Escola Lacaniana

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Se paga o que não se apaga

Maria Teresa Saraiva Melloni

 

 

“Do uso a usura, a língua não faz diferença etimológica. O serviço

prestado está perto do lucro, e a efígie que dá efeito à moeda se apaga

com seu uso. Assim acontece, é evidente, com o trabalho e o contrato:

serve-se dele para o lucro, isto é, para o gozo.” (Martin, P. 1997)

Eu acrescentaria: para um gozo que não serve para nada!

Ouço alguém dizer no divã: – Meu dinheiro vai se acabar!

A mais-valia, a serviço do domínio do capital sobre os valores da sociedade, nos obriga a tratar com a devida importância, o papel do dinheiro em uma análise. A maneira de pagar, seja por um terceiro, por reembolso do plano de saúde ou o financiamento de um programa de assistência, afasta o significante dinheiro do discurso dos pacientes e dos analistas. Haja vista, a ausência de bibliografia sobre o assunto.

A gênese do dinheiro enquanto tal – metal, papel – é da ordem da realidade social, mas o seu valor entra na economia psíquica, pela via significante e comparece na linguagem.

– Eu preciso acertar com você! Me diz um analisando.

O que isso quer dizer? O que é o certo numa análise? Há uma medida justa entre a poltrona e o divã?
Alguns acreditam que a cobrança no final de cada sessão, deixaria tudo certo, não se geraria uma dívida e eliminava-se a possibilidade do calote. Assim, o analisante só voltaria se quisesse.

Essa fórmula garante o pagamento, substituindo a figura do fiador, dos contratos de locação?

A escola kleiniana tentou eliminar os riscos, através do estabelecimento de um contrato, no qual o analista comunicava ao paciente, na primeira sessão, as condições para que se desenvolva uma análise.

Um padrão, para qualquer análise. Mas há uma análise qualquer?

Antes de começar – mas quando começa uma análise? – devem ser estipulados direitos e deveres a serem cumpridos por cada uma das partes. Não estaríamos na contra mão da associação livre – falar tudo que lhe vier à cabeça, sem censura? Só não se estabelece as penalidades, nem o foro ao qual recorrer, caso uma das partes não cumpra com o disposto no contrato. Isso é o que torna esse contrato furado.
Sobre isso, no texto A direção do tratamento, Lacan diz que desde os primeiros contatos, a comunicação já não se formula numa linha unívoca. Ou seja, não há contrato possível!

Há que pagar! Mas quanto?

– Eu acho um absurdo o que você está cobrando! Diz alguém.

Mas do que deve se tratar numa análise é o que o analisante está pagando!
Porém como o analista pode isentar-se da “profusão de preconceitos que, no paciente esperam nesse mesmo lugar, conforme a ideia que a difusão cultural lhe tenha permitido formar acerca do procedimento e da finalidade da empreitada”? (Lacan, 1998, pg 592)

Há uma base de cálculo, feito em função dos lugares e posições na transferência, que têm como base a cena fantasmática. O analisante, na situação analítica, tenta restabelecer uma totalidade imaginária onde espera que o analista goze com o falo, lugar que o analisante ocuparia na transferência. Um gozo impossível, justamente porque é justo.

Como um cliente de bordéu, o analisante chega para ser amado; ele paga para isso, para usufruir de uma amante.

Mas para sustentar uma amante, não há mesmo dinheiro que chegue, né?!

Mas é a partir da posição de semblante, que o analista, enquanto agalma para o desejo, poderá operar uma reviravolta capaz de tirar o analisante desse lugar de cliente de puteiro, que paga por um gozo sintomático, para fazê-lo galgar ao lugar de amante. Amante de um saber, cuja suposição sustenta a transferência e vai pô-lo a trabalhar – trabalho inconsciente. O analisante, ao se deixar levar pelo amor de transferência, ocupa a posição desejante. Já não mais como queixa de uma falta a ter, mas diante da falta de saber sobre a sua verdade. O sujeito desejante é um usuário da perda e não um usura. Ao pagar por esta posição, o analisante deixa algo de si, algo da ordem do ter. Há uma perda que não é recompensada pela doação de uma resposta. Trata-se de uma troca de dinheiro, por uma escuta-semblante, que vai promover efeito de significação. O cálculo do analista é que a falta produza uma resposta não a partir do gozo, e sim a partir da sua própria cisão. A isso chamamos discurso analítico.

Mas são muitas as dificuldades desse cálculo, pois varia com a relação do analisante com o dinheiro. Até porque, nós só falamos sobre o que paga o analisante, mas há do lado do analista, enquanto sujeito, o que ele recebe com esse dinheiro.

– Ninguém está pagando isso!

Ao pagar mais que os outros, ele está em posição de perda, logo, ele tem que recuperar isso que falta. O paciente quer ser escutado por amor, amor ao sintoma. Sintoma com o qual, tenta obliterar o desejo do analista Em vez de uma escuta, isso produz um barulho ensurdecedor do amor.

