Escola Lacaniana

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Infância, refúgio e jogo democrático: anotações de campo

Rosana Kohl Bines

Professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio; Pesquisadora do CNPq; Cátedra Sergio Vieira de Mello Puc-Rio

(Em parceria com Liana Biar, PUC-Rio; Carolina Moulin, UFMG; Mariana Braga, PUC-Rio)

Introdução: As reflexões que apresentamos neste texto se inserem no âmbito de um projeto de pesquisa inter e transdisciplinar, conduzido pela Cátedra Sérgio Vieira de Melo da PUC-Rio, um dos 22 braços acadêmicos1 conveniados a Agência da ONU para Refugiados no Brasil (ACNUR), que se dedica a observar qualitativamente a presença e circulação de populações refugiadas e solicitantes de refúgio de origem venezuelana no Brasil, com foco nos atores envolvidos na recepção e acolhimento dessa população e nas tensões e pontos críticos das dinâmicas de deslocamento e acolhida. Empreendemos trabalho de campo em fevereiro de 2019, a segunda de três incursões realizadas pela referida Cátedra até o momento, concentrando-nos em três dos abrigos da Operação Acolhida que mantêm uma população infantil: Jardim Floresta, São Vicente e Pintolândia2. A empreitada foi dupla: ao mesmo tempo em que estivemos lá para conduzir, junto à equipe gestora dos abrigos, uma proposta de colaboração pedagógica, baseada em literatura infantil, atividades lúdicas e contação de histórias, realizamos, em meio à participação nessas atividades, observações de inspiração etnográfica sobre os jogos e brincadeiras que tomavam lugar nos espaços coletivos dos abrigos. Os dados gerados ao longo de uma semana de observação participante incluem notas de campo, fotografias de espaços de jogos e brincadeiras e entrevistas qualitativas, gravadas em áudio, com crianças, adolescentes e membros da equipe de educadoras dos abrigos.
21 de fevereiro de 2019, cidade de Boa Vista, Estado de Roraima, Abrigo São Vicente.

[FIGURA 1]3

Um menino venezuelano se esconde numa caixa de papelão, onde se lê: Ministério da Defesa, Força Tarefa Logística Humanitária de Roraima. Mais abaixo, está o logo da empresa Klabin, maior produtora de celulose e de embalagens de papelão do Brasil. Do lado direito, um retângulo vazado, simulando em escala menor um desenho da própria caixa, emoldura o dizer: “Muito além da embalagem”. A mensagem autorreferente parece elogiar o próprio esforço
humanitário dos agentes governamentais e de seus apoiadores, cujos nomes carimbam e reivindicam para si o capital simbólico da caixa. Muito além do invólucro, estaria afinal o espírito solidário de ajuda e doação que sobrecarrega o pacote de uma tonalidade afetiva, voltada sobretudo à valorização compassiva dos atores envolvidos na Operação Acolhida, que teve início no Brasil em meados de março de 2018 para administrar os fluxos de venezuelanos que chegavam pela fronteira norte do país, em números crescentes, em virtude da chamada “grave e generalizada crise humanitária na Venezuela”. Há de fato um poderoso ordenamento discursivo no papelão que, ao dar destaque ao esforço humanitário, opera um apagamento estratégico e violento daquilo que deveria estar sempre em primeiro plano.

[FIGURA 2]

Muito além da embalagem, há um menino. Não um contingente genérico de que se possa gerar estatísticas e justificar os vultosos orçamentos que movimentam o circuito humanitário e multiplicam as caixas de doação. Muito além da embalagem, há uma presença singular, incontornável, que sorri para a câmera das pesquisadoras, expondo com graça e ironia mais uma impertinência. Desta vez, a da mirada invasiva e hierarquizante, que clica a cena de cima e, ao fazê-lo, descobre o menino e põe fim ao seu esconderijo. Paradoxalmente, ao encarar de volta a câmera que o acossa, o menino também descobre e registra a presença das pesquisadoras, reveladas em seu desejo incisivo de ver, confrontadas com as complicações de ver.4 A imagem põe em cena um jogo de olhares que interpela o próprio movimento da pesquisa e convida a brincar de um outro jeito. Será preciso, talvez, aprender a desviar o foco, espaçar a proximidade forçada, recuar uns tantos passos, exercitar a distração. Deixar de ver, para entrar no jogo?

