Flávia Chiapetta de Azevedo
“Quanto me andei/Talvez para encontrar/Pedaços de mim pelo mundo/Que dura ilusão/Só me desencontrei/Sem me achar/ Aí eu voltei/Voltar quase sempre é partir/Para um outro lugar” (samba do amor, Paulinho da Viola)
Amar é um verbo transitivo direto, ou seja, é um verbo cujo sentido depende do complemento, e nesse caso, o complemento é o outro, pois quem ama, ama alguém. Mas se pensarmos que esse alguém é o próprio eu, ai amar tornar-se um verbo um pouco mais complicado de se conjugar. A psicanálise subverte o enunciado gramatical na medida em que declara que esse “alguém” a quem o sujeito ama diz respeito a ele próprio, o que pode ser traduzido como: eu me amo no outro.
O sujeito ama a si mesmo com o mesmo amor que recebeu de seus pais. “Sua Majestade o Bebê” (Freud, 1914), é esse o lugar que o filho esperado irá ocupar para os pais e a partir daí lhe serão prometidas as realizações que seus pais não conseguiram cumprir, seus sonhos perdidos serão projetados na criança, fazendo-os reviver seus narcisismos. Tudo de melhor é atribuído aos filhos. Os pais amam a criança por que veem nela uma parte de si. O narcisismo dos pais se estende à criança, constituindo o narcisismo dela própria. Do lado do sujeito verifica-se o gozo de ser amado idealmente por seus pais, gozo que o sujeito buscará nas relações que estabelece. O apego a esta imagem idealizada decidirá as escolhas amorosas, as quais serão realizadas a partir de traços de semelhança com o que fui, sou ou queria ser; e traços que remetem o sujeito àqueles que lhe cuidaram. Nesse sentido, amar é essencialmente querer ser amado e isso se aplica a transferência.
Na transferência o sujeito atualiza com o analista sua posição inicial com o grande Outro, qual seja? A de ser amado. Vale lembrar que a escolha do analista está relacionada ao traço que diz respeito à história do sujeito, um traço que o analista carrega e que remete o sujeito a sua história pregressa. O sujeito reconhece nesse traço o ponto de referência simbólica que sustenta a imagem de onde se vê amavél, ponto onde preserva a base narcísica de seu eu.
A transferência não é uma exclusividade da psicanálise, ela está na base de toda relação, mas Freud fez do manejo da transferência um instrumento na direção do tratamento. E, diferentemente da relação médica, de ensino, religiosa, a transferência em psicanálise tem um começo e um fim. Meu interesse é trazer reflexões sobre o amor de transferência e seus descaminhos, do começo ao fim. Inicio essa reflexão com um sonho extraído da clínica, um sonho de transferência que marcou a entrada em analise de um analisante.
O sujeito está se afogando no mar, numa praia praticamente deserta salvo a presença do analista, que se encontra em pé na areia, imóvel. O sujeito faz apelo ao analista para que o salve, gritando “socorro!!!”, mas este continua imóvel.
Vemos nesse sonho os elementos que compõe a transferência: é pelo fato do sujeito se colocar na posição de ignorância e procurar no analista o saber que lhe falta que há abertura para a transferência. O sujeito suposto saber é constitutivo da transferência. O saber, no matema de Lacan (1967) (S/s (S1, S2…Sn)→Sq), está do lado do sujeito, mas sob a barra do recalque, o que significa que ele ignora que sabe, e é ao analista que ele transfere esse saber.
O analista é chamado neste ponto de suposição de saber e é daí que advém o amor de transferência. Por meio do amor o sujeito anuncia sua demanda por uma completude no encontro com o Outro, supondo que este detém aquilo que lhe falta. No caso do sonho, o sujeito se coloca em perigo para ser salvo pelo Outro, ele não sabe nada(r), posição de ignorância, sem a qual não há entrada possível em análise, ao Outro é atribuído um saber consistente, na medida em que é suposto “salvar vidas”. O que o sujeito repete na transferência é a forma pela qual se faz amado. No caso, o sujeito se coloca em perigo, corre risco de vida, para ser salvo pelo Outro. Ele quer ser salvo para se sentir amado, afinal “quem ama salva”. É na medida em que o analista não responde a essa demanda, ou seja, fica imóvel na areia, que um questionamento do lado do sujeito, poderá advir: o que queres? Questionamento que permite o sujeito não só recordar, mas também atualizar com o analista, no lugar de Outro, sua posição fantasmática.
