Escola Lacaniana

(21) 2294-9336

procuradapoesia@escuta.deixeissofalar.com.ics

                                                                                                 Por Sandra Beck da Silva Etges

Apresentado na IX Ciranda de Psicanálise e Arte da ELP-RJ

            Dedico esse texto aos angustiados...

Inspirados em “Procura da Poesia[1]” de Carlos Drummond de Andrade*, poesia que faz parte de seu livro: A Rosa do Povo, publicado em 1945, “tempo de homens partidos”, onde o autor explicita o quanto é necessário paciência, tolerância e silêncio diante da angústia, afeto que caracteriza-se para Lacan por não mentir e, por isso, possibilita ao sujeito o movimento de lançar-se no campo da fala e da linguagem, numa tentativa de sair do desamparo provocado pela castração, que sempre nos remete ao não  haver saber possível sobre o gozo, ou a haver saber que não se sabe, pretendemos desenvolver algumas breves reflexões sobre a ética e o ato do analista na clínica do Lacan do campo do gozo contracenando-os com o sujeito no contemporâneo.

Então, se o sujeito em análise vai para o divã e rememora para se livrar da repetição inconsciente (que pulsão de morte é), para deixar de repetir sempre o mesmo texto e reinventar a existência com “os poemas que esperam por ser escritos”, como diz o poeta, isso requer tempo e muita paciência.

O poeta diz:

“(…) Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra com seu poder de palavra”

(Drummond, 1945, p.12).

Porque, na prática clínica, é pelo impossível de dizer que se mede o real “por ser o que estimula a se repetir”, e sabemos com Lacan*: “Que se diga, como fato, fica esquecido por trás do que é dito, no que se ouve” (1971/1972, p.213). Ora, o que fica esquecido no dizer é o gozo que, em transferência, comparece como enigma por faltar, ali, uma palavra.  Diante dessa ausência de palavra e de sentido, desse não saber sobre o gozo que real é, comparece a angústia: a/-φ, portanto, sempre de castração, afeto este que o sujeito na atualidade, agarrado e amarrado aos atuais dispositivos (os iPads, iPods, iPhones, conectados as redes sociais) procura driblar, “ou pior”, no lugar de falar, ouvir e buscar análise, o que possibilitaria angustiar-se para poder subjetivar e  suportar as perdas inerentes ao viver, no lugar de fazer luto  e com isso ter a possibilidade de reinventar(se) e criar, “optam”, amparados pelo princípio do prazer que nada quer perder, nem saber,  por somar e colar o que “curtiram” na internet. Assim, obturam suas faltas com imagens e textos prontos e da moda, dificultando a emergência de uma falta ou furo real essencial para o processo criativo e/ou imaginativo. Neste contexto de colagem ao imaginário da época, não há como sublimar e fazer arte e, não buscando um analista, também não comparece a possibilidade de, em transferência, questionar as certezas para poder procurar e encontrar o que da verdade se mostra como saber inconsciente. E, assim, diferente da poesia de 1945, a rosa não nasce no asfalto.

Para Giorgio Agamben*, o contemporâneo, tal qual a poesia, define-se por ser retorno, mas um retorno que é adiamento, retenção, não nostalgia ou busca por uma origem; é um caminhar, mas não é um simples marchar para frente, é um passo suspenso. “É um olhar para o não vivido no que é vivido.” (Agamben, 2009, p.19) Tal qual se faz em uma psicanálise.

Então, com o poeta:

“Não dramatizes, não invoques,  não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,   vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.” (Drummond, 1945, p.11, 12)

Retomando Agamben: “O voltar-se para trás, suspender o passo, ver no escuro a luz, entrever um limiar inapreensível entre o ‘ainda não’ e ‘um não mais’ e compreender a modernidade como imemorial e pré-histórica, são algumas das fraturas das cisões do tempo com as quais o sujeito tem que lidar”. (Agamben, 2009, p.20)

Com a poesia:

“Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.                                                                         
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.”
(Drummond, 1945, p.12)

Procurando-se fazer uma relação com o espaço temporal de uma análise, entre o “ainda não” e o “não mais”, estabelece-se uma falta, um real inapreensível, mas que se faz presente como furo no imaginário e como palavra que falta no simbólico. Diante disso, um analista, para bem interpretar, deve procurar saber na história contada do sujeito, da mesma maneira que Velásquez está no quadro As meninas, onde é que ele, enquanto analista, já estava, em que ponto e momento da historia do sujeito, como semblante, no dizer, porque o interpretador, tal como o poeta, é o analisando – e o analista, terá a vantagem de saber o que ocorre com a transferência, porque para além da sua pessoa, “há algo que já esteve lá”. ( Lacan, 1967/1968, p.246).

