Inezinha Brandão Lied*
“Sei que o mal, que a capacidade para fazer o mal, é um fato universal próprio da humanidade inteira”.
François Cheng. Cinco meditaciones sobre la belleza.
Quero dizer de minha satisfação em estar hoje aqui participando desta XIV Ciranda Psicanálise e Arte, e agradeço à Tereza Nazar o amável convite.
Tocada pela arte pessoalmente, pois como filha de artista plástica e poeta, vi, convivi intensamente desde pequena em meio a telas, tintas, pincéis, gravuras, livros de arte, muitos encontros regados à poesia e música em minha casa que se prolongavam até quase o amanhecer. Pois bem, tudo isso não me deixava indiferente, ao contrário essa efervescência me fascinava. Não sou uma estudiosa da arte, apenas uma admiradora e o fascínio que na infância e adolescência a arte me despertava ainda está vivo em mim. Como psicanalista, a articulação Psicanálise e Arte tem me interessado há mais de duas décadas, é portanto desde este lugar – de uma psicanalista atravessada pela arte – que proponho as palavras que seguirão. O tema que nos reúne nesta XIV Ciranda Psicanálise e Arte se apresenta para mim como uma frutífera ocasião para trabalhar o campo denominado por Lacan de psicanálise em extensão.
Inicio então com algumas palavras sobre o campo da extensão. Na extensão não se trata de uma divulgação ou difusão da psicanálise, que com frequência, corre o risco de uma vulgarização de nossa disciplina psicanalítica quando sob a pretensão de tornar os conceitos mais “acessíveis” e “palatáveis” ao grande público, e na ânsia de simplificações perde o rigor e a precisão.
O campo da extensão procura trabalhar noções psicanalíticas para com elas fecundar um campo situado mais além do divã, além das paredes do consultório, introduzindo-se em problemáticas de outras disciplinas, de modo que seja possível recolocar questões, traçar novas fronteiras, enriquecer o corpus conceitual. Esta maneira de trabalhar gera um movimento de abertura fecunda no âmbito da intensão, sendo este – o campo da intensão – reservado para a prática efetiva da cura analítica.
Assim Lacan diferencia os dois campos – psicanálise em intensão e psicanálise em extensão (LACAN, 1967/2003) mas também os coloca em continuidade na figura topológica conhecida como banda de Moebius. Entre idas e voltas, vale dizer ainda que ao trabalhar com a extensão, a psicanálise se fertiliza em e com outras disciplinas com as quais tenha alguma conexão – a arte, indiscutivelmente, é uma destas disciplinas -fertilizando também o seu campo próprio, o da cura analítica.
Pois bem, tendo em vista estas preliminares sobre a extensão proponho pensar o Inumano em sua articulação com Das Unheimliche [ii] e a Arte.
Freud nos brinda com o belíssimo texto Das Unheimliche de 1919, marcando ali a importância do campo da estética para os psicanalistas que até aquele momento demonstravam pouco interesse por esta disciplina. O termo Estética tem origem grega – aisthésis – que significa sensibilidade e nos remete a “qualidades do sentir”. Resgatando a origem etimológica da palavra e a consequente ampliação do conceito, o pai da psicanálise convoca os psicanalistas a se ocuparem com o campo da estética. Freud retoma a definição de estética como tudo aquilo que diz respeito aos sentidos. Não se restringe ao que é belo como sua única manifestação, mas também ao que não é considerado belo, ao que quebra os padrões da beleza apolínea e harmônica da justa proporção, chegando inclusive a ser sinistro, podendo provocar horror.
Sustentado por amplo e rigoroso estudo do vocábulo Unheimliche Freud chama atenção para uma vertente da estética até então negligenciada pela literatura especializada – a categoria do sinistro. Quase nada se encontra sobre esta categoria nos tratados de estética por que diz Freud “preferem preocupar-se com o belo, atraente e sublime – isto é, com sentimentos de natureza positiva – e com circunstâncias e objetos que os trazem à tona, mais do que com os sentimentos opostos, de repulsa e aflição” (FREUD, 1919/1972: p.276). Unheimliche é algo inquietante[iii], é sentir-se incômodo.
Em alemão Un é um prefixo de negação. Heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que coincide com o seu oposto – Unheimliche – misterioso, oculto e secreto. Interessa ao mestre vienense investigar sob que condições aquilo que é familiar pode tornar-se sinistro. O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, velho, e há muito familiar. Diz Freud, “…o animismo, a magia e a bruxaria, a onipotência dos pensamentos, a atitude do homem para com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração compreendem praticamente todos os fatores que transformam algo assustador em algo estranho” (FREUD, 1919/1972: p.303).
