Escola Lacaniana

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Dignidade?: tá em falta!

Maria Cecília Vieira Brêtas

Psicanalista; Membro da ELP-RJ

 

                                                             “Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do  que um preconceito”.

                                                                                                                        Albert Einstein

 

 

Em 1486, ou seja, em plena Idade Média, Pico dela Mirandola disse que a dignidade do homem é uma conquista. Sim, uma conquista de si e de autodignificação crescente; ela não nos é dada, já que a natureza humana é perfectível, ou seja, passível de ser mudada. Nesta época, o homem já se descobre potencializado para escrever a própria história a partir da liberdade de pensamento e de ação. É a época dos descobrimentos, e o homem se faz agente do seu destino dentro do mundo novo, aberto para seus olhos de navegante e de descobridor da realidade.  Assim ele tornou-se artífice de seu ser, fazendo-se protagonista da própria história. Terá o porte físico, moral, intelectual e profissional de acordo com a escolha determinada pelo poder da sua vontade livre e soberana.

Com o passar dos séculos e a concretização das sociedades democráticas, as expressões dignidade humana e dignidade da pessoa aperfeiçoaram-se. Ou não. A dignidade humana refere-se aos direitos que incluem a proteção ao meio ambiente, à autodeterminação e ao desenvolvimento. Eles são direito de um grupo, uma família, um povo, uma nação. O Estado não cria direito, apenas os positiva, efetiva a sua proteção – os direitos são pré-existentes. A dignidade da pessoa humana dirige-se ao homem individualmente. Está relacionada ao homem concreto e individual. Ao sujeito, como nós nos referimos.

Migrante é toda pessoa que em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem, e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar ao mesmo, ou devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigada a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outros países.

Os movimentos migratórios compõem um fenômeno na história dos povos, porém nos tempos atuais esses deslocamentos abarcam novas problemáticas. Atualmente, destaca-se o aumento do fluxo migratório global, evidenciando uma forma de manifestação de sujeitos submetidos a riscos e condições de vulnerabilidade, sofrendo uma precariedade de abrigo, renda, alimentação, educação e cuidados na saúde. A gravidade de tal situação é denunciada por meio da estimativa que, no mundo, 24 pessoas tornam-se refugiadas   por minuto. A verdade é que em cada razão de deslocamento, encontra-se a singularidade da história de vida do sujeito que migra.

A diversidade de motivos por trás desses deslocamentos, soma-se impreterivelmente a complexidade de uma ação no direcionamento a novos rumos de vida, de tal forma que, muitas vezes, mesmo que possa estar contemplado na concepção de migrante, o risco à vida acaba por constituir-se numa espécie de fator que força a tomada de decisão por migrar. Aliado ao risco de vida, uma frase que todos já ouvimos de migrantes conhecidos: “ queria um lugar para uma vida mais digna”.

O estabelecimento de laços sociais mostra-se indispensável ao processo de constituição de um sujeito, uma vez que inauguram e possibilitam sua entrada na cultura, bem como dão fundamentos para sua identidade. Ao enunciar um território de pertencimento, os laços sociais passam a ser elementos indispensáveis na vida de um sujeito. Assim, defrontar-se com diferenças culturais e com um universo político, econômico e social desconhecido gera sofrimento e angústia. As condições de enfrentamento de tais adversidades referem-se tanto à extensão dos impasses encontrados no acolhimento ofertado, como também aos recursos psíquicos do próprio sujeito migrante. Um processo de desenraizamento provoca rupturas na identidade, de modo que o sujeito poderá ter a forma de se perceber e ser percebido transformada. Reconhecer a precariedade de alguém não é reconhecer a sua identidade (os países que acolhem dão um documento identitário ou um visto humanitário), mas proteger a sua possibilidade de tornar-se algo que nem ele mesmo sabe. Nesse sentido, os elementos psíquicos marcam presença, visto que se apresentam ao sujeito tanto no que diz respeito ao que deixou para trás, como na percepção e na condição de investimento no novo lugar que o acolhe.