Retomando a poesia:

“Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia. (…)

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. (Drummond, 1945, p.11)

Lacan sempre insistiu que o amor viria em suplência à inexistência da relação sexual e comparece como semblante de o falo ser, e não a Coisa (das-Ding), como supôs Freud, o verdadeiro objeto do desejo. E sendo o falo da ordem do impossível real, cabe-nos perguntar: se do lado da satisfação pulsional temos a sublimação do artista que pode ocorrer à revelia de uma psicanálise, do lado do saber que não há, o que pode se suceder, por transferência, em uma psicanálise?

 No Lacan final, a transferência passa a ser o lugar onde deve comparecer a resposta ao enigma sobre o gozo do analisando e o trabalho do analista, sua interpretação, deve visar o real, ou seja, deve localizar no enunciado, no dito, no discurso “falhado” e repetido do analisando, o lugar preciso onde se encontra o não dito, que por semblante, aparecerá sempre em outra cena. Logo, diante do enigma sobre o seu desejo, que “não cessa de não se escrever” por ser da ordem do impossível (real), há que se recorrer à arte de ler as entrelinhas.

Com a  poesia:

“Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes.

Nem me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. (…)

O canto não é natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto”. (Drummond, 1945, p.11).

 Tal qual uma psicanálise. E, diferente da angústia, afeto que não mente – “como Lacan dizia, quem sente mente (senti ment)” (Miller, 1996, p. 107). Isso nos leva a deduzir com Miller que, do ponto de vista do desejo do sujeito em análise, Lacan nunca fez de um “não ceder quanto a seu desejo” um preceito – e achamos importante contextualizar com o autor* essa máxima:

“A única coisa, diz Lacan, de que se pode ser culpado na análise é por ter cedido quanto a seu desejo. Isso não constitui, portanto, um preceito positivo da ética da psicanálise – como poderia ser assim, uma vez que o desejo se define como sendo do Outro? Não posso de modo algum, dizer ‘meu’ desejo, como digo ‘meu’ corpo – impossível discernir o desejo para mim com toda propriedade (…). É o que faz do analisando o inocente do qual eu falava – inocente que busca seu desejo para encontrar a felicidade aí onde uma escolha se propõe, ao contrário, como disjunção.” (Miller, 1996, p.108)

Disjunção entre felicidade, desejo e gozo. Não seria exatamente por isso, pela disjunção entre essas instâncias na escolha, que o erotismo vai do amor à angústia?

Segundo Miller:

“A felicidade, no sentido analítico, compreende o sintoma. Ela não se define somente pelo prazer, pela satisfação, mas também pelo gozo enquanto este se constitui como obstáculo à elaboração do saber. Que o inocente – isto é, aquele que resiste em saber, (…) – se decida pela prova da análise, implica que seu sintoma, que faz parte de sua felicidade, se torne clínico, isto é, descubra-se como impossível de suportar e testemunhe, por essa via, algo do real. O inocente pode então engajar-se na análise para suportar o real.” (Miller, 1996, p. 108).

Por que as palavras não se adequam às coisas e a adequação do simbólico às coisas, segundo Lacan em O Momento de Concluir (1977), é meramente fantasmática. E, se fantasmática, como falar em ética? Para Miller*:

“(…) A ética do analisando é formulada, tanto em Freud como em Lacan, pelo Wo Es war soll Ich werden – aí onde isso era, deve advir o eu. É um imperativo, notem, que nada tem a ver em relação ao superego – o imperativo do superego enquanto ele formula Goza!, organiza, ao contrário, os sintomas.  Ele nada tem a ver com o imperativo de advir como eu aí onde isso era, aí onde isso falava, aí onde isso gozava. Vã, portanto, seria a discussão da ética do analista com aquela do analisando, pois o analista, por hipótese, adveio aí onde para ele isso era (…)”. (Miller, 1996, p. 113)

