Apresentação
É fato que à psicanálise está reservada uma resistência que lhe é inerente,
pela razão de ser sempre avessa ao já dado ou imposto
moralmente. A possibilidade subversiva da psicanálise será para sempre
objeto de uma espécie de sufocamento por parte dos discursos dominantes,
e isso é demonstrado desde Freud, em seu célebre artigo de
1926, “A questão da análise leiga”.
Se a prática analítica sustenta, fundamentalmente, a desalienação
do sujeito faz sentido pensar, já de início, a formação de um analista
como não avalizada por um órgão oficial que submete o exercício do
ofício do psicanalista a uma autorização exterior a sua ética.
A partir desses princípios, o Movimento Articulação das
Entidades Psicanalíticas Brasileiras, desde o ano de 2000 luta contra a
regulamentação da psicanálise. Nesse mesmo ano Os Estados Gerais
da Psicanálise se reuniam na Sorbonne para afirmar a autonomia da
Psicanálise em relação a todas as formas de psicoterapia praticadas e
sua independência em relação aos poderes públicos e a uma regulamentação
pelo Estado.
Na mesma época, em nosso país, um deputado e um pastor evangélico
apresentava à Câmara dos Deputados um projeto de lei que pleiteava
a regulamentação da psicanálise. A proposta de “formação” tinha
a duração de dois anos que incluía carga horária para a análise pessoal,
supervisão e teoria. Após esse período o candidato, com um diploma,
estaria autorizado a exercer a prática analítica. Tal modelo coloca em
questão a ética da psicanálise, ao tratar a formação de analistas desde
uma distorção: supor que um “título” possa equivaler à transmissão e
ao processo analítico que a formação supõe e requer em seu rigor. A
marca das tentativas de regulamentação está nessa torção que insiste em
normatizar um percurso que é fruto do que não é normatizável, ou seja,
o desejo de saber depurado em uma experiência analítica.
Consideramos a formação inscrita a partir de projetos de lei, que
insistem até os dias de hoje em regulamentar a psicanálise, como a impostura
de um diploma no lugar de uma análise. Essas especificidades
da formação de psicanalista foi o tema de nosso primeiro livro: Ofício
do psicanalista: formação vs. regulamentação.
Desde aí, após dez anos de seu lançamento, o Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras continua a luta que
caracteriza sua organização e apresenta seu segundo livro Ofício do
Psicanalista 2. Por que a psicanálise não deve ser regulamentada. A
questão que se repete, e que é objeto do livro, está centrada na ideia
de que não é possível pensar a formação de um psicanalista com regras
e normas determinadas por uma regulamentação. Reafirma-se que
a formação supõe um percurso singular, único e pessoal: a travessia
subjetiva da experiência analítica, a qual se torna um instrumento de
trabalho fundamental para a posição de escuta, além da supervisão e
do arcabouço teórico. Estes são os três pilares que, se regulamentados,
podem vir a se transformar em leis vazias que justificariam projetos de
cunho religioso, ou cursos com interesses econômicos.
Desse modo, o que nos convoca neste novo livro são 14 trabalhos
das dezoito instituições que compõem o Movimento Articulação e que
discutem os fundamentos do Por que a psicanálise não deve ser regulamentada
para que se mantenha como ofício sustentado a partir de sua
ética. São trabalhos que apresentam o esforço de divulgar nas instituições,
universidades, cursos e grupos de pares, os pressupostos que, ao
mesmo tempo mantêm a transmissão dos princípios da psicanálise e
conferem argumentos para a não regulamentação.
Nessa batalha constante, é necessário ressaltar que dezoito instituições
psicanalíticas, diferentes entre si, se mantêm articuladas de uma
forma não institucionalizada através de reuniões semestrais desde o ano
2000.
São estas as questões que têm balizado nossa atuação desde os primeiros
encontros. Uma das reflexões que tratamos de sustentar ininterruptamente
se refere a como constituir e manter um Movimento que
não se institucionalize e se transforme ele próprio em um regulador do
exercício do ofício de psicanalista. Se nos arrogarmos o direito de dizer
quem é e quem não é psicanalista estaríamos incorrendo no mesmo
erro que tentamos desfazer! Assim temos proposto somente intervir em
questões que afetam a regulamentação em nível de propostas de Estado
ou de demandas produzidas por instituições reconhecidas em sua prática
psicanalítica que solicitem assessoramento. Numerosas vezes somos
convocados a denunciar formações enganosas, a partir de publicações
ou anúncios em periódicos ou na internet, mas optamos por não intervir.
Há um acordo entre as instituições que formam nossa Articulação:
mantê-la como um movimento e não como uma instituição, para evitar
assim nos transformar em autorizadores. Insistimos em manter-nos
como Movimento, exercício que não é fácil, mas que tem nos permitido
trabalhar há quase vinte anos com sucesso em uma luta que, devemos
dizer, não tem sido simples.
As instituições que formam o Movimento Articulação das Entidades
Psicanalíticas Brasileiras são aquelas que se dedicam à formação
psicanalítica. Fazem parte desse Movimento por expressão de suas razões,
e aquelas que assim desejarem ingressar deverão ser apresentadas
por duas instituições que já formam parte da Articulação. Esse pedido é
analisado nas plenárias do Movimento e submetido a opinião de todas
as instituições que fazem parte do mesmo. Essa modalidade foi acordada
na origem do Movimento e é renovada sempre que necessária.
