Escola Lacaniana

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A voz em Nabucco e os lutos na Formação do analista

Márcia Cirigliano

Psicanalista; Membro da ELP-RJ e Doutora em Estudos de Linguagem – UFF-RJ

 

Este trabalho emoldura uma questão que a estranheza, ante o chamado à mesa intitulada Dispositivo do Passe, me convoca a refletir: como falar de luto na formação do analista? Escolho colocar o substantivo no plural, pois são vários os lutos falados em análise, encaminhados em leituras, vividos em uma Escola. Se a estranheza de um membro recente, compondo a discussão do Dispositivo do Passe, poderia superegoicamente inibir, a familiaridade com a questão formulada, impulsiona a escrever. Isto porque associo aqui o luto às perdas que sofremos todos, analistas ou não, na vida: um ente querido, um emprego, uma moradia e por aí vai. Embora não se trate do luto do analista, ou mesmo do luto no final de uma análise, esses lutos são pedras de tropeço, se deles não se fala. Mas falar de morte não é fácil, especialmente ao final de uma Ciranda. Como falar, então, já que é necessário e jamais suficiente?

Era uma vez um pai, retirante da seca nordestina, que bebia chimarrão no inverno e gostava de cantores líricos europeus, sem nunca ter pisado fora do país. Não se passa ileso a uma transmissão dessas – eu, não passei. Migrações se estenderam para os territórios da vida profissional: a música, herança familiar, dispositivos como cartéis, sessão pequena, supervisão, tantas vozes… muitos exílios.

Em análise escutamos nossa própria voz e outra que pontua, pergunta e cala. O que se faz com o luto de si mesmo, para seguir adiante, e o que se pode, um dia, inventar?

Se a história de um analisando é ficção, também o é a ópera, que exagera no palco, e no cantar, a ficção de uma dor, drama, histórias tantas de vidas que se eternizam, realidade ou não, nem importa. O que opera na ópera? Que voz percorre uma encenação no palco senão os pedacinhos de sons e silêncios que nos marcam?

Nabucco, ópera de Giuseppe Verdi, datada de 1842, conta-nos a patriótica saga do reinado de Nabucodonosor que, destruindo Jerusalém, escraviza um povo, os hebreus, povo que, no terceiro ato da ópera, lamenta a perda da pátria. O interessante é que essa ópera coincide com um momento de imensa tristeza e desencanto na vida de seu compositor: Verdi, sofrendo pela perda do filho, da mulher, em meio a fracassos profissionais, recebe a proposta de colocar música no texto acima esboçado. Levando o libreto para casa, este cai ao chão, e o olhar de Verdi é fisgado naquela página aberta, mais especificamente na frase do poema que traz música ao coro dos hebreus escravos[1]: vai pensamento (pensiero), sobre as asas douradas. Poema de saudade coletiva de todo um povo pela pátria perdida, naquela época. Até nossos dias, a ópera Nabucco faz sucesso em várias montagens, com a consagração de sua música. Verdi certa vez declarou que a leitura do poema – ávida leitura passou a ser, após se deparar com a mencionada frase – a leitura e a inspiração musical se deram simultaneamente.

O conhecido coro dos escravos hebreus é composto a partir dessa saudade, de uma pátria “bela e perdida”…_ podemos supor o quanto essa pátria é idealizada, em terra estrangeira e ainda por cima na escravidão. Talvez nem fosse tão bom assim o “solo natal” … lá, certamente havia sofrimento, doença e morte, como em qualquer lugar… O que, no sofrimento escravo, levaria a esse patriotismo tão grande? Algo semelhante ao brasileiro que, vivendo em outro país, fica ávido de encontrar conterrâneos e se emociona ao ouvir o hino nacional? Na encenação de Nabucco, a célebre cena se passa no cárcere, escravos acorrentados, após um dia exaustivo têm um lampejo de nostalgia: vozes cantam a melodia que traz uma harpa de ouro emudecida em seus desígnios e as memórias, essas falantes, acerca de um tempo que se foi. Luto, necessário, mas talvez não suficiente. As asas douradas que levam o pensamento se perdem no ouro da harpa profética. Que luto Verdi atravessou para trazer, de dentro de si, a música e presentear-nos com o Coro dos Escravos Hebreus, em Nabucco? Que lutas e lutos ele mobilizou? Nas palavras de Eric Laurent, “o artista, na sua humildade, humildade que consiste em dizer que ele se apaga diante de sua criação, realiza, ele também, uma ilusão: eu não sou nada, tudo está na minha obra, eu desapareço diante dela, e aí posso esquecer minha subjetividade”. Sobre que montes e colinas eu, agora pouso minha música, no divã, para tentar falar e fazer meus lutos? Penso que, para além do sofrimento ao falar, da dor ao lembrar, em livres associações, os lutos podem ser matéria prima de uma formação, esterco para o adubo da planta de onde, quem sabe, pode nascer uma flor. Fazer do sofrimento, virtude, o verso que se repete, que o coro repete por três vezes e mais um pouco ao final: al patire virtu, do sofrimento, virtude. Transcender no tempo, caminhar pelas notas, fonemas, silêncios. Avançar.