Então, do lugar de resto, de semblante do objeto a que resiste à demanda, o analista faz referência ao que há de real no objeto pulsional, vale dizer, ao que de gozo há no sintoma, fazendo uma diferença com o sintoma em Freud que dizia ser sintoma “a energia corporal contida no objeto pulsional”. Logo, para Lacan, o real não é energia, é gozo, o que provoca uma diferença lógica na maneira de o psicanalista escutar o analisando. Diante da impossibilidade do real, o que pode funcionar como interpretação? “O que além de um desejo – um desejo até ‘decidido’, como diz Lacan em Televisão – sustenta um tratamento? É aí que precisamos ampliar a dimensão da ética – há ética onde há escolha. E aí onde isso era, querer aí surgir, advir, até mesmo renascer, colocá-lo às claras é uma escolha”. (Miller, 1996, p. 113).  Se não houvesse a escolha, diz Miller, por que autorizar um sujeito a recolocar em jogo, na experiência analítica, o objetocausa de seu desejo, uma vez que é ele, o que no jogo nos permite manter nossa vida em nossas mãos? – O desejo, não se trata de liberá-lo, mas de resolvê-lo – e o psicanalista, nesse sentido,recebe apenas casos éticos: “A ética toca a existência, isto é, a dimensão impensável onde se decide a posição subjetiva, a escolha(…). Portanto, sobre o fundo do que perdura de perda pura, escolher.” (Miller, p.113, 114).

Com o poeta,

“Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

 tem mil faces secretas sob a face neutra

 e te pergunta, sem interesse pela resposta,

 pobre ou terrível, que lhes deres:

 Trouxeste a chave?.” (Drummond, 1945, p.12)

Sabemos, com Lacan, que o psicanalista, na psicanálise, não é sujeito, porque é ao não pensar que ele opera. Isso não quer dizer, absolutamente, que o psicanalista não precise saber o que fazer no seu trabalho clínico. Lacan procurou consertar esse “mal-entendido” sobre o “não saber” do psicanalista (criado por George Bataillle em uma conferência em Saint-Germain-des-Prés, na qual, segundo Lacan*, ele não dissera uma palavra), numa série de seminários proferidos aos alunos de psiquiatria em Sainte-Anne (1971-1972), sobre “O saber do psicanalista”. Em um desses seminários intitulado: Saber, ignorância, verdade e gozo, ele disse:

“(…) a interpretação demanda, para ser aceita, (…) trabalho. O saber, por sua vez, é da ordem do gozo. (…) de modo algum é necessário e de modo algum é suficiente compreender algo para que este se modifique.

A questão do saber do psicanalista não é, em absoluto, de saber se isso se articula ou não, mas de saber em que lugar é preciso estar para sustentá-lo.” (Lacan, 1971/1972, p.36)

Mais tarde, ele passa a dizer que um analista precisa saber o que fazer com o sintoma do analisando, ou seja, deveria ensinar o analisando a emendar, fazer suturas (nós) que o conectassem à nomeação de seu gozo. Ou seja, “encontrar um sentido implica saber qual é o nó, e emendá-lo bem, graças a um artifício” (Lacan, 1975/1976, p.71), para que uma análise possa produzir efeitos, para que uma análise permita a alguém, parafraseando Teresa Nazar*, encontrar uma resposta que o liberte do efeito de afânise, ou desaparecimento anulador de seu sintoma, porque “ter um sintoma é articular, fazer a emenda do imaginário que se vê e/ou escuta com o simbólico do saber inconsciente” (Nazar, 2011). E, quando fazemos essa emenda, nos diz Lacan, fazemos, ao mesmo tempo, outra, precisamente entre o que é simbólico e o real, e isso tem conseqüência imaginária, porque leva à intuição, a fantasiar o real, e, por sua vez, à idéia de nó, que tem sua dinâmica no ato de ver e/ou escutar. E, por aí, ter acesso ao que um significante lhe permite ser.