As instituições não podem ter cunho religioso, sindicalizante ou ser de
propriedade pessoal, com fins lucrativos.
Trata-se de um funcionamento que contempla a diversidade e que
confere a essa luta um dos mais inéditos Movimentos que ao longo desse
tempo de existência busca preservar a psicanálise fora dos tentáculos
de ideais religiosos travestidos no exercício parlamentar brasileiro.
Este livro também contempla documentos produzidos pelo
Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras desde
2009, data da edição de nosso primeiro livro. Eles trazem os motivos de
não se regulamentar a prática da psicanálise, sendo que até então todos
os projetos foram barrados.
Assim, passamos a elencar alguns desses documentos:
Em 2009 nos manifestamos por carta ao senador Almeida Lima,
proponente do PL n. 64 de 2009, sobre a regulamentação da psicanálise:
projeto de lei arquivado.
Em 20 de junho de 2013 encaminhamos para a então presidente
da República Dilma Rousseff carta referente aos motivos de repúdio
à aprovação da chamada Lei do Ato Médico, resultando no seu
arquivamento.
Em 25 de novembro de 2013 obtivemos o parecer do Tribunal Regional
Federal que negou a permissão à Sociedade Psicanalítica Ortodoxa de exercer
atividades de psicanálise de forma profissional no país.
Em 2017 enviamos um dossiê contrário à aprovação do PL
174/2017 à senadora de Fátima Bezerra. Esse projeto de autoria do
deputado Telmário Mota (PTB/RR) visava regulamentar o exercício de
terapias naturistas incluindo a psicanálise. Tal projeto foi retirado da
pauta e reapresentado como PL 101/2018 especificamente para regulamentação
da psicanálise. Esse projeto continua vigente, frente ao qual
estamos trabalhando para que seja arquivado.
Devemos também dizer que, em algumas oportunidades, temos
nos manifestado para defender instituições que corriam o risco de serem
desmobilizadas, como aconteceu quando tivemos a notícia do encerramento
abrupto de convênio que possibilitava o funcionamento, desde
2002, dos serviços de atendimento oferecidos pelo CRIA – Centro de
Referência da Infância e Adolescência, reconhecido como modelo de
atendimento a pacientes que vivem situações graves de sofrimento psíquico,
tal como o autismo e, também, como campo de pesquisa e formação.
Os argumentos utilizados pelo ofício enviado pela Secretaria
do Estado de São Paulo faziam referência ao número de atendimentos
e ao fato de a “abordagem ser essencialmente psicanalítica, fugindo um
pouco do mainstream da psiquiatria atual”. Entre muitas outras ações
nos manifestamos e apoiamos no ano de 2013 o manifesto realizado
pelo Movimento Autismo, Psicanálise e Saúde Pública. O Cria não foi
fechado.
E, para concluir este livro, temos a entrevista realizada por Marie-
-Jean Sauret à revista La Psychanalyse (Toulouse/França), por ocasião
do Simpósio Nacional Psicanálise e Psicoterapia no Campo da Saúde
Mental (Rio de Janeiro, setembro de 2005) com representantes de instituições
psicanalíticas no Movimento Articulação, e que discorre sobre
a forma de constituição do movimento e seus objetivos.
Desejamos ótima leitura a todos.
Ana Maria Sigal, Bárbara Conte, Samyra Assad
Sumário:
Apresentação – Ana Maria Sigal, Bárbara Conte, Samyra Assad
Por que não regulamentar a psicanálise, Movimento Articulação e a regulamentação da psicanálise – Ana Maria Sigal
O desejo de Freud é não regulamentável – Antônia Portela Magalhães
Formação em psicanálise: enquadre e deslizamentos – Bárbara de Souza Conte
A psicanálise de Freud e a nossa – Denise Maurano
A psicanálise é uma mercadoria? – Francisco Leonel Fernandes e Fernanda Costa-Moura
A questão da causa e a não regulamentação – Gêisa de Carvalho S. Ferreira
Movimento Articulação: pensando a ética complexa – Gustavo Soares e Valéria Quadros
Tornar-se analista – Hemerson Ari Mendes
Legislar a psicanálise? Missão impossível… Ligia Valdes Gomez e Maria Helena Saleme
O que o desejo do analista articula na sustentação política de não regulamentação da psicanálise como profissão? – Mariana Mayerhoffer
A formalização do ato psicanalítico para os psicanalistas – Maria Teresa Saraiva Melloni et al.
Um desafio contemporâneo à psicanálise: sustentar o real para que ela sobreviva – Samyra Assad
Somos todos Theodor Reik! – Sidnei Goldberg e Rosane Ramalho
O desser e a impossível profissão – Sonia Alberti
Apêndice
Manifesto das Entidades Brasileiras de Psicanálise
Anexos
Carta ao senador Almeida Lima
Psicanálise não pode ser exercida como profissão no Brasil
A psicanálise e as psicoterapias
Carta à Presidenta Dilma Roussef
Anulação do Conselho Federal de Psicanálise
Carta à senadora Fátima Bezerra
Carta ao Conselho Federal de Psicologia, em 2017
Jornal do Conselho Federal de Psicologia, 30.11.2017
Entrevista com Marie-Jean Sauret