Escola Lacaniana

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Alma de mulher

Por Teresa Palazzo Nazar 

 

“A maioria das pessoas não tem senão uma imaginação débil. O que não lhes toca diretamente, o que não se lhes enterra como uma ponta aguda em pleno cérebro, não chega a comovê-las, mas, se, diante dos seus olhos, ao alcance imediato da sua sensibilidade, acontece alguma coisa, por insignificante que seja, logo começa a ferver nelas uma paixão desmedida. Compensam, então, até certo ponto, sua escassez de interesse pelos acontecimentos exteriores com uma violência imprópria exagerada.” (Zweig, 2018, p. 225) 

 Assim começa o romance que dá título ao livro fantástico de S. Zweig, 24 horas na vida de uma mulher, o qual ilustra com precisão cirúrgica o universo das paixões. Sendo terrivelmente humanas, as paixões exibem a força pulsional e o desconhecimento de sua presença nos pensamentos e ações. Com aguda sagacidade e sensibilidade ímpar, além de uma maestria incomparável, Zweig soube valer-se do curto período em que fez análise – e da longa amizade com Sigmund Freud – para mergulhar com profundidade na pesquisa sobre os afetos e no abismo das paixões. 

Em seus ensaios e romances, é muito evidente a influência da psicanálise e a plena compreensão de que nada que envolva os falantes é por acaso; os efeitos do haver inconsciente colocam cada indivíduo como personagem de sua própria história tragicômica, marionete de paixões imprevisíveis, arrebatadoras e loucas. 

Do livro de Zweig, a escolha do romance de mesmo título deveu-se à clareza com a que o autor nela evidenciou a trama das paixões, do amor, do ódio e da ignorância. Bem entendido, a trilogia destas paixões, proposta por Lacan, desloca, sem sombra de dúvida, a dualidade freudiana do amor versus ódio com a introdução da ignorância. Mas é preciso dizer que, embora distanciadas das pulsões de vida e de morte, com tanta frequência atribuídas ao amor e ódio, as paixões em Lacan articulam-se às pulsões, aos afetos e, também, ao desejo. Bem sabemos que o desejo é uma constante, ele insiste como movimento e não se deixa apreender por objetos imaginários. Isso é diferente do movimento passional, que pode arrebatar alguém deixando a pessoa siderada por outro indivíduo ou objeto, em total desconhecimento das motivações que a levam nessa direção, muitas vezes desastrosa e/ou fatal. 

A narrativa do romance em questão desenvolve-se a partir de um acontecimento envolvendo uma jovem mulher, casada e mãe que, ao conhecer um rapaz encantador que havia chegado ao hotel/pensão onde vários casais e o narrador passavam o tempo juntos, foge com ele na madrugada do dia seguinte. Para além da surpresa que tomou conta de todos, foi a atitude desesperada do marido da moça, sua certeza de que havia sido abandonado, que comoveu a todos e levou-os a fazer comentários indignados e preconceituosos a respeito da dignidade e caráter da fugitiva: 

 “Era evidente que a madame Henriette entretinha relações há muito tempo, e se correspondia secretamente com o rapaz, e que aquele ‘conquistador de sorrisos’ não tinha ido até ali senão para combinar os últimos detalhes da fuga, porque (explicam eles) era absolutamente impossível que uma mulher honesta, duas horas apenas depois de tê-lo conhecido, o acompanhasse assim ao primeiro assobio. Eu, porém, divertia-me em ter outra opinião, e sustentava energicamente a possibilidade de um acontecimento desse gênero por parte de uma mulher a quem uma união feita de longos anos de decepção e tédio tinha-a preparado para tornar-se presa de qualquer homem audacioso.” (idem, p. 229) 

 O narrador escutou os comentários e contra-argumentou com um discurso perspicaz, recheado de sabedoria a respeito dos sentimentos que poderiam levar uma pessoa a ser arrebatada por afetos desconhecidos, forças mais poderosas que sua vontade consciente. Ele também “achava mais honesto que uma mulher seguisse livremente e apaixonadamente o seu instinto, em vez de, como acontece geralmente, enganar o marido em seus próprios braços” (idem, p. 230). 

Uma série de argumentos trazidos pelo personagem narrador indica como Zweig, escritor muito à frente do seu tempo e familiarizado com a psicanálise, adentra os sentimentos mais profundos, veredas do inconsciente, constrói narrativas que mostram um pensamento crítico em torno das imagens literárias da morte, do suicídio e das figurações do feminino. Os vícios, os amores arrebatadores, os ódios inexplicáveis, mas também e sobretudo, a ignorância sobre as razões da loucura de todas essas paixões estão bem vívidos no texto por meio de um personagem fascinante – Mrs. C, a velha dama inglesa de bela figura, senhora de cabeleira branca, cheia de distinção. Ela intervém na acalorada discussão entre os presentes e interpela o narrador: 

 “Acha, então, se o compreendi bem, que Madame Henriette… que uma mulher, em suma, possa, sem querer, lançar-se em uma aventura repentina? Acha que há atos que uma mulher pode julgar impraticáveis uma hora antes e de que não possa ser julgada responsável?  

– Creio absolutamente, minha senhora.  