A diferença entre o que o analisante quer pagar e o que o analista determina gera um excedente, um plus, que tem que ficar do lado do analista. Este cálculo é o que permite uma resposta para manter a cena analítica. Neste sentido, fixar o valor da sessão é uma decisão do analista, como o são quaisquer outras intervenções.

Mas o analista não pode cobrar um absurdo! Como saber?

Não cabe buscar referência no mercado! Pois assim, o seu saber passa a ser um serviço a ser prestado, uma mercadoria a ser oferecida, como alimento do narcisismo.

– Meu caso é muito interessante, você aprende muito! Diz ela rindo.

Aqui, o analisante se toma como produtor do saber do analista, um trunfo sintomático que ele promete doar, mas que, como n’A carta roubada (Escritos) só tem valor, na medida em que seu conteúdo não é decifrado. Se o analista oferece um rosário metonímico de significações, sem que nenhum corte metafórico aponte para a direção da verdade do sujeito, o saber recobrirá a verdade, a bondade tomará o caminho da perversão.

O dinheiro assim como o sexo, por sua posição privilegiada na relação do sujeito com o Outro, também chamada de comércio, são significantes fundamentais na operação da castração e na questão do Ser. Por isso Martin diz que não há resposta para pergunta: qual o lugar do dinheiro numa análise? Mas há que insistir até que no lugar da decodificação a verdade se revele. Isso não vem através de uma “arte de intervenção”, e sim, num só depois do ato psicanalítico.

O dinheiro é cunha da ciência de todos os gozos, mediador universal, nos mitos coletivos, entre o homem e os deuses. “O dinheiro não é tudo” diz o capitalista culpado, ou o socialista puritano; a prosperidade é signo da graça de Deus, na ética do protestante. O que está proibido é gozar dele! Recalcado na cultura, demonizado, o gozo do dinheiro comparece no real, como objeto e não como significante e o trabalho, como forma de opressão e exploração do voraz apetite do Outro.

E o trabalho do analista? É uma profissão como qualquer outra? Uma forma de sustento? Uma missão?

O fato é que quando o analisante não paga ou obtém um desconto, quem paga é o analista. Paga com o que há de mais precioso para uma análise – a diferença, enquanto enigma. Ou seja, a subtração de uma letra que o aprisiona na relação com o desejo do Outro, numa partida incansável do mais ou menos de gozar.

Não há uma medida para a cifra da dívida simbólica que o sujeito perdeu na sexuação. O sujeito tem uma dívida e não sabe o que fazer com ela.

– Esse dinheiro da análise, é sempre um problema pra mim!

Se o analista ao dizer o valor dos seus honorários, coloca-se numa posição defensiva no campo das demandas, através de negociações, barganhas, propostas de trocas, etc… induz à tentativa de instituir uma metalinguagem, de estabelecer um Simbólico do Simbólico, demandas que não querem saber nada sobre a verdade, ou seja, sobre a dívida pela sexuação e filiação.

– Não ando com dinheiro. Porque você não me dá sua conta pra eu depositar? É muito melhor!

E quando o dinheiro vem trazido pela babá ou motorista? Quando o analisante deixa de comparecer algum tempo, ao consultório, seja por viagem, doença ou impedimento físico e solicita atendimento por telefone ou internet? Quando há uma crise econômica ou uma inflação galopante? Estas são situações em que o analista precisa estabelecer outra forma de receber o dinheiro. A questão é: de que lugar o analista toma essa decisão?

Não lhe é permitido apoiar-se nos indicadores econômicos, políticos e sociais. O dinheiro como cifrão – cifra que designa o lugar de a, objeto por excelência, fora da série de objetos parciais – não pode fazer sucumbir o mais de gozar da economia psíquica sob a mais valia da economia monetária. Será suficiente, que o analista tome como indicadores, estas referências teóricas? Ou a conduta de seu analista?

O dinheiro fará parte da composição erótica de todo sujeito, quer dizer que não é prerrogativa dos neuróticos.

Lacan lembra que o analista também paga, com sua pessoa, sendo o suporte da transferência; com suas palavras quando se dimensionam em interpretação, em palavras que não são suas e com o que há de mais íntimo no cerne do ser.

Não é demais dizer que o silêncio do analista também conta, ou, melhor dizendo, entra na conta. Mas silêncio não é omissão! Que tal então, falarmos do dinheiro do analista? Como dissemos no início, os analistas não falam sobre isso! Há muitos anos atrás, eu nem balbuciava, testemunhei um analista, que não era qualquer – José Ibsen – perguntar a uma psicanalista, colega sua, qual o preço que ela cobrava de seus clientes. Ela, a cara da riqueza, apenas sorriu. Na época, o valor de uma análise era medido pelo que cobrava um analista didata, mas esse valor era um mistério! A bibliografia sobre o dinheiro na psicanálise é exígua e precária, porque não passa das considerações simbólicas do dinheiro. Que tal falarmos do pudor dos analistas em relação ao seu gozo? Ou da publicidade velada do cacife de seus analisantes? Dos presentes, das trocas, dos favores e até dos elogios?

