Abílio Ribeiro Alves
Que cura podemos esperar de uma psicanálise? Freud nos adiantou que os resultados terapêuticos vêm por acréscimo. Se a cura dos sintomas não é o fim último, o que se pode esperar de um final. Lacan propõe que no final de uma análise poderemos ou não verificar uma passagem de analisante à analista. Significa dizer que aqueles que concluem o seu percurso se tornarão analistas praticantes? Não é isso, Lacan propõe uma nova articulação entre o saber e a experiência: “O analisante se torna analista de sua própria experiência”.
Em nossa clínica da vida quotidiana nos são endereçadas demandas urgentes sobre dores ou sintomas impeditivos e, muitas vezes, uma análise se interrompe num ponto em que o sujeito caminha com alguma autonomia. Há limites estabelecidos pela transferência. Porém, o que nos interessa momentaneamente da afirmação lacaniana é que o analista não deve seguir metas prévias de cura, um padrão dominante e normativo de saúde mental e, ainda, submeter-se ao campo da medicina. Uma análise, atingindo ou não o seu fim, deixa restos de uma experiência singular, mais do que possíveis resultados terapêuticos, algumas retificações do sujeito lhe permitem assumir a responsabilidade de certas escolhas. Se o analista é alguém que fez suficientemente a travessia da própria experiência, estará advertido de que não se pode poupar ninguém de enfrentar o seu próprio caminho, que não se pode esperar ou prometer nenhuma cura modelo. O recorte clínico que abordaremos aqui visa trazer alguns impasses e desafios da clínica psicanalítica hoje.
Durante alguns anos me ocupei com a escuta e condução de um caso de difícil manejo e diagnóstico. Um quadro que facilmente poderia ser tomado como “fronteiriço” (borderline). Porém, quando chegou para as primeiras entrevistas já trazia um diagnóstico de T.O.C. (Transtorno Obsessivo Compulsivo). L se queixava de inquietação, agitação motora, opressoras ideias de fracasso e inadequação. L também apresentava enormes dificuldades sociais. Foi dispensado de dois estágios por não fazer vínculos ou laços de trabalho, num deles foi acusado de ofender moralmente uma colega. A única namorada que teve disse-lhe ao terminar o relacionamento: “Será que você consegue se interessar realmente por alguém”?
L não sofria ou se queixava exatamente de seu isolamento social, estava habituado a fazer quase tudo sozinho: festas; saídas noturnas; cinema; etc. O que o ameaçava era o medo de fracassar, de não conseguir ter uma carreira ou profissão. Temia terrivelmente não concluir a faculdade. Escolheu o curso por influência do pai, o seu verdadeiro desejo era outro. Durante muito tempo essas eram as obsessões que o atormentavam na vida e em análise.
Quando criança, foi submetido à avaliação psicológica com resultado inconclusivo sobre a hipótese de autismo. Parecia-me bastante possível tal diagnóstico, entretanto, ocorria perguntar-me: O que ocorre com o autismo infantil em alguém que atingiu a idade adulta e que responde a certas expectativas sociais? L sempre esteve às voltas com suas perturbações, indiferente à falta de amigos, frequentava aplicativos de relacionamento mas não concretizava os encontros, se restringia às relações familiares, contudo, estava minimamente inserido e ocupado com os compromissos e responsabilidades de sua vida.
A análise o ajudou a concluir a faculdade e a retraçar os seus planos, entrou para o mestrado com um projeto que o reaproximava de sua área inicial de interesse. A passagem para uma etapa mais avançada de sua vida adulta, aos poucos, fez retornar antigas dificuldades e impasses: inadequação social, isolamento e uma recorrente situação persecutória. Um momento crítico se instalou.
Os pensamentos perturbadores sempre acompanharam os seus relatos, contudo, havia uma situação que se destacava como central em sua análise. L nasceu numa família que progrediu cultural e economicamente, o ideal de uma vida de estudo e trabalho no estrangeiro era altamente estimulado pelos pais. Ao final do ensino médio, os pais comunicaram a L que ele iria se preparar para um intercâmbio no exterior. L se dedicou intensamente ao estudo de uma língua estrangeira. O seu objetivo era alcançar uma pronúncia perfeita, como se fosse a própria língua nativa. Às vésperas da viagem, foi tomado de dúvidas e receios, pensou em desistir. Não comunicou aos pais o seu impasse e viajou mesmo assim.
