ele se lembra da mudança de escola. Sai de um ambiente acolhedor para outro onde as professoras e as freiras, diz ele, “o olham de baixo para cima”. Vejam que interessante, o termo comum que tem o sentido de ser olhado com desdém ou desprezo é “olhar de cima a baixo”, mas o lapso que precipita a enunciação inconsciente é “olhavam-me de baixo para cima”. Isso lhes diz alguma coisa?
Recortamos daí que esse olhar da parte inferior do corpo para a parte superior passa primeiro pela região genital antes que atinja o próprio rosto. O que esse olhar, que é capturado pelo próprio sujeito e relatado muitos anos depois em análise, lhe interroga? Arriscamos dizer: “Desconhecido, quem é você? Qual é o seu nome, qual é o seu sexo”?
Localizamos na questão “trans”, mais do que um impasse, uma contradição radical entre o significante que nomeia o sexo e a anatomia do corpo ao ponto da afirmação: “um sexo no corpo errado”. Talvez melhor do que ninguém esses sujeitos nos evidenciem que o sexo vem do Outro e não da anatomia. E se o sexo vem do Outro, ele vem como enigma. Pensamos que o sexo, o corpo, a identidade e o nome a serem construídos em análise são atravessados pelo enigma do Outro, o que está no significante e além dele.
O genital faz corte no corpo simbólico, ele se impõe como realidade biológica e anatômica, como um estranho inquilino que vem morar no edifício que é nosso corpo, mas precisa passar pela lavra do Outro. Vem do Outro a autorização do usufruto permitido entre o sujeito e seu sexo. Nossa hipótese é que o “novo sexo” do sujeito é construído na direção do Outro, desse de quem se espera a lavra, a assinatura da folha em branco que é o corpo do filho do homem num primeiro momento. Os sujeitos transgêneros, ao efetuarem a sua mudança de sexo, não buscam apenas a si mesmos numa nova identidade, imagem ou nome, acima de tudo visam à marca_ lavra do Outro em seus próprios corpos: uma autenticação?
Tratar-se-ia, nesses casos, de uma nomeação propriamente ou de renomeação em termos de uma autenticação para que uma procuração possa ter validade? Essa procuração a ser usada nos teria sido entregue através de um nome e de um voto do Outro que nunca podemos ler completamente. O que esses sujeitos nos confirmam é que não faltam as palavras, pois podemos nomear os sexos e as modalidades de gozo de diversas maneiras, aliás, vivemos numa cultura da oferta de uma multiplicidade de gozos! O que nos falta radicalmente é o significante do Outro sexo, já que o significante possível para o sexo do Outro é o falo. Há um impossível estrutural na linguagem quanto ao Outro sexo que por licença poética chamamos de feminino, pois lembremos o aforismo lacaniano: “A mulher não existe”.
“Era uma mensagem lia uma mensagem
Parece bobagem mas não era não
Eu não decifrava, eu não conseguia
Mas aquilo ia e eu ia e eu ia e
Eu ia e eu ia
Eu me perguntava… Eu sou neguinha”? (Caetano Veloso)
Referências bibliográficas:
BLEICHMAR, Hugo. Introdução ao Estudo das Perversões: teoria do Édipo em Freud e Lacan. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.
LACAN, Jacques. A significação do Falo in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
RABINOVICH, Diana. A significação do falo: “uma leitura”. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.