Por Emilia Lobato
Certa vez ouvi um amigo dizer que: se um acontecimento entra para a sua biografia, ele tem importância. Caso contrário, não. É o caso da Ciranda da Psicanálise e Arte. Assim sendo, venho a público, agradecer à Teresa Nazar e à Escola Lacaniana do RJ por ter me concedido a possibilidade de participar, por 20 anos, neste encontro anual, que hoje faz parte da agenda desta cidade.
Dentre as paixões citadas por Lacan: amor, ódio e ignorância, escolhi falar sobre o amor, tendo como referência o livro “O amor e o Ocidente” de Rougemont. A tese do livro, que é considerado referência para os interessados no assunto, é baseada no mito de Tristão e Isolda. Tristão é encarregado de levar Isolda até seu tio, o rei Marco de Cornualha. Todavia, no trajeto, sob efeito de uma poção do amor, reservada ao matrimônio, Tristão e Isolda, se apaixonaram e ficaram entrelaçados por um sentimento que resistiria à própria morte.
É sabido que Shakespeare se apoiava em relatos orais ou escritos para produzir as suas peças. Presume-se que a peça Romeu e Julieta seria um exemplo desta prática, diante da anterioridade da obra, e cabe ainda ressaltar as inúmeras semelhanças entre as duas obras.
Sobre o amor, em Hamlet, no ato III cena II, Shakespeare se pergunta:” esta é uma questão ainda não resolvida: a vida faz o amor ou o amor faz a vida?”
Sobre o romance de Tristão e Isolda no qual Rougemont se baseia, M. Joseph Bédier diz: “Quereis ouvir senhores um belo conto de amor e de morte? É sobre Tristão e Isolda, a rainha. Ouvi com alegria plena e em grande aflição. Eles se amaram e depois morreram num mesmo dia, ele por ela e ela por ele”.
O objetivo de toda cultura é superar a matéria. E os mitos presentes na obra de Freud são excelentes ferramentas para dominar o imanente e chegar ao transcendente. Lacan exemplifica este ponto “rasgando o véu de Maya” para ressignificar a máquina do mundo e esconder a realidade das coisas, na sua essência, dizendo que o mundo não é exatamente o que vemos, e sua realidade talvez não seja o que somos levados a crer.
Um mito não tem um autor. Sua origem deve ser obscura. Ele se apresenta como uma expressão anônima de realidades coletivas ou mais precisamente de realidades comuns a todos. Mas o caráter mais profundo do mito é o poder que ele exerce sobre nós, geralmente sem nos darmos conta. O que faz com que uma estória, um acontecimento, ou mesmo um personagem, se tornem mitos é mais precisamente este império que eles exercem sobre nós, apesar de nós mesmos.
Para Émile Durkheim, o pai da sociologia, o mito é razão. Possuindo um repertório concreto, ele atua na sociedade nas suas maneiras de agir, de pensar e de sentir. E de maneira eficaz apoia o sujeito no mundo.
O enunciado de um mito desarma toda crítica, e reduz a razão ao silêncio, ou a torna ineficaz.
Podemos dizer que o mito é uma estória, uma fábula simbólica, simples e tocante, sintetizando um número infinito de situações mais ou menos análogas. Em um sentido mais estreito, os mitos traduzem as regras de conduta de um grupo social ou religioso. Eles processam um elemento sagrado em torno do qual se constitui um grupo. O mito da Horda de Freud, por exemplo, nada mais é do que um discurso simbólico da vida e da morte dos deuses.
O mito exprime estas realidades na medida em que o nosso instinto o exige, porém ele também as vela por sentir-se ameaçado pela razão.
O mito age soberano onde a paixão é sonhada E se apresenta como um ideal sem colocar a questão onde a fatalidade é convocada, invocada e imaginada como uma bela e desejada catástrofe.
Eros, o deus do amor, também move a palavra (Fedro/Platão). Pois tanto a paixão quanto o discurso e a palavra encontram na impossibilidade a sua realização. Eros é uma loucura, uma “doença”, mas uma loucura divina. Um bem e não um mal.
Em Fedro, Sócrates diz que os maiores bens que nos são dados pela graça divina, são produzidos mediante a loucura. Segundo ele, é a loucura erótica que estabelece a ponte com as forças divinas, com o mistério. E é também ela que favorece a retórica.
O desejo é um estado sem escapatória. Assim, quando nos apaixonamos, ocorre uma mudança radical. O amor movimenta, nos dá vida nos mostrando que o autocontrole não é assim tão vantajoso nem na relação amorosa, nem na poesia. “Aquele que se apresenta às portas da poesia sob a loucura da Musas, convencido em ser poeta unicamente pela arte, não chegará a termo. E a poesia composta por quem está no bom senso é ofuscada por aquela do tomado pela loucura.” A loucura dada por Eros é uma dádiva concedida pelos deuses.
O obscuro do mito, em geral, não reside na sua forma de expressão e sim na importância vital daquilo que ele simboliza. Se os fatos não fossem obscuros, ou se não houvesse algum interesse em obscurecê-los, e privar da razão sua origem, não precisaríamos dele. Poderíamos até nos contentar com uma lei ou com um tratado moral. Mas necessitamos do mito para exprimir o fato obscuro e indispensável da ligação da paixão com a morte.
