Escola Lacaniana

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Destinos para a Voz

Márcia Cirigliano [1]

 

Começo agradecendo a oportunidade de escutar tantos trabalhos nesta Jornada, que vão se decantando e compartilhar as recentes discussões que acompanho em minhas pesquisas quanto à pulsão invocante e seu objeto, a voz. Aproveito para acrescentar um ponto de interrogação para o título proposto, que me faz questão: haveria destinos para a voz? Sendo a voz inapreensível, quais seriam seus destinos?

Durante a divulgação desta Jornada, em redes sociais, uma frase me capturou: “as pulsões são no corpo eco do fato de que há um dizer” (Lacan, 1975-76; 2007). Há tempos, na XV Ciranda de Psicanálise e Arte falei sobre o eco no texto E Quando faltam as Palavras? (Cirigliano, 2015). Ecoar, ressoar… seriam destinos? Ou seriam endereçamentos?

Retomando a frase que me fisgou, para que um dizer ressoe é preciso pensar em alguma sensibilidade do corpo, no que concerne a seus orifícios, dos quais o mais instigante é o ouvido, porque ele não pode se tapar sozinho, se fechar. Retornei à tese de doutorado em 2015. Nela estavam as marcas, a voz do texto de Flávia Chiapetta, com quem compartilho a discussão desta mesa. Nela recortei uma questão importante, até hoje, e muito forte na minha formação: a linguagem musical, as possíveis articulações entre Psicanálise e Música. Comparando com as descobertas em leituras e grupo de trabalho avanço um pouco agora, a pensar mais calma e detidamente sobre a clínica do autismo. Quais os destinos para a voz? É o que essa Jornada me convoca a falar: o que pode o analista ante esse ‘corpo’ às vezes fechado, inexpressivo, que grita, come sapato, joga as coisas longe?

Voz e olhar, objetos que Lacan nos apresenta. Objetos da pulsão, ligados ao desejo do sujeito em relação ao Outro (Olhar) e do Outro em relação ao sujeito (Voz). Assim como o olhar nada tem a ver com o órgão (o olho) – embora seja o que vemos que o contorna – a voz é áfona, um vazio que contornamos falando, cantando ou silenciando e até gritando.

No autismo grave, onde a psiquiatria aponta para estereotipias, automutilação e agressividade, um sintoma que parece fazer questão ao psicanalista (que me fez questão em alguns atendimentos) é o mutismo, decorrente muitas vezes, como forma de evitar a demanda do Outro. Entretanto, se o autista evita falar, percebe-se que é sensível à música. Assim, para além dos procedimentos tidos como terapêuticos, nas várias abordagens ao autismo, a Psicanálise, no estudo da voz como objeto pulsional, aponta para uma escuta em sintonia fina: o autista reage aos timbres agudos e ao canto operístico. Em seu livro A Voz no Divã, Vivés (2020) destaca a função da ópera no laço social, do seu auge até seu declínio. Desde os castratti, que tinham vozes angelicais, às divas que trabalham os agudos em composições artísticas cada vez mais exigentes, a pulsão invocante é associada ao gozo. Vivés relembra que “com a aparição da ópera no século XVII, explicita-se o gozo da voz, em estados extremos” (p. 95). Nas árias cada vez mais agudas, a voz vai arrancar-se dos limites que a Lei havia lhe designado. Árias em que a voz se desdobra, liberada ao máximo das restrições da fala. Citando Vivés (2020): “O canto vela a voz, o grito ou o silêncio em sua comum dimensão de continuidade a desvela, enquanto que a música a revela, pois articula as dimensões do contínuo e descontínuo” (p. 103).

Inês Catão (2009) aponta que no autismo “a voz considerada como enunciação está ausente, a menos que um outro (Outro) decida o contrário” (p.143). O analista, fazendo a função de Outro primordial pode supor nele, um sujeito, à diferença do psicótico em que a voz é a parte da cadeia significante inassimilável pelo sujeito, sendo por isso mesmo subjetivamente atribuída ao Outro.

Assim, no autismo a voz não desempenha sua função de articulador entre Real e Simbólico e, desse modo, a percepção da voz do Outro não chega a ocorrer plenamente. Se a música é a experiência mais próxima do Real, como já atestou Didier-Weill (1999), se a pulsão invocante é a mais próxima do inconsciente e se o autismo é pura invasão do Real, porque no autista o som permanece ruído, percebemos que a música pode ser um recurso importante, especialmente no que tange ao objeto voz, para que haja um endereçamento (Cirigliano, 2015, p. 85).

No entanto, como qualquer estratégia, a via musical deve ser dosada, há que ter cuidado.