Freud toma de Schelling a definição que lhe permite dizer o que é Unheimliche: “O que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz” (FRUD, 1919/1972: p.281). Rilke, por sua vez afirma que “o belo é o começo do terrível que podemos suportar” (citado por TRÍAS, 1992: p.17) O sinistro é então condição e limite da beleza.
Condição e limite também assinalados por Lacan em Kant com Sade ao definir a beleza como “barreira extrema para proibir o acesso a um horror fundamental” (LACAN, 1962/1998: p.787) A beleza é o véu último que obstaculiza nosso confronto com o horrível que está por trás do véu. E o que há atrás do véu? O nada que angustia, o abismo infinito e inominado, inefável em sua fronteira impossível. Quando o véu se rompe, irrompe o que deveria ter ficado oculto.
Impossível suportar. E por quê? Porque quando cai o véu caem as ilusões e o que aparece é o mais terrível que há em cada um de nós chamados de humanos. Seguindo o que nos ensina Freud, o inumano, o desumano ou tudo aquilo que seria condenável pelo humano, habita em nós e está ali, podendo manifestar-se, desvelar-se. Ou para dizer direta e brutalmente – o humano não dispensa o inumano em sua condição de estrutura; em sua constituição psíquica. Os campos de concentração e de extermínio, assim como as guerras são os mais terríveis exemplos de como o inumano pode se agigantar sobre o humano, cometendo atrocidades e barbáries. Como nos diz Freud em O Mal Estar na Civilização, os homens não são criaturas gentis, mas ao contrário, são criaturas dotadas de uma poderosa quota de agressividade (FREUD, 1930/1972). No referido texto, o pai da psicanálise trabalhou o que chamou de narcisismo das pequenas diferenças (FREUD, 1930/1972: p.136), conceito este que se articula com o complexo de castração e com a hostilidade. Esta última, vigente em cada laço entre falantes põe em questão os sentimentos solidários. Freud afirma que a hostilidade se constitui como o fator que perturba nosso relacionamento com o outro, nosso próximo. É, pois, nosso relacionamento com o outro a mais poderosa fonte de sofrimento.
O sinistro portador de mistérios, enigmas e segredos não domesticáveis pela Razão, sugere a presentificação do retorno de uma égide fantasmática-desiderativa imbuída de temores primordiais, (HARARI, 1998).
Podemos dizer com o poeta, crítico de arte e ensaísta argentino Squirru que “O sinistro se nutre das zonas obscuras e tenebrosas de nosso ser” (Squirru, citado por HARARI, 1998: p.29). Então, estamos falando de algo familiar que chegou a ser estranho e inóspito, algo que ao revelar-se mostra sua face sinistra precisamente por ser muito familiar e íntimo.
Mas o que isto tem a ver com a arte? Pois bem, a obra de arte é provocativa, pode provocar a surpresa, o inesperado, o horror, o asco. Podemos dizer que a arte confere potencia ao caráter bifronte de Unheimliche : ao mesmo tempo que revela, vela o mistério; sugere e o mostra ambiguamente. Neste sentido a arte é fetichista como diz Eugênio Trías. Uma das condições estéticas que fazem com que uma obra de arte seja bela é sua capacidade de revelar e de esconder algo sinistro. Para Trías, a arte transforma e transfigura esses desejos secretos, proibidos, eternamente temidos dando-lhes uma forma, uma figura, mantendo deles o que tem de vitalidade. (TRÍAS, 1992: p.42).
Afinal a arte tem um lugar de provocação, de surpresa, de protesto, e oferece um gozo estético, ao mostrar de maneira plástica , a miséria humana, em suas mais variadas formas. “A arte é necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente”. (FISCHER, 1977: p.20)
Para não incorrer no pessimismo generalizado e contagiante que invade nossa vida cotidiana nos tempos de hoje, podemos verificar que em meio aos dissabores e agruras da vida, respondemos com mostras de solidariedade, de coesão e de reconhecimento ao outro, ainda existem e seguirão existindo. Por isso a atualidade da afirmação freudiana “tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra” (FREUD, 1932/1972: p.259), ao que poderíamos dizer contra o inumano/desumano que há em todos nós. E é justamente aqui que a arte tem lugar fundamental.
