Márcia Cirigliano
Este trabalho busca refletir sobre minha formação em psicanálise e seus desdobramentos éticos enquanto também praticante de outro ofício qual seja, o de musicoterapeuta. Como também exerço a docência na universidade em cursos de Musicoterapia, sou atravessada por questões que, longe de terem resposta simples e imediata, ou única, conduzem-me a refletir continuamente sobre a prática clínica e sua ética.
De qual clínica estou falando? Da musicoterapia, da psicanálise, ou de ambas? Pois, quando falo de minha clínica, estou avisada de que me são feitos encaminhamentos de diversas procedências: crianças autistas, idosos com Mal de Alzheimer, adultos com retardo mental grave… Todos, sujeitos do inconsciente? Marco Antônio Coutinho Jorge (2012) nos lembra que a singularidade do sujeito do inconsciente ocupa o primeiro plano da experiência analítica: quando Lacan, retomando Freud, assim o faz, rejeita os ideais psicológicos e médicos. Continua Coutinho Jorge: “o que importa não é o que o analista considera como adequado ou correto, mas sim a posição do sujeito em relação ao seu desejo” (p.166). Essa aposta, desde antes de minha formação em psicanálise, busquei fazer: atendendo autistas em sessões de musicoterapia, optava por não trazer ao atendimento atividades musicais estabelecidas e planejadas, mas escutar o que eles produziam sonora e musicalmente, a partir de gritos, balbucios e repetições (Cirigliano, 2015).
Quando um musicoterapeuta que faz formação continuada em psicanálise escuta uma demanda de atendimento, de que lugar essa escuta o leva a oferecer análise a quem lhe procura pedindo musicoterapia? Qual seu posicionamento ético perante a clínica e principalmente perante si mesmo e perante o sujeito que o busca para ser atendido? São questões que norteiam este trabalho, inspirado em uma situação recente.
Recebi uma mensagem da coordenadora da clínica institucional de Musicoterapia, me indicando um paciente particular. Chamou-me a atenção a mensagem: “não é para a clínica de musicoterapia, não tem o perfil”. Qual é o perfil, existiria um perfil para musicoterapia e outro para análise?
Recebi o sujeito encaminhado e busquei escutá-lo, inicialmente via whatsapp onde se expressa com desenvoltura, e na entrevista, onde fala pausadamente, com inflexões marcadas por uma voz que em nada soa monótona: é ritmada, vivaz, embora algumas frases se repitam, como o estribilho de uma canção. Ele, para além dos vinte anos de idade, indaga sobre musicoterapia, que ele define como “uma terapia não verbal”. O que leva o sujeito falante buscar uma terapia não verbal? O que não dá para falar e só daria para cantar?
A música habita o ser humano, desde antes de seu nascimento até sua morte (COSTA, 2008 in Cirigliano, 2015). E, de acordo com Didier- Weill (1999, in Cirigliano, 2015) ultrapassa todas as leis escritas e torna transmissível a parte de real que a lei não pode assumir, considerando-se os tempos de constituição do sujeito. A música como ante-sala da palavra pode interessar à psicanálise porque a sonoridade traz algo de singular, uma lacuna que poderá ser preenchida pelo imaginário do receptor/ouvinte (Luiz, 2010, p. 37, in Cirigliano, 2015).
Lacan nos diz que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. A música também é uma linguagem, embora haja autores que sustentem exatamente o contrário. Minha leitura desse dilema é que se a música é linguagem mas o falante se expressa e faz uso da palavra a música cede seu lugar ao discurso verbal. Então, numa primeira reflexão, se meu paciente fala comigo, me envia mensagens em whatsapp e conta sua história a música enquanto linguagem não teria lugar senão o de fundo musical na sala de espera… lugar que, tampouco é qualquer. Muitas são as ocasiões em que a música, aparentemente escolhida de forma aleatória na sala de espera, conduz a associações e produções do sujeito no divã.
Mas por que musicoterapia, se a canção desse sujeito prescinde dos instrumentos musicais para que se faça ouvir??!!
O profissional musicoterapeuta é regido por um código de ética, seja qual abordagem teórica siga no atendimento ele explicitamente age em benefício do seu cliente. O cuidado aqui é que se faça uma distinção: que ele siga em suas ações não por uma moral de certo/errado, mas por uma ética que se constrói e que às vezes pode comportar transgressões. E o psicanalista? Regido pela ética do desejo (Cottet, 1989), “quanto mais o analista calar seu desejo mais será manifesta a alienação do desejo do paciente nesse lugar; o desejo do psicanalista, portanto não é o desejo pessoal de um psicanalista (como tantas vezes ocorre ao musicoterapeuta!), é uma função essencial para a confissão do desejo como exigente de reconhecimento” (p.158). Retomando Coutinho Jorge (2012), “ a exigência verdadeiramente ética da formação do psicanalista exige que seja concebida como permanente: se a análise pessoal tem um fim lógico, a formação do analista, a rigor, só tem início” (p.168).
A tentação de responder, por exemplo, que sou musicoterapeuta se meu paciente não fala é, portanto tão somente uma tentação, um sintoma, que precisa ser simbolizado e elaborado ao longo de uma prática clínica. Mais uma vez, Coutinho Jorge (2012) adverte: “como praticar a ética da psicanálise se o analista goza com sua escuta? Eu falo, você escuta, nós gozamos… Uma afirmação que traz questões ao eu do músico e do uso que pode fazer da música! E se o músico é um analista, qual ponto de estofo haveria para o inevitável terreno pantanoso do gozo da linguagem, seja ela verbal ou musical? Daí a supervisão se colocar como importante lugar, bem como a análise pessoal para que se possa usufruir da dança que um espaço de atendimento me fornece: duas salas, separadas por uma porta móvel, uma com um divã e a outra com um piano e um armário de instrumentos musicais, settings distintos, para análise e musicoterapia. Mas, o que ocorreria se meu analisando recordasse uma canção e precisasse executá-la? Se os espaços físicos são separados por uma porta mas eles coexistem em mim, se uma canção é trazida no discurso eu a ‘escuto’ em sua partitura. Por esse caminho, a escolha do lugar que a música ocupa pertence ao sujeito, que viverá em análise o lugar que a música ocupa em sua vida. A mim, cabe acolher e deixar que sua música soe, na pequena margem de liberdade de que nós falantes, dispomos.
Respondendo à questão sobre o atendimento clínico, reconheço que este se distanciou da ‘terapia’, se inventa com a psicanálise formando uma analista, mas não se dá sem a música, desde a sala de espera, passando pelo telefone e outros desafios que uma voz propõe, Desafios para teorizar levando em conta a cada atendimento, o ritmo que, com sua função de corte, age na estrutura, corta o gozo, trabalha a partir do pulso, que é real: não importa quão bela a voz do cantante (ou do falante) há que se submeter à batida da pulsação… Assim, vai nascendo um analista, em muitos momentos a fórceps, mas com a insistência da escuta … e da musicalidade que essa escuta singular envolve.
Referências:
CIRIGLIANO, M. (2015). Uma Pontuação Possível aos Discursos sobre o Autismo: a Voz no Autista. Tese de Doutorado. Universidade Federal Fluminense, RJ.
COTTET, S. (1989). Freud e o Desejo do Psicanalista. Zahar, RJ.
COUTINHO JORGE, M. A. (2012) Formação Permanente em Psicanálise: uma exigência ética. In: Lied, Mascarello & Remor (orgs).Sobre a Formação do Psicanalista: interrogações atuais em Convergência. Pandion, Florianópolis, SC.