O autista, musicalmente, responde de forma bem diferente do psicótico. Apesar disso, fica difícil estabelecer este indício como critério diagnóstico, por se tratar apenas de uma pista, a partir da observação clínica de autistas graves, que não falam. O mutismo é elemento importante a considerar, se o examinamos pelo viés da pulsão invocante. Se o autista não se faz ouvir (terceiro tempo da pulsão invocante: fazer-se ouvir), pode não o fazer verbalmente, mas o faz musicalmente, rende-se ao melódico, se há esta aposta do lado do analista.

Pacientes psicóticos (esquizofrênicos) também reagem a outras formas artísticas (pintura, escultura, etc.). O autista, se reage a outras artes, costuma permanecer em apenas uma delas, o que nos leva a perguntar: estaria ele nos tempos de constituição do sujeito em um passo anterior ao que estaria o psicótico?

A Ária da Boneca, nos Contos de Hoffman pode, talvez, instruir o analista como já assinalava Lacan, sobre os autistas, na Conferência de Genebra (1975): falam muitas coisas, são verbosos, mas quem os escuta? Verboso, verbo, ação.

O personagem da boneca no conto de Offenbach é movido à corda, tem os olhos opacos e só pode se movimentar se os seus criadores lhe dão corda. O cientista, orgulhoso da boneca que constrói, avisa que ‘tem olhos para tudo’.

Seria assim no tratamento que se pode disponibilizar ao autista? Há que dar corda, a-cordar, ser ativo, apostar, insistir. O analista se movimenta mais, oferece algo mais?

Nos Contos de Hoffman, a boneca de olhos vazados faz pensar na formação de analista: que sintonia fina posso estabelecer? O que olho e não vejo no autismo, o que estaria ‘engessado’ em mim? O que isso fala em mim, no meu silêncio? O ponto surdo, desenvolvido por Vivés (2020), necessário a que o sujeito se torne invocante, não ocorre no autismo. Da minha observação clínica, sou convocada a dar valor de enunciação ao grito do paciente autista, nota musical a ser envelopada em um acorde ou melodia, para que daí, na aposta de que algo possa advir na voz, haja uma conversa, na qual eu possa me inserir. Recorro a lalangue: Voz e Olhar juntos, nos cacos musicais que podem virar melodia. Se é preciso dar corda, há que pensar o quanto, pois se for excessiva, a boneca se quebra… boneca-autista, boneca-analista em formação: repete o que estuda nos cartéis – onde, segundo Teresa Nazar (2022), no curso da Escola Lacaniana de Psicanálise de Brasília, “o texto é o analista que interroga” – o que escuta? Suporta erro, gritaria, fracasso, silêncio? O que pode criar, inventar? Penso que a escuta em supervisão, nos desdobramentos dos casos que atendo, possa fornecer esse material, a ser trabalhado em análise. A formação trouxe também a música dos falantes: o Real dos sussurros e o grito em outro lugar, da ópera de cada sujeito.

Entre o canto e a corda, o amor, a aposta na transferência. Ainda que transferência musical, mas no Real da música algo que pode advir, nos intervalos entre notas, nos limites do corpo, pois “a voz sem a lei cai no gozo mortífero. A lei, sem a voz, permanece letra morta” (Vivés, 2020, p.71). Então, o que pode um analista? A que o autista o convoca? O analista não precisa ser músico, mas, talvez, se render à Voz nele, à sua música.

Podemos perceber algumas nuances no vídeo que vamos assistir. Variações de intensidade, agudos vários e cada vez mais exigentes para a solista, a participação do coro à semelhança da tragédia grega, destacando momentos importantes da cena. Deixo para que vocês apontem outras nuances mais. E desde já agradeço.

 

 

Referências Bibliográficas

 

CATÃO, Inês. O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. São Paulo: Instituto Langage, 2009.

CIRIGLIANO, M. M. da S. Uma pontuação possível aos discursos sobre o autismo – interlocuções entre análise de discurso, psicanálise e musicoterapia. 2015. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras. Niterói, 2015.

DIDIER-WEILL, Alain. Invocações. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.

VIVÉS, J-M. A voz no divã. São Paulo: Aller, 2020.

 

Referências Webgráficas

Escola Lacaniana de Psicanálise de Brasília (ELPB). FORMAÇÃO DO ANALISTA. 9 de junho 2022. Link: https://meet.google.com/btt-jkpk-roz

OFFENBACH. Les oiseaux dans la charmille. Disponível em:

https://fb.watch/cDInbTcs7E/

 

[1] Psicanalista, membro da ELP-RJ.

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