Já no exterior, quanto mais se empenhava na demonstração de seu conhecimento da língua mais era corrigido em sua pronúncia, chegou a ouvir de um professor que a língua que ele ali falava era outra que não aquela a qual veio estudar. De fato, me ocorria que ele criara novas sonoridades fonéticas, percebia isso quando se dirigia a mim nessa língua estrangeira, mas nada disse a ele. Quanto ao comentário do professor, L o retrucou e passou a travar com ele uma guerra particular. O professor tornou-se o seu rival ou oponente. Vivendo muitas dificuldades de adaptação e relacionamento foi orientado a buscar ajuda psicológica ou a voltar imediatamente para o seu país. L numa atitude desafiadora não acatou tal orientação. E todos pareciam perplexos. Mesmo vivendo uma situação muito delicada, conseguiu levar o curso até o fim. Em seu derradeiro encontro com o seu “antagonista e perseguidor”, L lhe ofereceu o dedo do meio saindo em disparada e tendo aquele que foi ofendido literalmente atrás dele.
Esse episódio relatado em análise parecia desencadear a construção de um possível sistema delirante. A pronúncia da língua e a figura do professor eram os seus elementos centrais. L tomava-se numa ligação permanente com o curso e a obsessão pela pronúncia, mesmo à distância, ele estava convicto de que ainda era alvo das atenções do professor.
O sistema delirante se constituindo em torno da língua estrangeira apontava, na escuta analítica, para um problema na recepção da língua materna: seria ele um errante na língua mãe? Se a língua materna é a princípio estrangeira, o que o impedia de apropriar-se dela. Ele não tinha dificuldades com a língua portuguesa, não é isso. Tratar-se-ia de uma pane na transmissão da língua da mãe e um possível diagnóstico de autismo infantil?
Enquanto a direção da análise seguia apostando num caminho possível por onde essa errância pela língua estrangeira fizesse certa ancoragem na construção delirante, os pais pareciam impedidos em seus anseios grandiosos de perceber as reais dificuldades de L, então, resolveram levá-lo a um novo psiquiatra que não hesitou em diagnosticar uma Síndrome de Asperger, indicando também um novo tratamento: Treinamento de Habilidades Sociais.
A Síndrome de Asperger é um transtorno do espectro autista que se caracteriza por dificuldades significativas de interação social, pensamento concreto e linguagem atípica ou excêntrica ( pt.m.wikipedia,org). O Treinamento de Habilidades Sociais (THS) é uma ferramenta que teria como objetivo ajudar na instalação, ampliação e lapidação de habilidades sociais (inpaonline.com.br).
L veio à sessão comunicar a interrupção temporária da análise. Explica que o THS seria um tratamento mais específico para o seu caso, tão logo o concluísse poderia retornar para análise. Recebi ainda um telefonema do novo psiquiatra que justifica a necessidade da nova orientação dado o diagnóstico da síndrome. Respondi ao médico que um possível diagnóstico de autismo infantil sempre me pareceu possível, todavia, L cresceu e estava podendo falar ele mesmo de suas grandes dificuldades. Concluindo, acrescentei que a psicanálise visava ao sujeito e seu discurso e não em última instância ao diagnóstico. Será que a errância de L em torno da língua sempre estrangeira se resolveria através da alienação e obediência ao treinamento indicado pelo médico e acatado por seus pais?
A referência bibliográfica que adotaremos a partir daqui é a do livro de Chiapetta de Azevedo: Autismo e Psicanálise_ o lugar possível do analista na direção do tratamento (Juruá; 2009).
O termo autismo surge pela primeira vez através de Bleuler em 1911 como uma característica da esquizofrenia: a perda de contato com a realidade (p. 27). Leon Kanner, em 1943, introduz a noção de autismo infantil precoce, deixando de ser um aspecto da esquizofrenia e adquirindo uma especificidade clínica (p.28). A síndrome é caracterizada pela incapacidade da criança, desde muito cedo, de se relacionar com pessoas e situações. O termo precoce se remete à própria entrada do bebê no mundo. Algo que interfere na relação com a linguagem, em que a concretude do significante se dá por uma ausência de metaforização, comprometimento da comunicação, da integração social, ainda, estereotipia e repetição de comportamentos (p.28). Atualmente, o enfoque psiquiátrico visa dar conta das variações fenomênicas e de suas descrições, bem como busca no tratamento o desaparecimento dos fenômenos (CHIAPETTA DE AZEVEDO, p.29).