Paremos um pouco nessa frase que, na poesia e no coro, se repete… Talvez seja essa uma maneira de dar corpo à voz. Numa Escola de psicanálise, em que entram e saem aqueles que um dia fizeram laço, parece não haver tempo para dizer: quando você foi embora fez-se noite em meu viver… forte eu sou, mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar. Nem precisa… apenas há que se perceber a própria solidão. De quantas mortes se faz um analista? A pátria bela e perdida, fazer luto das garantias, quais eram elas? Luto é trabalho. Lutar no divã, para não se enlutar na vida. Sair do raso, ir para águas mais profundas. Por que é difícil falar de morte, de fracasso? “Vou fazer o que, se ela não quer nada comigo? Aceitar, né, fazer o que?” insiste um jovem analisando em suas entrevistas preliminares. A dor de um fracasso no amor leva-o a repetir: o que fazer? Luto… Mas isso dá trabalho, é luta, é verbo, ação, como nos recorda Freud. No inconsciente não existe o significante que represente a morte.

Coutinho Jorge retoma a questão lembrando Sartre: ”a verdadeira morte, aquela que advém quando o sujeito é completamente esquecido pelos que continuam vivos”. Dar voz ao corpo. Alguns se foram e deixaram minha Escola, morrendo ou dela saindo, qual a diferença? Deixaram suas marcas naquele lugar onde cuidaram do dinheiro, da contabilidade, dos livros de uma biblioteca e suas publicações, da música, da voz e do olhar, em tantas travessias da ponte Rio-Niteroi… foram pulverizados, viraram uma estrelinha? Se a tristeza é senhora, porque desde que o samba é samba é assim, há que fazer com o luto, há que lutar, que trabalhar.

Uma aposta. Um salto no escuro. Está em jogo ao fim de uma análise, uma mudança de posição subjetiva: apelo ao passe? Várias vezes me contavam uma historinha assim: pula filho, estou aqui – e a criança, na escuridão, pulava, solta no espaço, tendo apenas por direção, a voz do pai. Também escutava a história do alpinista que, em lugar frio, muita neve, lugar escuro e deserto, sem saber o que fazer nem para onde ir, após haver escalado uma montanha muito alta e fria, escutou uma voz: corta a corda. Ele teve medo, afinal estivera andando por muito tempo, já não sabia a que altura estava, como iria cortar a corda?  No dia seguinte, quando brilhou o sol, encontraram o alpinista morto, congelado a poucos centímetros do chão. Não cortou a corda, não correu riscos … Aventura de uma análise, estrada em que não nos cabe conhecer ou ver o que virá, ninguém sabe ao certo onde vai dar.

Então, deixemos de coisa e cuidemos da vida, pois senão chega a morte ou coisa parecida e nos arrasta, moço …  A convite da música e da poesia, assim como fez Giuseppe Verdi há tanto tempo, atravessemos os canteiros e vamos ver o que há do lado de lá.

 

 

 

Referências:

 

ASSIS, Márcia de. O termo da transferência e os afetos da conclusão. Stylus (Rio J.)  no.27 Rio de Janeiro, out. 2013. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-157X2013000200010. Acesso em 12 set. 2019.

 

FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia (1917 [1915]). In:______. A história do Movimento Psicanalítico, artigos sobre a Metapsicologia e outros trabalhos (1914- 1916). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV, Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 245-263.

 

FILHO, Baptista Zito. A ópera. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1987.

 

JORGE, Marco Antonio Coutinho. Luto e culpa. In: Fundamentos da psicanálise de Freud e Lacan, vol. 3, A prática analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2017, p. 215-230.

 

LAURENT, Eric. O luto da psicanálise contra a depressão e o tédio. In: ALMEIDA, Consuelo Pereira de; MOURA, José Marcos (orgs.). A dor de existir e suas formas clínicas: tristeza, depressão, melancolia. Kalimeros, 1997, p. 189-197.

 

RIBEIRO, Maria Anita Carneiro. Uma dor de Medéia. In: ALMEIDA, Consuelo Pereira de; MOURA, José Marcos (orgs.). A dor de existir e suas formas clínicas: tristeza, depressão, melancolia. Kalimeros, 1997, p. 229-241.

 

 

[1] Va’, pensiero, sull’ali dorate/ Va’, ti posa sui clivi, sui colli

Ove olezzano tepide e molli/ L’aure dolci del suolo natal!

Del Giordano le rive saluta/ Di Sïonne le torri atterrate

Oh mia patria sì bella e perduta! /Oh membranza sì cara e fatal!

Arpa d’or dei fatidici vati /Perché muta dal salice pendi?

Le memorie nel petto raccendi/ Ci favella del tempo che fu!

O simìle di Sòlima ai fati/ Traggi un suono di crudo lamento

Oh! T’ispiri il signore un concetto /Che ne infonda al patire virtù!