Escola Lacaniana

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Judeus fora! O não-lugar

Por Maria Cecilia Brêtas 

 

             

                            É judeu quem é suficientemente louco 

                            Para admitir que é judeu.                                                                                  

                            Não está no sangue ou na língua. 

                                                               Amós Oz 

                                                          

    A figura do judeu, que obviamente se trata de um personagem imaginado (que pode ou não ter relação com pessoas judias reais), tem historicamente ocupado um papel negativo na sociedade chamada ocidental. 

   As primeiras tensões do fenômeno que hoje chamamos de antissemitismo, se manifestaram nos antigos reinos helenísticos, quando judeus sobretudo no Egito, ocupavam um espaço em certo sentido intermediário entre cidadãos e estrangeiros. Localizavam-se em um não lugar – o que não significa uma ausência de identidade e do julgamento do outro. 

    Na Idade Média o aspecto do não-lugar foi reforçado. A dispersão iniciada desde o domínio romano, forçou os judeus a estabelecerem comunidades em lugares longínquos. Não formavam uma categoria social bem definida dentro das estruturas feudais. Não eram livres nem servos, e em muitos lugares não tinham direito a possuir terras ou portar armas. A figura do judeu tampouco se encaixava nos modelos com os quais a cristandade ocidental imaginava aqueles que não faziam parte dela: pagãos, hereges e infiéis. Os pagãos seriam os das religiões politeístas e povos que desconheciam o cristianismo, o que não era o caso dos judeus tidos como hereges,  cristãos desviantes, os infiéis que renegavam a verdade cristã. 

    Observa-se que na construção histórica do imaginário dessa figura do judeu, ele ocupa um estranho não-lugar – e aquele que não ocupa um lugar está pela sua própria existência subvertendo a ordem, e portanto ameaçando-a. No entanto, a partir da Modernidade ele será fonte de uma criatividade intelectual, científica e política singular, legando para a humanidade figuras como Freud, Kafka, Einstein, Hanna Arendt, Walter Benjamin, o que incomodará os detentores de poder. Este não-lugar, este imaginário, é maleável e poderá ser visto como um potencial subversor de ordens sociais das mais diversas.  

    Já num período de decadência feudal e desenvolvimento das cidades, a retomada do comércio produziu novas dinâmicas sociais. Já que não podiam ser proprietários de terras, migraram para os burgos onde se dedicaram a ofícios, um deles de particular importância para a compreensão do insólito mito do judeu usurário: o empréstimo de dinheiro à juros. Destacaram-se também no comércio internacional, criando as primeiras redes mercantis do mundo. Mas nada disso os eximia de estarem em guetos e usarem sinais distintivos. 

    Foi explorada na literatura e enraizado no inconsciente popular, a prosperidade do “pária “, “usurário” e “contraventor da fé cristã “.  Vemos em “ o judeu de Malta” de Marlowe, Shylock do Mercador de Veneza de Shakespeare, a caricatura grotesca e o assunto favorito das platéias inglesas. 

    A visão hostil perante um judeu tacanho e calculista,  circulava suficientemente pela Europa moderna para que fosse utilizada como argumento nos debates públicos, sobre as agruras do capitalismo ainda emergente. Surgiu um antissemitismo anticapitalista em meio às circunstâncias transformadoras da sociedade ocidental, que foram aprofundadas pelo Iluminismo na Revolução Industrial. 

    Como o papel subversivo da figura do judeu é maleável, ao mesmo tempo em que pôde ser associado ao capitalismo em ascensão, o judeu também foi na passagem do século XIX para o XX,associado ao comunismo, o novo grande questionamento à ordem vigente. Não significa que os ideais revolucionários tivessem adesão da maioria dos judeus, mas nesse imaginário, militantes de esquerda das mais variadas tendências eram agrupados em um mesmo todo fantasioso. 

    No último terço do século XIX , o antissemitismo reapareceu com novas roupagens, mais modernas, sustentado menos por preconceitos religiosos e mais em novas ideias: o racismo e o nacionalismo. Este antissemitismo repaginado,  sinalizava os limites do Iluminismo, que desde o fim do século XVIII parecia ser a fonte da liberdade dos judeus europeus. No leste europeu havia uma massa de judeus miseráveis que tentava sobreviver como um sub-proletariado em um império de industrialização tardia e imerso em estruturas sociais pré-industriais com condições precárias para trabalhadores e manifestando um antissemitismo violento. Enquanto isso ganhava força na Europa o anti-comunismo com adesão de nacionalistas contrariados pelo internacionalismo comunista, monarquistas, conservadores e grande parte da Igreja, que viam no comunismo a dissolução da religião e do poder das instituições tradicionais. A conjugação do anticomunismo com o antissemitismo servia ao propósito de que os judeus que ocupavam um não-lugar (sem nação, classe ou lugar  social definido), se tornassem facilmente encaixáveis no perfil de subversivos. O mito do judeu comunista ganhou dimensões com o nazismo, que entre outros mitos antissemitas, associava judeus e comunistas, os dois maiores inimigos do ideário ideológico. 

