Abílio Ribeiro Alves
“Não existe coincidência entre o que é o analista no início da análise, e aquilo que a análise de transferência nos permitirá desvelar quanto ao que está implicado, não imediatamente, mas implicado verdadeiramente, no fato de que um sujeito se engaje nessa aventura, que ele não conhece, da análise” (Jacques Lacan, seminário 8).
Era uma manhã do início de dezembro de 1980, A. acordou com a notícia bombástica e inesperada do assassinato de John Lennon. Chorou profundamente e intensamente a morte do ídolo, chorou também pelas dores que atingiam a sua alma, sua mente e seu corpo adolescente. Havia algo de estranho naquele momento angustiante e instável.
Mark Chapman, o assassino, trazia consigo, além do revólver, o álbum recém lançado Double Fantasy que consagrava a parceria, a união e a realização amorosa do casal Lennon e Yoko. É terrível constatar que o real do impossível da relação sexual tenha se feito presente na violência dos disparos de um psicótico cujos tiros dilaceraram, não apenas, a artéria aorta do ex-Beatle como ainda a vertigem do ideal do amor de dois que faz o Um. Como se acaba com uma história de amor dessa maneira? Como cantou Beto Guedes: “ Quem souber dizer a exata explicação/ me diz como pode acontecer/ um simples canalha mata um rei/ em menos de um segundo/ Oh minha estrela amiga/ Por que você não fez a bala parar” (Canção do novo mundo).
Durante alguns dias A. revisou obstinadamente o percurso linear de sua vida até ali, na altura de seus dezeseis anos. Não encontrou nenhum evento devastador que pudesse justificar o seu perturbado estado de espírito. Pela primeira vez o adolescente pegou uma caneta e escreveu no seu já rabiscado caderno escolar algo sobre si. Reconheceu de forma inédita que as certezas sobre si mesmo lhe faltavam.
Revisitando o seu antigo caderno escolar que guarda consigo, A. leu novamente o texto que marca, só hoje se pode dizer, o nascimento de sua neurose, é evidente que a estrutura já estava ali. Mas, como está proposto na convocatória dessa jornada, “o sujeito se funda no ato de dizer”. Talvez esse seja o seu primeiro registro escrito de um dizer endereçado ao Outro, a partir de sua divisão, que intitulou de Contemporâneo :
“ Esse contemporâneo não é um fenômeno, é talvez a manifestação de nossos sentimentos, emoções, criações, agitações e medos formando um tempo, um espaço, um momento de todo um processo de renovação (…) O contemporâneo é um espaço de tempo, cada minuto da vida desse novo cenário (…) O novo assusta (…) Dentro de mim eu trago minhas ideias verdadeiras e reais a mim mesmo. Tenho os meus princípios e minhas formas de agir. Mas, algumas vezes, toda essa minha realidade é colocada em dúvida” (trecho retirado do caderno escolar).
Se a angústia é o motor, A. se movimentava por ela, estava ferido e confuso em suas certezas. Ele precisa de uma demanda, guiar-se por uma voz forte, presente e caprichosa; nada menos que as demandas de sua mãe. Contudo, como ocupar a posição viril frente às garotas se permanecia abrigado na fantasia de ser a jóia da mãe? Não, é claro que não poderia formular nada sobre isso naquela época.
Havia ainda o fato de que, na adolescência, a identificação viril se deslocara da figura paterna para a do amigo querido, porém rival, na medida em que este supostamente encarnava a masculinidade desejada. O que o deixava ainda mais inseguro sobre a sua posição diante dos sexos. Como sairia da covardia moral em que se encontrava? Como poderia autorizar-se na vida e em seu desejo?
É possível que a sua situação não fosse tão dramática, porém, a memória de juventude pode exagerar nas tintas! Afinal, havia um pai, um pai a quem se podia apelar. Um pai que em análise não é mais aquele que nomeia, senão que é nomeado. Os significantes que articulados passaram a nomear o pai eram: amoroso e deprimido. A partir de um gesto amoroso, o pai, deprimido em relação aos caprichos da mãe, livra o filho das garras da progenitora. Entretanto, as garras da mãe deixam feridas narcísicas. Como é difícil abrir mão da fantasia de ser o objeto precioso da mamãe! A covardia moral precisava ainda fazer do Outro materno o culpado, a vitimização é o recurso do neurótico para justificar-se.
Quase um ano depois daquela sofrida manhã, A. recortou do Caderno B do Jornal do Brasil uma matéria sobre a morte do ilustre intelectual e psicanalista Jacques Lacan. Ele completara dezesete anos e precisaria ainda de muitos outros para entender a natureza de seu gesto. Quando teve que contrariar o desejo da mãe em sua escolha do caminho acadêmico, contou com o pai e a psicanálise.
Se a psicanálise fez-se introduzir inadvertidamente, não foi de maneira aleatória. Uma análise não é um pré-requisito profissional. O estudo, o interesse teórico pode até preceder a experiência, entretanto, só a travessia de uma análise pode fazer advir um analista: um tornar-se analista. “Só uma verdadeira doença mental leva alguém a tornar-se analista”_ costuma enfatizar José Nazar.
O encontro com o velho e desbotado caderno escolar do ano letivo de 1980 teve para mim um efeito surpreendente. Já havia naquele caderno os elementos de uma grande neurose que me custaria décadas de análise para poder dizê-la ou mesmo lê-la.
Havia ainda um estranhamento e rejeição ao meu nome próprio que se tornaria outro aspecto marcante dessa neurose na medida em que, por ser também o nome de meu avô materno que vivia à margem da família, portava um significado bastante depreciativo. As demandas caprichosas de minha mãe e suas reverberações superegóicas incidiram sobre o nome escolhido justamente por ela e a mim designado.