[FIGURA 3]

E eis que o acordo tácito se mostra certeiro. Bastou olhar um instante para outro canto e o menino, antes imobilizado pelo dispositivo fotográfico, desaparece com agilidade surpreendente para reaparecer lá atrás, em meio às barracas e casinhas do abrigo onde moram 355 venezuelanos, dos quais 156 são crianças e jovens de até 18 anos (dados de fevereiro de 2019). Como a caixa “andou” até lá tão rapidamente sobre o chão de pedriscos pontiagudos e quentes5, que tendem a desacelerar a correria das crianças nos abrigos? Sua deriva lúdica, ágil e incontida no interior da caixa humanitária burla, em registro menor e pela via do jogo, todo um regime de controle, contenção e gestão dos corpos no interior dos abrigos. Brincando de
se deslocar pra lá e pra cá dentro de uma caixa que pode ser lida também como imagem concentrada e metonímica do espaço maior do abrigo, como local de confinamento, o menino parece reverberar em seu jogo de esconde-esconde a pergunta do sociólogo Michel Agier, no amplo estudo que coordenou sobre campos de detenção e refúgio ao redor do mundo: “será que uma pragmática da vida cotidiana pode transformar os lugares de confinamento em lugares da mobilidade, até torná-los vivíveis e abertos, até derrubarem os muros raspando-os, neles abrindo portas e colocando escadas? 6 (Agier 2014, 26).

No empenho de prestar uma atenção pormenorizada às brincadeiras das crianças nos abrigos visitados em Roraima, em fevereiro deste ano, tentamos considerar “o possível que elas abrem,” na expressão de Marielle Macé:
[…] é preciso reconhecer as vidas aqui vivas e vividas; trata-se, no mesmo movimento, de nem sempre, ou ao menos não de saída, encontrar as pessoas apenas a partir de seus sofrimentos, mas também a partir de seus heroísmos, suas realizações, suas “esperanças desmedidas”, de suas alegrias quando houver; e de começar a tomar ciência do já construído, do habitado, como de um território não de indignidade e de nudez, e sim, mais uma vez, de ideias.” (MACÉ, 2017, 44-46).

Ser diligente com os movimentos de vida que as crianças encenam ao brincar significou, nos gestos da pesquisa, observar, registrar e descrever suas brincadeiras, ouvir sobre elas das próprias crianças, criar situações de convivência, de “estar juntos” trocando histórias, cantigas e jogos brasileiros e venezuelanos, para reconhecer o que ali se faz e o que ali se inventa. Foto a foto, relato a relato, áudio a áudio, a tentativa é a de fazer aparecer algumas vidas ali vividas, na perspectiva das crianças e de suas brincadeiras, e ampliar, pela via da reflexão em fóruns como este, o raio de alcance daquelas experiências, considerando também como podem vir a “des-nclausurar” nossos modos de pensar a condição refugiada nos espaços de abrigamento, tão marcados pelos tropos de sofrimento do sentimentalismo humanitário (Lanette 2017). Se as imagens desse discurso comumente nos convocam à compaixão pela via da miséria, da urgência e da imobilidade, nos interessa aqui, na contramão, avançar uma compreensão do jogo e da brincadeira em espaços fronteiriços como lugares inesperados e vigorosos de (re)imaginação política. Ao brincar, as crianças reconfiguram sentidos e significados para as rotinas impostas pela gramática securitária-humanitária que regula interações entre os sujeitos dentro dos abrigos, criando rotas de fuga do cotidiano regrado, previsível e maçante do campo.