    Aos poucos eles começaram a marcar presença na sociedade. Frequentavam círculos sociais, habitavam qualquer bairro e tornaram-se menos distinguíveis participando de setores diversificados da economia, universidades e em menor proporção instituições de Estado como tribunais, forças armadas e a política institucional. Com a emancipação, o judeu moderno perdeu os elementos de identificação imediata, possibilitando que a crença nos supostos planos de conspiração ganhassem adeptos. Nos discursos de Hitler, “discurso democrático popular”, o judeu era sanguinário e tiranizador de povos. 

    Após a 2a Guerra Mundial, a comoção com a tragédia que se abateu, fez com que a materialização do antissemitismo tivesse um arrefecimento e um período de relativa tranquilidade. No entanto, o imaginário sobre o não-lugar da figura do judeu permanece. As características muitas vezes antagônicas que alimentaram o mito do judeu subversivo foram remodeladas e ganharam ressonância nas décadas seguintes ao genocídio cometido pelos nazistas e colaboradores.  

    A psicanálise nasceu no contexto da cultura judaica vienense. Os primeiros membros do movimento eram todos judeus e permaneceu limitada a esse grupo até a adesão de Jung, médico suíço em 1906. Esse grupo encontrava-se envolvido num mesmo processo social que obrigava a cada um ter que se pensar como judeu, positiva ou negativamente. Freud fez questão de incluir Jung, cristão, filho de pastor, fazendo com que a psicanálise escapasse do perigo de se tornar uma questão nacional judaica. 

    Sem dúvida, apesar de seu afastamento de qualquer prática religiosa, Freud principalmente quando as investidas antissemitas se propagavam pela Europa, afirmava-se judeu. Em 1926, tomado por uma terrível decepção declarou: “minha língua é alemã, minha cultura, meus vínculos são alemães. Eu me considerava um alemão até me aperceber do aumento crescente dos preconceitos antissemitas na Alemanha e na Áustria. Desde então não me considero mais alemão, prefiro denominar-me judeu.” Como ele próprio revelou, quando menino, foi preso do horror ao constatar a resignação paterna diante dos insultos de uma cultura que exclui aquilo que não encontra lugar em suas representações identitárias ideais. ( passeando com o pai, alguém arranca o chapéu dele jogando-o ao chão, e seu pai nada faz, limitando-se a agachar e apanhar o chapéu de volta). Foi este mesmo horror que o levou a procurar na tenacidade e na tolerância que identificava como traços marcantes da história do povo judeu, um caminho de ação e prática. Diz Freud, “ apenas penso que como judeus, se quisermos participar de algo, temos que desenvolver um pouco de masoquismo, estar dispostos a permitir que nos façam alguma injustiça. De outra forma, é impossível conviver”. 

    Freud não se limitou a falar da solidão dos que estão à margem, a aceitar o isolamento dos excluídos e aprender com eles, sustentar a alteridade e marcar a diferença inassimilável. Mesmo quando tudo isso vem provocar hostilidade contra o tratamento, essas posições devem ser mantidas, pois resumem a condição do analista. Também sabe-se que só há criação original quando o sujeito se exila do todo. Diz ele: “ por ser judeu, estava livre de muitos preceitos que limitam outros no uso de sua inteligência; e como judeu estava preparado para passar à oposição e renunciar ao acordo da “maioria compacta”.  Em seu texto “ As resistências à psicanálise “, ele define a ciência como um ponto de corte, um operador que fere os sentimentos da humanidade ao introduzir rupturas onde se pensam igualdades, ao provocar estranheza onde se quer harmonia do todo. 

     Freud fez bom uso dessa posição paradoxal de dentro/fora em favor de sua descoberta: buscou o sujeito da psicanálise fora do visível para incluí-lo, rompeu as ligações visíveis fazendo com que aparecessem ligações reais; mostrou ser possível dissipar as significações articuladas e completas para que o sentido venha a emergir, sempre lacunar. Quando os pacientes o procuraram por força de um sofrimento, ele pôde ver que todos independentemente da cultura, etnia e sexo, eram de certa forma “ sujeitos da Diáspora “, isto é, se algumas fronteiras fixavam suas identidades à ordem do mesmo, os pacientes, porque eram divididos, frequentavam também o país do Outro, aquele que está para além de toda fronteira: O INCONSCIENTE. 

    Diz Freud que a pulsão é um conceito limite entre o psíquico e o somático, isto é, não pertence a um registro ou a outro, mas está entre dois. Com esse conceito de  pulsão, Freud carimbou de vez a psicanálise como um saber extraterritorial, e sem identidade nacional. Daí a visceral estranheza constitutiva do judaísmo e da psicanálise.  

 

 

 

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