 Contracenando com a poesia:

“Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata (…)” (Drummond, 1945, p.12)

 Ao final de uma análise, confrontar Miller*, o testemunho esperado é como alguém soube fazer aí com a verdade mentirosa. Ou seja,como ele ali se entregou, capturou e, se espera, como se extraiu, liberou, para escrever, no seu tempo, o seu “poema”, a sua história.  Troca-se, finalmente, um gozo por uma “letra”, um sinthoma que o nomeie e o referencie singularmente. Neste ponto de vista, uma análise, diferente da sublimação do artista, responde a uma urgência. E cabe ao analista, do lugar de semblante do falo que lhe é destinado, inventar o ato que possibilite a emergência da “letra” que ali faltava, porque o inconsciente é movimento constante, resulta da morte da Coisa e, no lugar dessa perda, feito o luto da criança que se fora na fantasia dos pais, ocorrido o difícil reconhecimento de que não há saber possível sobre o gozo, neste impossível de saber sobre a relação sexual, neste des-ser, abre-se a possibilidade de se ficcionar a verdade, abre-se a possibilidade de criar e/ou inventar. Então, fundar o nome próprio, para além do pai simbólico, passa a ser reinventar o objeto a, a letra do gozo, que esteve na origem de seus diversos nomes e rótulos imaginários. É, segundo palavras de Teresa Nazar, “fazer existir o que não há, com o que se tem, com o que se é” e que se revela ou desvela em uma análise a partir do lugar de semblante do real que o analista, ali, opera.

Concluindo, diante da dessubjetivação subjetiva, destino de toda a análise onde o ato psicanalítico cumpriu sua função, diante da queda das antigas defesas (Lacan aponta que as formas clínicas, inclusive o desejo na neurose, todas as formas de erotismo, seriam uma defesa contra o impossível de suportar do real) resta ao sujeito, com a ajuda do enunciado e também da enunciação do psicanalista, enodar sintoma, fantasia (desejo) e gozo para produzir sinthoma como efeito de sublimação e/ou invenção – resta ao sujeito imaginar o real -.  Isso não teria a ver com a própria invenção da psicanálise? Com um ato de amor que, singularmente, convoca sempre a pergunta ‘o que é?’ todos os dias: – O que é o amor? O que é a felicidade? O que é a psicanálise? – Lacan já não teria dito que a psicanálise é a ciência do que falta ao homem para restituir, recuperar sua relação com a verdade e que esta, a verdade, tem estrutura de ficção? E que a fantasia é tela protetora do real?

Então, uma provocação: neste tempo marcado pelos atuais dispositivos, que exigem pressa e enquadramento a alguma tribo, grupo ou rede social, para se estar conectado ao mundo, o quê, enquanto psicanalistas, podemos fazer em relação à psicanálise, para quem sabe num futuro não tão distante, diferente de triunfar como as religiões, ela possa deixar a sua marca, ou seja, diante do impossível de suportar do real, provocar uma erótica criação, uma “Rosa do Povo”, a rosa que nasce no asfalto?

Referências Bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. (2008). O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos Ed., 2009.

ANDRADE, Carlos Drummond de. (1945). A Rosa do Povo. São Paulo: Companhia da Letras Ed., 2012.  

LACAN, Jacques. (1959-1960). O seminário, Livro 7, A  Ética  da   Psicanálise.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

————. (1967-1968).O Ato Psicanalítico. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

________. (1971-1972) Estou Falando com as Paredes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011

————. (1971-1972). O seminário, Livro 19, Ou Pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.

————. (1975/1976). O seminário, Livro 23, O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

————. (1977-1978). O Momento de Concluir. Seminário inédito.

MILLER, Jacques-Alain. Matemas I. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1996.

————. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan, O Sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2010.

NAZAR, Teresa Palazzo. Do agir ao ato psicanalítico, trabalho apresentado no Colóquio de Psicanálise, Rio de Janeiro, 13 e 14 de maio de 2011.

ANEXO 1:

PROCURA DA POESIA

                                         Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso

                                                                   [à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.

Nem me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo

                                                                          [das casas.

Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas

                                                     [junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável. 

Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície  intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceito-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Repara:

ermas de melodia e conceito,

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


* Texto em homenagem aos 110 anos do nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade, apresentado na IX Ciranda de Psicanálise da Escola Lacaniana de Psicanálise, no Rio de Janeiro, em setembro de 2012.

[1] Em anexo p. 9

* C. D. de Andrade, A Rosa do Povo.

* J. Lacan, Ou Pior.

* G. Agamben, O que é o contemporâneo e outros ensaios.

* J.-A. Miller, Matemas I.

* Ibdem.

* J. Lacan, Estou falando com as paredes.

* T. Nazar, Do agir ao ato psicanalítico.

* J.-A. Miller, Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma,( p. 102-103)