Com isso, não estamos defendendo uma leitura excessivamente otimista do abrigamento, uma experiência violenta de des/re/territorialização que constrói sem dúvida cenários de sofrimento e de vulnerabilidade. Entretanto, no esforço etnográfico de “olhar por sobre os ombros” (Geertz 1989) desses atores sociais, de observar seus mundos e “redes de significação” (idem) a partir do que eles fazem de si e para si, não pudemos deixar de nos surpreender com formas de vida que não imaginávamos possíveis naquelas circunstâncias.
Para Michel Agier, os abrigos são lugares onde usualmente os governos depositam os indesejáveis e os excedentes (“ce qui est en trop”), sob a forma de rejeitos humanos, lixo orgânico ou dejetos industriais (AGIER, 2014, 11)1. Não à toa, os abrigos visitados se parecem muito com os canteiros de obras que Walter Benjamin descreveu no final dos anos 20 na Alemanha, em conhecida passagem de Rua de Mão Única, vislumbrando ali, em meios aos escombros, um terreno propício para a ação lúdica e insurgente das crianças:

[FIGURA 4]

“É que as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção […] Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhados em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma relação nova e incoerente. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande.” (BENJAMIN, 1984, 77-78)

Desprovidas de brinquedos manufaturados, quase todos deixados pra trás na Venezuela ou vendidos pela família em algum momento para ajudar a financiar a travessia até o Brasil e garantir assim alguma reserva para recomeçar a vida no novo país, as crianças nos abrigos criam com quase nada espaços de jogo, irradiando sobre cenários de escassez e de espera, uma alegria inesperada, expansiva e indisciplinada, que mexe com a paisagem do sensível, nos termos de Rancière. Já dissemos que a “vida em comum” nos abrigos é extremamente regulada: há horários e regras para tudo. Para entrar e sair; para comer as três refeições diárias; para apagar a luz e dormir, para usar os espaços comuns, como banheiros, tanques de lavar roupa, varais e pregadores de secar. Até mesmo as brincadeiras têm dia e hora marcados. Recreadores de ONGs humanitárias comparecem algumas vezes na semana para montar nos abrigos o que chamam de “espacio amigable”. Com a ajuda das crianças, carregam pequenas mesas e cadeiras plásticas coloridas e as acomodam dentro de uma espécie de cercadinho. Ali distribuem jogos de tabuleiro, damas, xadrez, bingo, palavras cruzadas. Quando termina a hora de brincar, os jogos são guardados em grandes recipientes de plástico e as mesas e cadeiras trancadas de volta num contêiner. O espaço deixado vacante é rapidamente reocupado e remobiliado para outras atividades. Em situação de aperto, os espaços precisam ser tornar multiuso. Multiuso também é o grande tablado de madeira que ocupa a parte central do abrigo. Serve para as sessões semanais de “baileterapia”, momento de dança e descontração, para as assembleias acaloradas entre os venezuelanos e os gestores do abrigo, para discutir problemas e soluções da vida em comum. E serve também como pista deslizante para o único velotrol do abrigo. Um carrinho já bem combalido que aguenta a carga das muitas crianças que ali se juntam para dividir o brinquedo. Duas crianças se aboletam no assento, uma no colo da outra, uma terceira empurra por detrás, outra puxa pela frente, com uma cordinha de barbante. Quatro ou cinco ficam ao redor, gritando para os amigos correrem mais rápido, enquanto aguardam a vez de conduzir eles mesmos o brinquedo. Uma algazarra barulhenta que perdura de muitas outras formas, também no jogo improvisado de futebol com a bola murcha, chutada entre as barracas, em meio aos berros dos meninos, mesmo depois da luz apagada à noite, como nos reclamaram aqueles que desejavam dormir no horário estipulado pela administração do abrigo.
Ao olhar cenas como essas, observando os modos como as crianças se associam, disputam e pactuam suas brincadeiras, não raro em alto volume, nos perguntamos como perturbam os códigos tácitos de gestão dos corpos, funções, espaços, horários, distâncias entre os muitos atores que ali interagem? Que demandas de ocupação de espaços e de livre movimentação as crianças propagam ao brincar? Nos termos de Rancière (1999), que pressões e dissensos podem ser gerados pela deriva lúdica das crianças naqueles locais apertados de convivência forçada entre estranhos tornados subitamente vizinhos?
Apontaremos a partir de agora, duas cenas específicas em que as movimentações e gestos “desobedientes” das crianças ao brincar acenam com a possibilidade de refigurar, projetar e encorajar novos imaginários de vida coletiva em situação de abrigamento.