O processo de construção da identidade passa a ser o legado das experiências no campo intersubjetivo. Trata-se de uma experiência alteritária inicial, permitindo a constituição de si mesmo, num só depois. As referências identificatórias são sentidas com estranheza pelo sujeito. Isto está belamente descrito no texto de Freud “Die Unheimlich” que trata do estranho no familiar. Sim, aquele que migra terá que ressignificar suas perdas, decepções e frustrações, elaborando e construindo representações identitárias. Freud explora a complexidade dos efeitos de perda e da experiência de ruptura; o sujeito terá que empreender um trabalho de luto, que viabilize seu investimento na vida e no novo lugar que o envolve. Ele afirmou que o luto comporta uma dor psíquica que se manifesta por meio da falta de interesse pelo mundo externo, e   da incapacidade de escolher novos objetos de amor. O sujeito está aprisionado ao objeto perdido; é exigido que ele efetive um trabalho psíquico de elaboração.

Os adolescentes são um grupo que muito sofrem numa migração. Um grande número deles ao serem obrigados a sair de seu país, de seus amigos, melancolizam brutalmente, uma vez que a capacidade de enfrentamento de perdas neste momento já tão frágil, dificulta o trabalho de luto, comprometendo os investimentos destinados ao mundo exterior. Vivem um enorme desamparo. Muitas vezes migram com o destino de ser “a salvação dos pais” (muito comum no norte da África- Argelia, Líbia, Mauritânia) cuja proximidade com a Europa faz com que os pais os animem para irem trabalhar na França, Espanha ou Itália e assim enviarem o sustento para eles). Como diz Bauman, são sujeitos contemporâneos, porque seu mundo é moderno, apesar de ser experimentado pelo lado da privação; a vida experimentada com sofrimento e humilhação, e vivida como condenação. É a dignidade posta à prova. Ser local num mundo globalizado é um sinal de inferioridade e de degradação social. Estes rapazes (15 anos em média) partem em plena adolescência, deixando o lar, deixando sua língua, pois  querem fazer parte do mundo (ou seja, consumir, ter). A grande maioria ficará assujeitada a condições de exploração e vulnerabilidade. Um grande número se sente deslocado, órfão da própria cultura, numa condição de des-identidade. Alguns dizem viver como zumbis ou vampiros, nem vivos nem mortos, “suspensos entre dois mundos”, reclusos numa prisão invisível. Sentem-se incapazes de se locomover livremente da angústia da perseguição da polícia, requisições e discriminação contínua. A mestiçagem impossível é geradora de patologias psíquicas. São considerados indivíduos frágeis, predispostos a distúrbios mentais, vulneráveis e deslocados. A instabilidade em suas vidas é interpretada como uma anomalia, e relacionada a imagem de “clandestino”, “irregular”, “ilegal”, “criminoso”, “delinquente” e “insano”. Por isso a grande dificuldade de trabalho, aliado às campanhas de anti- imigração.

Um dos maiores exemplos da falta de dignidade que um povo pode sofrer é a chamada “limpeza étnica”, ou seja, a tentativa de remoção ou eliminação de determinados grupos étnicos numa região, com o objetivo de torna-la étnicamente homogênea. Ela em geral é acompanhada   de esforços para se remover evidências físicas e culturais do grupo alvo no território, através de destruição de casas, centros sociais, fazendas e infra- estrutura, pela profanação de monumentos, cemitérios e lugares de adoração. Imediatamente nos vem à mente o holocausto. Pois nestes dias estamos vivendo isso. 500.000 rohingya fogem do Mianmar em direção a Bangladesh na situação mais precária possível. É uma minoria muçulmana escapando de uma violência indiscriminada. Eles representam uma ameaça para os 90% da população budista, e por tal são tratados como “estrangeiros” e vítimas de barbárie. O país rejeitou o acesso aos investigadores de direitos humanos de entrar no país.

O que podemos fazer para esta luta inglória? Como oferecer proteção a essas pessoas cuja dignidade é posta à prova a cada dia, e que causa vergonha, aquela que Primo Levi relatou ter sentido no 1º encontro com seus libertadores do campo de extermínio. Aquela vergonha que eclode na tomada de consciência do horror que jamais poderá ser apagado, algo de uma realidade inominável. É isto que vive a grande massa de migrantes deste nosso mundo atual.