Até aqui lhes dei um testemunho de como alguém chega a uma análise, como nasce um neurótico, contudo, restam as questões: quanto dura e como se conclui uma análise? Qual o destino da relação analítica? Sim, opto por esse termo mais próximo do imaginário: relação. Como liquidar esse caso de amor? Não pensem vocês que vão se livrar facilmente das paixões que são atiçadas nesse convívio que chamamos freudianamente de laços de transferência. Estamos advertidos do poder que a vertigem do saber exerce sobre a ignorância sexual neurótica. Há no neurótico um horror ao saber sobre o impossível dos sexos, nos demonstra Freud, e esse horror é encoberto por um amor ao saber. O analisante ignora o fato de que é ele mesmo quem empresta saber ao analista e o institui na condição de sujeito suposto saber. Mas é necessária a presença do analista, na instauração da transferência, para advir à cena os clichês estereotípicos do modo de amar de um sujeito.
Bem, a leitura do velho e desbotado caderno escolar só se deu após décadas de uma análise ainda em curso. O que ali se encontrava foi resignificado num tempo que não é mais cronológico e, sim, tempo lógico que se articula entre: o instante de olhar; o tempo de compreender; o momento de concluir. A leitura inédita e atual de um texto do antigo caderno antecipou para mim uma questão fundamental: como transpor os obstáculos que já estavam colocados na entrada de acesso à posição desejante? O que fazer com essa função resto que é a do analista para que ali advenha um tornar-se, uma passagem de analisante à analista?
Foi por sua vitalidade, por sua postura firme e desafiadora que o analista foi por mim investido num momento inaugural, alguém que pudesse me oferecer a resolução para a depressão como traço da falha paterna; um ideal viril bem sustentado num semblante e uma possível palavra forte e castradora à mãe. Essa transferência se constituía por um alto sentido de submissão; idealização e rivalidade. Encarar um duelo no campo da transferência significava ultrapassar o pai amado por seu dom de amor; odiado em sua falha e, finalmente, esvaziado pela travessia de uma análise. Ir da tentativa de salvar o pai até o ponto de ultrapassá-lo na condição de servir-se dele.
Não poderia conceber uma figura constante e estável numa experiência como a de uma análise, o Outro que o analista encarna tem as suas múltiplas faces. Entre acolhimentos, terrores, vazios, silêncios e vociferações superegoícas, a sua presença e voz se transmutavam sempre fora do alcance do meu olhar e controle. Também não seria possível cumprir esse percurso sem a função pontual de um analista que precisa estar encarnada num certo sujeito. E quanto a isso lhe sou grato. Atravessar as diversas fases da transferência é de fato um grande desafio.
O que esperar do final de uma experiência de análise e dos avanços de uma formação em escola? Lacan promoveu mudanças na clínica e, assim, chamou a atenção para si. As sessões curtas, o corte como interpretação, a homofonia entre os significantes, o modo como tratou do pagamento foram algumas inovações realizadas por ele, contrariando as normas da análise didática preconizada pela IPA. Ele se tornou um fenômeno entre os analistas franceses de sua geração. Lacan foi além de seu estilo: suas estranhezas, seus atos dentro e fora de seu gabinete criaram uma lenda em torno de seu nome e de sua pessoa. Alguns exaltaram a sua genialidade, seus detratores usaram suas histórias para acabar com a sua reputação. Uns queriam imitá-lo, outros visavam liquidá-lo. A transferência nos confunde entre essas possibilidades. Se algo nos impede de dar consistência ao Outro, resta-nos destruí-lo a partir da mesma ambição. Assim faz a paixão neurótica.
Talvez, nem consistência e nem destruição. Alguns daqueles que prestaram o seu testemunho apontaram para a possibilidade, no caminho do tornar-se analista, do que enigmaticamente tentamos tratar como “destituição subjetiva”.
Pude aqui me autorizar sobre uma leitura que relaciona a entrada em análise com uma possível saída através de sua conclusão. Mais além daqui só poderia fazê-lo através de um outro dispositivo. Por não poder realizar ainda um testemunho conclusivo, deixo duas passagens, belos dizeres, sobre o que poderíamos tomar como a destituição subjetiva na conclusão de uma análise apresentada por Jean-Guy Godin em Jacques Lacan: 5 rue de lille (JZE, 1991):
“… Na hora de pagar o que eu devia saber ser a última sessão, tirei dos bolsos o dinheiro, mais precisamente, esvaziei os bolsos, tirei deles tudo o que continham; ele se levantara, aproximara-se, e, com seu olhar intenso, vigiava, calmo e silencioso, essa pequena operação confusa e sonora. Com uma mão, estendi-lhe as notas, o preço habitual; na outra mão, tinha ainda algum troco, notas e moedas, para uma bebida, um café, talvez dois, para comprar um maço de cigarro e meu jornal. ‘Não! Isso não! Isso!’ Recusava o que eu lhe dava e, com o dedo e com os olhos, mostrava-me o que queria: ‘Me dê isso!’, o que eu tinha na outra mão; insistia (…) Pegou esse troco, sem contá-lo, até sem vê-lo, e pôs tudo no bolso. ‘Vá!’ “ (p.155).
“ ‘Eu sou alegre _ disse ele um dia tristemente, em público _, minha única tristeza é não ter ninguém, cada vez menos pessoas com quem dividir essa alegria’. Ele era alegre, mas só, e entristecido por essa solidão. Sua posição única, desejada talvez, atingida e depois ocupada um dia, o isolara. Era seu prisioneiro. Sendo único, para a grande maioria só existia ele; ele só. Cada vez mais só” (p.157).
Referências bibliográficas:
GODIN, Jean-Guy. Jacques Lacan: 5 rue de Lille. Rio de Janeiro: JZE, 1991.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: JZE, 1992.