Em 1953, Lacan introduz as paixões do ser – amor, ódio e ignorância – para retomar a transferência a partir de sua trilogia, Real, Simbólico e Imaginário. Nesse sentido, o amor está no entrecruzamento entre o Imaginário e o Simbólico, o ódio entre o Imaginário e o Real e a ignorância entre o Simbólico e o Real. Vale lembra que Freud apesar de descrever amor e ódio como paixões distintas, ele os concebe como pares de opostos que podem ser substituídos um pelo o outro. Lacan (1953) também, seguindo Freud, profere o termo “amódio” para designar o quanto essas paixões estão atreladas. E elas estão atreladas pela via do Imaginário, são paixões cuja base é narcísica, diz respeito ao especular. A ignorância quebra a dualidade imaginária do amódio. Como já mencionamos anteriormente, a ignorância é a porta de entrada da análise, na medida em que permite o sujeito se dirigir ao Outro, mas o faz não por uma identificação imaginária, mas sim simbólica. É no engate entre o significante da transferência, que representa o sujeito, com o outro significante, o do analista que o sujeito escolheu, que se produz o laço de transferência. Desta forma, podemos dizer que a ignorância permite o sujeito simbolizar o Real, pois é a partir da palavra que o sujeito poderá se engajar na pesquisa da verdade.
O amor está no entrecruzamento do imaginário e do simbólico, nesse caso os objetos da demanda deixam de ser simples objetos de satisfação e tornam-se símbolos do dom do Outro. O Outro, nesse caso, torna-se potência e o objeto vale como testemunho do dom oriundo de sua potência. Isso é patente no comportamento de crianças que fazem de tudo para conseguir um brinquedo e depois que ganham deixam o de lado, o alvo não é o brinquedo nem o prazer que este poderia proporcionar, o alvo está no Outro, o objeto/brinquedo tem valor simbólico e representa o dom de amor do Outro, se o sujeito ganha sente se amado, senão chora, se joga no chão, esperneia… Na transferência o analista é suposto ocupar esse lugar de potencia, idealizado, a partir do qual o sujeito tenta convencê-lo de ser amável. Vale lembrar que o amor, no entrecruzamento imaginário e simbólico, busca fazer Um com o Outro, elidindo o real. Desta forma, quando se responde ao amor com amor, é por temor a castração.
É importante dizer que no amor o simbólico está presente mediando a relação do sujeito com o Outro, isso permite que haja trocas, os objetos são intercambiáveis. No ódio, no entanto, trata-se de uma relação direta entre o Imaginário e o Real. O ódio é uma tentativa imaginária de encobrir o real. Ou seja, o ódio emerge, na experiência do sujeito, para que o real não se mostre.
Vale lembrar que é em relação ao imaginário e ao real que Lacan (1962-63) aponta a essência da angústia, mais especificamente, a angústia surge a partir de uma invasão do real no imaginário. Momento em que a imagem do duplo real apodera-se da imagem familiar que sustentava o sujeito. O ódio, como mencionamos, é também uma conjunção entre o real e o imaginário, mas vai na direção oposta da angústia: no ódio o imaginário invade o real, na tentativa de encobri-lo. O ódio mais parece ser da evitação da angústia.
No texto de Alain Didier-Weil (1989), “Os dois ódios” ele diz “compreender como, no amódio, o ódio pode nascer do amor, requer compreender aquilo que no nascimento do amor, já é portador da semente da qual germinará o ódio”. Entendemos que o que está no nascimento do amor, na transferência, é o sujeito suposto saber. E se ele é a semente da qual germinará o ódio, isso diz respeito a sua queda.