1. A gangorra
Nos fundos do abrigo, um homem serra um pedaço de madeira, destes que vemos aí na foto, por detrás dos dois meninos. Um ponta da tábua está apoiada no chão e a outra encaixada no vão do encosto alto de uma cadeira, em ângulo diagonal. O pai serra na parte alta da tábua, enquanto seu filho, ainda de fraldas, está sentado de pernas abertas na parte baixa, rente ao chão. O pai põe o serrote de lado por um momento e com o peso do seu corpo, levanta a tábua do chão, numa gangorra improvisada. Perguntamos com entusiasmo: “você está construindo um brinquedo pro seu filho?” “Estou fazendo uma cama”, ele esclarece, como a nos alertar de que as necessidades práticas têm precedência ali. Mas a criança sentada de pernas abertas, naquela cama-em-devir, quer uma gangorra. O pai parece entender esse pedido secreto e não tarda em responder de novo ao apelo. Volta a entrar no jogo, interrompe o trabalho para aderir, junto com seu filho, à temporalidade intermitente do brinquedo. Ora cama, ora gangorra. Ora cama, ora gangorra. No vai-e-vem ritmado do brincar, testemunha-se um tempo de alteração nas dinâmicas conectivas entre pai e filho. Enquanto o pai serra, o menino permanece sentado, no aguardo. Cada um no seu perímetro. Ele trabalha, o outro espera. Ao colocar o serrote de lado apenas por um instante, cria-se um micro momento de vida intensificada7. Pai e filho se reconectam numa temporalidade “desperdiçada.” Eles “perdem tempo” brincando juntos, sem que nada de material ou concreto resulte desta experiência. A brincadeira entre pai e filho não produz, porque não usa o tempo como métrica produtiva, mas propõe novos arranjos, e mais tempo, nas vivências entre crianças e seus cuidadores.

Walter Benjamin vislumbrou na criança que brinca uma possibilidade de interromper criativa e violentamente a cronologia previsível dos acontecimentos8. Longe de tratar a esfera lúdica como algo pueril e inofensivo – “coisa de criança” – como se costuma dizer sobre algo desimportante, o gesto crítico do pensador é o de considerar a dimensão propriamente perigosa e contundente do brincar, associada a reviravoltas temporais e à criação de uma atualidade intensiva e favorável ao trânsito de afetos (dos mais suaves aos mais agressivos) entre os envolvidos no jogo. Na brincadeira de gangorra improvisada, testemunha-se ainda um outro
tempo de alteração, aquele do próprio objeto tábua, em que se dá a ver sua plasticidade lúdica, seu corpo duro transformável em balanço.

2. O fio dental
Quantos brinquedos se inventam com um fio dental? As crianças se comprazem em gastar este item de “primeira necessidade,” incluído nos kits higiênicos doados nos abrigos, para fabricar artefatos lúdicos inusitados. Pega-se uma pedra de brita do chão e uma sacola plástica de supermercado. Puxa-se o fio de dental até que se tenha uma linha bem comprida. Uma ponta é amarrada na brita e a outra nas alças unidas da sacola. E a pipa está pronta para o voo.