Pierre Martin situa o dinheiro como aquilo que sempre falta ou que nunca se tem o suficiente, mas também como algo da ordem da necessidade, o que lhe faz pensar as cinco funções do dinheiro (necessidade, poder, demanda, desejo e gozo). Assim, segundo o autor, o dinheiro, além de se fazer necessário para a sobrevivência; é usado também como um sinal de poder, como uma marca fálica; como uma demanda de amor, de dar o que não se tem (ou o que faz falta); como significante na cadeia associativa do sujeito e por fim como um fator sexual. Seria a clínica, um outro uso da cama?
Não é estranho ouvir relatos de situações onde o analista diz que ele cobra x, dez reais, por exemplo, “mas vou te cobrar oito”. Como dizíamos antes, a diferença de dois reais é paga pelo analista. Por quê? Uma questão de poder? Porque não lhe faria falta? Ou é um presente que ele dá ao analisante Por que daria esse presente a ele? É importante ter alguma clareza sobre as consequências clínicas, quando se aceita um presente, como quando se dá.

Trazendo uma caixa de chocolates, uma cliente que estava vindo há umas cinco sessões, aproximadamente, diz:

– Eu vim para dizer que, embora eu tenha aprendido aqui a ver as coisas por outro ângulo, eu não vou mais poder continuar. É uma questão de tempo. Foi muito bom, mas pra mim, tá ficando muito difícil, é muita correria e eu agora me matriculei numa escola de direção. Quero aprender a dirigir.

– Que pena, estava tão legal, né? Quem sabe você começa o curso de direção e depois arranja tempo?

Liga daqui a uns dois meses.

Estaria o analista seduzido pelos chocolates? Mas o que fazer se um paciente, ainda nem mesmo analisante, quer dirigir? A paciente pagou a sessão, mas ao esvaziar o saco de chocolates, o analista encontra um recibo de retirada bancária, minutos antes da hora da sessão.

O que queria dizer aquela mensagem? Afinal tudo já estava pago, até presenteado! O que ficou de resto, do lado do analista? E é como resto, que ele resolve mandar um aviso de que havia encontrado o recibo.

Afinal, “a mensagem sempre chega ao seu destinatário”, disse Lacan! Desapontada, a cliente pede desculpas. Qual seria sua culpa? Aliás, esse era um sintoma: “eu vivo pedindo desculpas!” dizia ela.

Por que gerar uma dívida quando já há uma dívida simbólica? Em geral, o analisante põe em jogo esta dívida, de uma maneira singular, dependendo de cada estrutura. Porém, se o analista aceita que lhe devam, a dívida simbólica jamais será posta em jogo.

Quinet, no seu livro As 4 + 1 Condições da Análise, diz:
“o analista “se vende” como objeto que é de início contabilizado – tanto por sessão! O analista é um objeto investido libidinalmente que se amoeda com o dinheiro. É um objeto de “aluguel”, não podendo permitir a economia, economia de gozo que se representa pelo dinheiro, e se expressa pela retenção, infringindo a regra da associação livre, que é contra qualquer retenção.”

Se não ter dinheiro apresenta uma falta na ordem do ter, do lado da função do analista ele deve estar resituado justamente na falta a ser, no limite do narcisismo. E nós analistas, mesmo advertidos sobre os perigos do bosque, corremos o risco de nos surpreendermos com esse “lobo mau”, recrudescente, que à espreita, entre as veredas, avança até nos “ossos duros de roer” das vovozinhas.

Vale terminar com uma citação do livro Dinheiro e Psicanálise:
“Que amor e ódio caminhem juntos, é um lugar-comum analítico. Porém, que no calor do amar e do odiar nós nunca lembremos disso, é isso que, talvez, seja sabedoria” (p. 124).

É então que surge o dinheiro que nos servirá de lembrete para que não esqueçamos de que somos feitos de carne e osso, de que ganhamos o pão com nosso ofício diário e de que a prática psicanalítica nem sempre é sublime.

– Hum, é sempre um problema pra mim, pagar essa análise! Mais uma vez, o analista escuta isso de uma analisanda.

Até então, o psicanalista silenciava, como manda seu lugar na transferência. Mas será que ao calar-se, não estaria ele fazendo jus a um ideal narcísico de ser analista?

Desta vez, o analista falou: – esse problema você não terá mais, a partir de hoje, você não vai pagar a sua análise!

Surpresa, ela saiu rindo e o analista ficou muito assustado!

 

Bibliografia
Lacan, J. Escritos A direção da cura e os princípios do seu poder, Zahar editora. Rio de Janeiro, 1998
Martin, P. Dinheiro e psicanálise, ed. Revinter, Rio de Janeiro, 1997
Nazar, J. O dinheiro numa psicanálise (ou, Como falar da carta roubada). Dizer 0,
Boletim da Escola Lacaniana de Psicanálise – RJ, sem data.
Quinet, A. As 4 + 1 Condições da Análise, ed. JZE Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1991.