No Seminário XI, Lacan (1964) ao se referir ao final de análise fala sobre a liquidação da transferência. O que isso quer dizer? Seria a liquidação do inconsciente, já que a transferência é a sua atualização? Tratar-se-ia da liquidação do sujeito suposto saber. Ou seja, o inconsciente não cessa de se manifestar, mas dirigir essas manifestações e as elaborações que daí pode surgir, ao analista, tornar-se inessencial.
Nesse sentido, o ódio surge para encobrir a castração do Outro, pois se cessar a suposição de saber no Outro o sujeito só pode constatar a precariedade de seu estatuto de sujeito. Ou seja, a castração do Outro, advinda pela queda da suposição de saber, remete o sujeito a sua própria castração. Nesse caso, o ódio faz consistir o Outro, para evitar a angústia da castração, numa tentativa de dar sentido ao ponto onde o Outro não tem resposta.
Vimos que o amor de transferência tem a mesma estrutura do amor entre duas pessoas. E o que determina a escolha amorosa são as particularidades miúdas, traços, que relembram o próprio sujeito, o pai, a mãe, o irmão. As paixões do ser, amor, ódio e ignorância, funcionam para encobrir o real, elas vêm no lugar do desejo. A questão, então, é pensar como extrair das paixões o desejo, na direção do tratamento. Podem as paixões condescender ao desejo?
Um outro sonho: duas amigas conversam na varanda quando passa o carro com o Roberto Marinho, uma delas fica eufórica com a presença ilustre e diz: “olha é o Roberto Marinho!”; a outra lhe reenvia: “ele não sabe nada, é só o representante representativo”!
Da primeira experiência do sujeito com o Outro surge uma marca – o representante representativo. Essa primeira experiência se divide em duas partes: uma é representável e a outra é inassimilável e fica de fora de todas as associações da rede de representações – essa parte corresponde àquilo que Freud ([1895] 1950) nomeou como Das Ding. O sujeito, ao mesmo tempo, incorpora a parte representável e expulsa o impossível de representar, Das Ding. Essa experiência é fundadora de uma primeira diferença: um dentro/fora, onde simbólico e real se nodulam. A importância desta experiência é que ao mesmo tempo em que oferece uma matriz simbólica para o sujeito, funda também a alteridade de si mesmo, na medida em que algo escapa a simbolização. Assim o representante representativo, que Lacan nomeia traço unário, traz no bojo a marca do real, e como um litoral ela está a margem, no limite entre o real e o simbólico. Esse traço único para cada sujeito vai fundar a singularidade.
Desta forma, podemos dizer que o representante representativo, como traço unário, é apenas uma marca de diferença, traço único que não se imita e nem se rouba. Essa não é a diferença que interessa no tornar-se analista: a do um a um?
No percurso de uma análise nos despedimos dos ideais edipianos, do lugar de onde nos vimos sendo vistos pelo Outro e de onde nos sentimos amados. Da queda desses ideais, o que pode advir? O representante representativo, traço único da diferença, da alteridade e da singularidade. Não é nessa direção que Lacan propõe a definição de desejo do analista, ou seja, o desejo de obter a diferença pura?
Para as paixões condescenderem ao desejo é preciso consentir a castração, renunciando as idealizações…momentos de despedidas.
Comecei meu trabalho com a letra de Paulinho da Viola e vou terminá-lo com Caetano Veloso.
“Tempo, Tempo, Tempo, Tempo/E quando eu tiver saído/Para fora do teu circulo/Tempo, Tempo, Tempo, Tempo/Não serei nem terás sido/Tempo, Tempo, Tempo, Tempo”…. (Oração ao tempo, Caetano Veloso).
Referencias:
FREUD, S. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago,
LACAN, J. (1953-54). O Seminário, livro 1, os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
————–. (1962-63). O Seminário, livro X, a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
————–. (1964). O Seminário, livro 11,os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
————–. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 in Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
Didier-Weill, A. (1989). Os dois ódios, in Inconsciente Freudiano e transmissão da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.