Mas de onde vem este charme? Este par amor/morte que é infalível em nos transportar a um estado apaixonado de ilusão romântica. Amor e morte, amor imortal: aí reside toda a poesia e tudo o que há de universalmente emocionante na literatura, nas nossas lendas mais antigas e nas nossas mais belas canções. O amor feliz não constitui estória. O que exalta o lirismo ocidental não é o prazer e a paz fecunda de um casal. O que provoca exaltação é a paixão que significa sofrimento. E como resultado surge a necessidade da evasão em torno da paixão para uma promessa mais potente e viva que transfigure para além da felicidade e do sofrimento ardente.
O livro “O amor e o Ocidente”, que Rougemont pesquisou por 34 anos e escreveu em 4 meses, é uma referência no tema e vem influenciando obras de poetas, cineastas, teatrólogos e coreógrafos.
Diversos são os traços da lenda de Tristão e Isolda afirmando-a se tratar de um mito: um autor desconhecido, a presença do elemento sagrado e o desenvolvimento da ação e dos efeitos dela sobre todos.
Este elemento sagrado na lenda de Tristão se verifica através da presença de regras e cerimônias que pertencem aos costumes da cavalaria medieval. E as “ordens” da cavalaria foram frequentemente chamadas de “religiões”.
A abordagem de Rougemont em Tristão(triste) não é como uma obra literária, mas como um tipo de relação entre o homem e a mulher nascidos em um dado momento histórico quando uma elite social, uma sociedade cortês é penetrada pela chamada cavalaria do século XII e XIII. Trata-se do amor-paixão e o seu surgimento na sociedade ocidental.
Rougemont estabelece a ligação entre a poesia dos trovadores e a heresia cátara. Para os cátaros, Deus é bom, mas o mundo é mal, por conseguinte Deus não poderá ser o autor do mundo.
Segundo os cátaros, o mundo material é a criação do Anjo revoltado, ou de Lúcifer. Os cátaros rejeitavam o dogma da Encarnação e os Sacramentos. Tinham repulsa pela mulher (apesar de terem atraído milhares de mulheres), pela gravidez e pelo casamento.
A doutrina cátara exigia que a vida terminasse por não fadiga, medo ou dor, mas em um estado de perfeito desprendimento da matéria.
Os trovadores ridicularizavam o casamento, desprezavam os clérigos e seus aliados feudais e se lançavam a dois pelas estradas, como faziam os sacerdotes cátaros.
Este grupo se dissolveu há tempos, entretanto, suas leis permanecem presentes. Estas normas são as nossas normas de uma maneira secreta e difusa, tendo ainda enorme poder sobre os nossos sonhos.
Para Rougemont, a crise atual do casamento tem origem no conflito entre o catolicismo e a heresia cátara. Segundo o autor, o problema reside no fato que o jovem é educado desde cedo para acreditar que a paixão é a experiência suprema que todo homem deve um dia conhecer. E que somente quem viveu a paixão experimentou a vida em sua plenitude. Mas sem perceber que a paixão (ideal dos trovadores cátaros), e o casamento (ideal cristão) são essencialmente incompatíveis.
A tensão entre paixão e casamento nos remete à questão da infidelidade. Rougemont pontua que a a fidelidade é contrária aos valores do mundo moderno, e que o casamento, como fator de héguentropia social (conceito oposto à entropia), que seria uma entropia negativa, uma incapacidade de organização social.
A tese desenvolvida por Rougemont é o conflito necessário da paixão e do casamento no ocidente. Para o autor o mito da paixão degradado em simples romance produz seus efeitos nos dias atuais através do cinema, da televisão, do teatro e das estatísticas de divórcio que não param de dar testemunho da amplitude e da atuação deste mito.
Este culto do desejo, que é tão comum em nossa sociedade, onde as pessoas muitas vezes desesperadas saem pelo mundo em busca de experiências, tornam os relacionamentos instáveis, faz nascer as filhas do desejo, que são a cegueira da mente, o amor de si, a irreflexão e a inconstância. E esta última é a inimiga dos relacionamentos, e, principalmente do casamento.
Rougemont afirma que só é possível superar a paixão, nascida de um desejo mortal de uma união mística através do encontro de um outro, pela aceitação de uma pessoa diferente de nós, mas que oferece uma aliança sem fim. Então deixamos de buscar a felicidade sensível, e ao aceitarmos a vida, o casamento se torna possível.
O mito que mantinha o casamento estável desapareceu junto com as coerções sagradas, sociais e religiosas. Nos encontramos nos dias atuais em fase de reinvenção de possíveis ligações amorosas.
Todavia, Rougemont, ao fazer uma extensa análise do mito de Tristão e Isolda, diz que o mais importante não é a divinização da mulher, mas o conflito entre duas místicas. Ou seja, a católica, que conduz ao “casamento espiritual” de Deus com a alma, mas com uma distinção entre criador e criatura, e para quem o amor profano, longe de ser negado, acaba sendo santificado através do casamento. E a cátara, que espera a união e a fusão total da alma depois da morte dos corpos e para quem não há redenção possível nesse mundo. E, como consequência, o amor profano seria a infelicidade absoluta.
A obra de Wagner que mais inspirou Nietzsche foi “Tristão e Isolda”. E quando romperam a amizade, Nietzsche enviou para Wagner um exemplar de “Assim falava Zaratustra” e Wagner enviou para ele a ópera “Tristão e Isolda”. Nas palavras de Nietzsche: as duas obras se encontram no caminho como duas espadas que se tocaram. Mas não seria este toque de espadas a poção de amor que Tristão e Isolda beberam?