Finalizo este breve texto com a impactante poesia de Liana Maya d’Ávila Brandão[iv] intitulada “Homem Formiga” (LIANA, 1984: p.167-171). A esta artista múltipla o meu reconhecimento por ter me aberto com simplicidade, vigor e vida os caminhos da arte e da sensibilidade, uma ímpar visão de mundo .
“Quando o homem
Na sua intenção macabra
O espaço do tempo e do infinito dominar
Pobres das gentes porque gentes já não seremos.
No tempo congelados,
Séculos passados,
Mil anos-luz iluminados
Só restarão para nós
Cupins abandonados.
Homem, acorda
E vê que teu lugar é agora
No século que passa
Trabalha
Procura
Vence
Mas com a mente d’alma infinita
E com os pés na terra.
Sonhar é bom
Mas é terrível o acordar …
Branca lua de ruas nevoentas
Brancos sóis clareando o infinito
Como coisas perdidas então
São destroços do nosso progresso
Que nos anos-luz se queimaram …
É gente que agora é formiga
Olho que agora é barriga
E a alma imortal onde está?
Séculos – séculos – séculos
Milhões de anos, nada mais
Porque, se congelados formos
Para a glória da ciência,
Para orgulho das nações,
N’um milenar futuro
Quando o gelo da mumificação
Dissolvido for nas luzes de outros tempos,
Nós teremos já,
Alma invisível e eterna,
Voando pelo espaço afora
Em busca da libertação.
Só restará então,
No sarcófago terrível da ciência
A FORMIGA
Com seus exércitos, sim
Mas, sem domínio
Diante da força
Da geração dos DEUSES ESPACIAIS”
(Liana Brandão. Marés do Tempo.)
REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS
- LACAN, J. Proposição 9 de Outubro de 1967. [1967/2003] Em Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
- FREUD, S. [1919] Das Unheimliche. Obras Completas. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago. 1976. v.XVII
- TRÍAS, E. [1992] Lo bello y lo sinistro. Barcelona: Editorial Ariel. 1992. 2ª edição.
- LACAN, J. [1962/1998] Kant com Sade. Em Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
- HARARI, R. Polifonias.[1998] Polifonias. Del Arte en psicoanálisis. Barcelona: Ediciones del Serbal.
- HARARI, R. [1994] Psicoanálisis in-mundo. Buenos Aires: Ediciones Kargieman.
- FREUD, S. [1933] Por que a guerra? Obras Completas. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago.1976. v. XXII.
- FREUD, S. [1930] O mal-estar na civilização. Obras Completas. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago. 1976. v. XXI.
- FREUD, S. [1927] O Futuro de uma ilusão. Obras Completas. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago. 1976. v. XXI
- GONÇALVES, D. [2003] Ser ou não ser arte. Editado pelo autor. Porto Alegre.
- CHENG, F. [2007] Cinco meditaciones sobre la belleza. Madri: Ediciones Siruela. p.18.
- FISCHER, E. [1977] A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: Zahar. 6ª edição.
BRANDÃO, L. [1984] Marés do Tempo. Porto Alegre: Editora Bra
NOTAS
[i] O presente texto é uma versão modificada do texto apresentado por ocasião do Colóquio Internacional de Convergencia “O Estrangeiro e Das Unheimliche“, que se realizou em Florianópolis, em 15/06/16.
[ii] Em português Das Unheimliche foi traduzido por O Estranho, optamos por manter no texto o termo alemão a fim de preservar a riqueza e complexidade do termo utilizado por Freud.
[iii] Em francês Unheimliche foi traduzido por inquietant etrangeté (inquietante estranheza).
[iv] Liana Maya d’Ávila Brandão, faleceu aos 94 anos em fevereiro de 2016. Inquieta e irreverente, deixou em sua obra as marcas de sua inquietação com a vida, com as desigualdades, com o feminino entre tantos outros temas de seus quadros e de seus 7 livros, e muitos outros escritos. Ver mais sobre a artista em: TV AL (Assembleia Legislativa de Santa Catarina). Isabela Althoff. Palavra Aberta com Liana Brandão. YouTube 10/12/20013. Disponível em agenciaal.alesc.sc.gov.br › Início › Programas.
Maiêutica Florianópolis. Liana Brandão -In Memorian (Psicanálise e Arte). YouTube 15/11/2016. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=UMNYkKJbKF8.