Em seu artigo Autista: um escravo da linguagem, Bernard Nominé (2001) pondera que apesar dos autistas não manifestarem interesse pela presença do outro, podem se manifestar sobre a invasão de falas e vozes tapando os ouvidos ou mesmo, para os que conseguem falar, denunciando que ouvem demais. Isso nos deixa uma questão muito relevante: qual seria o estatuto do Outro no autismo, totalmente ausente ou presente demais (CHIAPETTA DE AZEVEDO, p. 93)?
Esteja o Outro totalmente ausente ou presente demais, na ausência absoluta ou no excesso, em ambos os casos o sujeito não pode ancorar-se numa diferença trazida pela introdução de um significante como marca simbólica do Outro. A submissão às imposições dos pais ou a solidão no exílio estrangeiro não permitiam a L valer-se de nenhuma inscrição de ancoragem, a língua que fala e que ouve é sempre estrangeira. O sistema delirante que tenta construir talvez seja uma suplência possível ao exílio ou invasão do Outro sempre em sua dimensão real.
Chiapetta Azevedo cita Colette Soller (1983): “Parece que essas crianças permanecem aquém do limite de toda simbolização […] e nesse sentido o Outro permanece para ele [o pequeno autista] puramente real […]” (idem, p. 93-94).
Então o Outro no autismo é real e não chegou a se constituir simbolicamente? Se o “inconsciente é estruturado como uma linguagem”, o sujeito ($) recebe do Outro a sua própria mensagem sob a forma invertida, ou seja, aquilo que está recalcado na própria mensagem. Se o sujeito diz “Você é minha mulher”, ele recebe do Outro: “Eu sou seu homem”. Esse é o certificado que o sujeito ($) recebe do Outro em efeito significante, pois homem é o significante que apresenta o sujeito ($) para outro significante: mulher. Seria o caso de se postular que no autismo não há certificado de recepção vindo do Outro? O que é essa língua estrangeira que entre o emissor e receptor (L e o seu professor) resta sempre incompreensível? Essa ausência de certificado de recepção da mensagem do Outro poderia ser tomada como não operação da Bejahung, digamos: um sim ou admissão no simbólico de uma primeira marca da diferença do Outro?
L reconhece que viveu nessa experiência no estrangeiro o que ele mesmo definiu como um surto. Já de volta, vive muitas dificuldades para se situar, de encontrar um lugar para si. Passa a apresentar inquietação e agitação do pensamento e motora, sofre de ideias intensas e terríveis de inadequação e fracasso. Em análise, ele começa a constituir, ao que parece, um sistema delirante em torno da experiência vivida, da língua estrangeira e do professor-perseguidor. Conclui a graduação e entra no mestrado através de uma pesquisa que se aproxima mais de sua área de interesse. Tudo caminha melhor até ali. Mas, ele vai esbarrar nos limites que seus pais teimam em não reconhecer em suas altas pretensões. Quando já estava cursando o mestrado, sua mãe declarou, ou melhor, sentenciou num almoço de família que ele iria cursar o doutorado no exterior. O que é esse voto da mãe para ele? L chegou na análise apavorado. Os obstáculos para seguir na vida adulta se impunham.
O seu sistema delirante, no entanto, se sofisticou. Ele insistia que tinha visto o professor no mesmo voo que havia feito recentemente para o exterior. Receava ter a sua entrada proibida no país onde realizou o intercâmbio por uma denúncia de seu algoz e, finalmente, que havia manchado definitivamente a reputação de alunos brasileiros lá fora. Restava-me o lugar de testemunha desse relato que tanto o fazia sofrer como lhe dava lugar. De certa forma, o professor algoz e perseguidor teria sido na história de L o primeiro outro com quem se importou e que, em contrapartida, teria se importado com ele.
Quanto à pergunta sobre o que acontece com um autismo infantil na vida adulta, poderíamos aqui arriscar uma psicose mediada por um sistema delirante? Se assim concordamos, o que pode significar um Treinamento de Habilidades Sociais?
Parodiando a afirmação inaugural de Lacan no seminário 3: as psicoses,
proponho: “Não se conduz uma análise como se quer, mas como se pode!”
Referências bibliográficas
CHIAPETTA AZEVEDO, Flávia. Autismo e Psicanálise_ o lugar possível do analista na Direção do Tratamento. Curitiba: Juruá, 2009.