[FIGURA 5]

O fio dental também serve de suporte para construir uma espécie de piñata, só que sem as balas ou doces de que as crianças venezuelanas dizem sentir tanta falta, conforme nos relataram, já que as três refeições diárias servidas em quentinhas nos abrigos não incluem sobremesa. Em um fio dental bem longo, amarram-se duas britas, uma em cada extremidade do fio. Joga-se uma das extremidades para o alto de uma árvore, de modo a enganchar o fio em algum galho. A outra extremidade fica na mão da criança, que controla o brinquedo, abaixando e levantando o fio com o pedrisco pendurado. Ela “atiça” as demais crianças que se reúnem embaixo da árvore e tentam pular pra alcançar a pedra que sobe e desce, de acordo com as manobras de quem manuseia o brinquedo. Ganha quem conseguir agarrar a pedra e conquistar assim o direito de ser o próximo a “atiçar” os amigos. As crianças mostram melhor:

[LINK PARA VÍDEO]

No dia da despedida, as crianças sentaram numa grande mesa de madeira pra fazer desenhos, contar um pouco das suas vidas, saudades e desejos de futuro, na forma de mensagens às crianças do Rio de Janeiro.

[FIGURA 6]

Tudo foi colocado numa outra caixa de papelão, que as crianças ajudaram a forrar e a enfeitar com as suas próprias digitais. A caixa está toda carimbada com as mãos que eles mergulharam na tinta e imprimiram nas laterais do papelão.

[FIGURA 7]

Lá dentro, recados de meninos e meninas que desejam sair da caixa, viajar além muros, ver outras paisagens, fazer conexão, trocar ideias, brincar junto.

[FIGURA 8]

Nas dobras do avião de papel, pinçado de dentro da caixa, três palavras e um desejo: “Rio de Avión.”

Considerações finais
Rancière (1999) argumenta que a política hoje se converteu em polícia. A busca pelo consenso democrático e a – não raro violenta – imposição de lugares determinados por uma lógica de representação esvaziaram o debate político e a possibilidade de refundação de um senso de comunidade particip/ativa. Como salienta Étienne Balibar (2006), talvez em nenhum outro local reste mais evidente a crise política indicada por Rancière do que no espaço da fronteira, onde vidas singulares são apropriadas como objetos de intervenção humanitária e categorias ‘rotuladas’ (solicitantes de refúgio, residentes temporários, refugiados, migrantes). Seria preciso, assim, reconstituir a política como dissenso, como desacordo, como marcada pelo desenrolar constante de práticas disruptivas diante destes dispositivos de captura, controle e gestão de corpos e subjetividades.
O desacordo performativo e lúdico sobre os sentidos dos objetos da vida em situação de refúgio (a caixa de papelão, uma tábua de madeira, o fio dental) indicam, no cotidiano dos abrigos, fraturas que permitem re-politizar em certa medida esses espaços humanitários. O imaginário e o lúdico convertem-se em práticas que tensionam as fronteiras do jogo democrático, particularmente em espaços limítrofes e excepcionais, como os abrigos aqui referidos. Porque é no jogo, e na performatividade criativa que ele abre, que crianças e adultos venezuelanos assumem um protagonismo inclusivo e dialógico com os sujeitos que compartilham tais espaços e com a materialidade que os torna habitáveis.
Nesse sentido, se a democracia acontece quando aqueles que não têm parte tomam parte, as brincadeiras provêm uma “outra” cena particularmente expressiva sobre quem são os venezuelanos e o que podem fazer nesses territórios de confinamento. Isso não significa dizer que as estruturas de desigualdade e os dispositivos de controle venham a ser desmantelados ou reformulados pelo jogo e pela brincadeira, mas que essas práticas lúdicas abrem o redirecionamento do nosso olhar para formas de estar no mundo, desenhadas e experimentadas por e para os próprios refugiados.

 

1 “La solution du camp sous toutes ses formes (ou ce que l´on désinge ici l´”encampement”) apparait dorénavant commme la plus répandue pour tenir à l´écart ce qui dérange, pour contenir ou rejeter ce qui, humain, matière organique ou déchet industriel, est en trop. L´encampement du monde se presente ainsi comme l´une des formes du gouvernement du monde, une manière de gérer l´indésirable (ANGIER, 2014, 11)

Notas
1 Mais informações sobre as Cátedras Sérgio Vieira de Mello vinculadas a ACNUR em: ACNUR, “Cátedra Sérgio Vieira de Mello: relatório de atividades de 2018”, 2019, https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/09/Relat%C3%B3rio-C%C3%A1tedra-S%C3%A9rgio-Vieira-de-Mello-2018_final.pdf
2 Sobre os abrigos visitados, o abrigo São Vicente é gerido pela Associação Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI) e o abrigo Jardim Floresta, pelo Conselho Norueguês para Refugiados. O abrigo de Pintolândia é de responsabilidade da Fraternidade – Federação Humanitária Internacional, que, para além da gestão deste e mais dois abrigos, conduzia à época de nossa visita um projeto de atividades educativas e reforço escolar a crianças e adolescentes em outros 9 abrigos, incluindo os abrigos São Vicente e Jardim Floresta. Tal projeto teve grande importância na inserção de centenas de crianças e adolescentes venezuelanos no sistema de educação do estado de Roraima no ano de 2019.
3 Conforme regulamentação brasileira, a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-Rio e todos os participantes e responsáveis legais autorizaram a pesquisa em termos de consentimento e assentimento livre e esclarecido.
4 Para uma análise densa das ambivalências do dispositivo fotográfico na cena da pesquisa etnográfica, ver ensaio de Alejandra Josiowicz (2016) sobre as fotografias de crianças tiradas por Mario de Andrade em suas viagens à Amazônia e ao Nordeste brasileiro em 1927, 1928 e 1929.
5 Os abrigos para refugiados venezuelanos em Boa Vista, Roraima, têm o chão coberto de britas/pedriscos, para minimizar os efeitos de alagamentos, devido as intensas chuvas na região.
6 “Cette pragmatique de la vie quotidienne peut-elle transformer les lieux de confinement em lieux de la mobilité, jusqu´à les rendre vivables et ouverts, jusqu´au enfaire tomber les murs en les grattant, en y perçant des portes et en y posant des échelles?” (Agier 2014, 26).
7 No dia 30 de julho de 2019, três gangorras cor de rosa foram instaladas em um trecho da cerca que divide Estados Unidos e México, perto da Ciudad Juárez, pela equipe do arquiteto Ronald Rael e da designer Virginia San Fratello. O evento durou 40 minutos e reuniu adultos e crianças de ambos os lados da cerca. Registros fotográficos e em vídeo viralizaram rapidamente nas redes. Trechos do depoimento do idealizador do projeto, Ronald Rael, reverberam nossas observações sobre a potência política do brincar: “Nós gostamos da ideia de uma gangorra: quando adotamos certas ações de um lado, elas têm consequências diretas do outro – assim como nas relações com nossos vizinhos. É a ideia da brincadeira falando de ações políticas. Serve para as pessoas sentirem essas interações.” Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/07/31/muito-comovente-diz-arquiteto-que-montou-gangorra-na-fronteira-entre-mexico-e-eua.ghtml.

Bibliografia
Agier, Michel. Un monde de camps. Paris, Editions La Découverte, 2014.
Balibar, Etienne. Strangers as Enemies: Further Reflections on the Aporias of Transnational Citizenship. In Globalization and Autonomy Compendium. Edited by W. Coleman, 2006. http://www.globalautonomy.ca/global1/article.jsp?index=RA_Balibar_Strangers.xml
Benjamin, Walter. “Rua de Mão Única”. In Obras Escolhidas II. Vol. 2. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Gagnebin, Jeanne-Marie. ‘Brecht e Benjamin: peça de aprendizagem e ordenamento experimental”. Revista Viso: Cadernos de Estética Aplicada, VI, no. 11, (jan-jun/2012): 145-151. Geertz, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.
Josiowicz, Alejandra. “Retrato de infância em Mario de Andrade: fotografía, memoria y viaje”. Revista Outra Travessia, no. 21. Programa de Pós-Graduação em Literatura: Universidade Federal da Catarina, (2016): p. 33-51.
Macé, Marielle. Siderar, considerar: migrantes, formas de vida. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018.
Rancière, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. by Monica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2005.
Rancière, Jacques. Disagreement: Politics and Philosophy. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999.