– Por conseguinte, toda a moral estabelecida ficaria sem valor e toda violação às leis da ética seria justificada. Se o senhor acha realmente que o crime passional, como dizem os franceses, não é crime, para que conservar os tribunais? Não é preciso muito boa vontade (e o senhor tem uma boa vontade espantosa) – acrescentou ela sorrindo de leve – para se descobrir em cada crime uma paixão e graças a essa paixão uma desculpa” (Idem, p. 232) 

 A partir do diálogo estabelecido com o narrador, instala-se uma relação de confiança e ela solicita, ao fim de dois dias, um encontro privado com ele, onde ela o fará saber de um acontecimento que se dera aos seus 42 anos; agora, aos 67, permanecia assombrada por aquelas 24 horas de sua vida. 

 “Só a primeira palavra é que custa. Há dois dias que venho me preparando para poder ser completamente clara e verídica: espero consegui-lo. Talvez não possa compreender a razão por que conto tudo isso ao senhor, que é para mim um estranho, mas não se passa um dia, uma hora sequer, sem que eu pense nesse acontecimento e pode crer na palavra de uma mulher velha como eu, não há nada mais intolerável que ficar durante toda a vida com o olhar preso em um único ponto de sua existência, em um único dia. Porque tudo o que vou lhe contar ocupa apenas o espaço de 24 horas em 67 anos.” (Idem, p. 236) 

Nesse momento do texto, o autor introduz o enigma que vai percorrer boa parte da sequência narrativa, já que a distinta senhora relata suas ações impulsivas, sua identificação com a jovem fugitiva e o porquê de solicitar aquele encontro, já que percebera nele uma escuta e um entendimento distinto de todos os demais hóspedes do hotel. Nele, ela observou um olhar diferente, outra leitura para a provável razão da fuga da jovem senhora. 

Como bem sabemos, ao se aproximar de uma obra literária, o psicanalista entende que o autor busca no funcionamento inconsciente a matéria-prima do que escreve, pois toda criação artística revela algo desse saber que nos habita e mostra elementos de fantasia que, estruturalmente, são universais. A realidade é inconsciente, é sonho no qual alguém, ao defrontar-se com um texto poderoso – seja um romance, poesia, conto etc. – precisa do leitor/sujeito, cuja posição subjetiva seja a de alguém que propicia a desmontagem da trama até o núcleo real do que é narrado. Trata-se de reinventar seguindo os rastros do autor, portanto, ficcionando com seus significantes, sua fantasia, até o texto tornar-se outro, recriado ao preço do enigma de cada leitor, o qual guarda íntima relação com a ideia de haver algo a ser desvelado. Isto é, a existência de um objeto que circula entre autor e leitor. 

Quando Lacan relê a teoria freudiana das pulsões, sua ênfase recai no ir e vir pulsional, na montagem a partir da qual poderá surgir um sujeito. Essa releitura está centrada nos três tempos pulsionais (ativo, reflexivo, passivo), mas é no terceiro tempo que a pessoa se faz, “ela mesma”, objeto de um outro. Em Vinte e quatro horas na vida de uma mulher, Zweig sublinha a sideração da heroína do romance pelas mãos de um jogador totalmente tragado por sua paixão:  

 “Eram duas mãos de uma rara beleza, extraordinariamente longas, extraordinariamente delgadas […] o que logo me surpreendeu de um modo aterrador foi a sua febre, a expressão loucamente apaixonada, aquele modo convulsivo de [suas mãos] se torcerem e de lutarem entre si. Tratava-se, compreendi logo, de um homem exuberante de força que concentrava toda a sua paixão na extremidade dos seus dedos para que ela não explodisse em toda a sua pessoa. E então… no momento em que a bola caía no buraco com o ruído seco e abafado e em que o banqueiro gritava o número… as duas mãos se separaram de repente uma da outra, como dois animais feridos pela mesma bala.” (Idem, p. 242) 

  Ela se dá conta de que a paixão daquele homem estava concentrada em suas mãos e que, tragado pelo vício, ele estava despossuído de si mesmo, sem o domínio de seus pensamentos e ações, apenas existindo pelo e para o rastro de um objeto – o jogo – sua própria decadência, sua derrisão.  

É preciso dizer que todo sujeito votado à paixão arrisca-se a sucumbir e ser por ela consumido… Mrs. C havia ficado viúva e sozinha em sua imensa casa, já que os dois filhos não mais estavam com ela, cada um cuidando da sua vida. Desconhecendo o motivo de sua decisão de passar o tempo a viajar, ela sai pelo mundo tentando aplacar o forte desejo de morrer.  É quando chega a Monte Carlo e, para fugir ao profundo vazio que experimentava, decide ir repetidas vezes ao cassino. É lá que encontra o jovem jogador que a arrebatará de sua melancolia, a partir da percepção da melancolia dele. Ao querer salvá-lo e reabilitá-lo, é ela quem se perde e age de modo impulsivo. 

Freud já havia dito que o melancólico sabe quem perdeu, mas não o que perdeu, o objeto do fantasma. Num casal de apaixonados também acontece de se saber a quem se ama, mas não o que nele/nela se ama. Entretanto, no momento de um estado passional, todo apaixonado se prontifica a pagar o preço que lhes apresentam, sem avaliar o que lhes está sendo pedido. O objeto da paixão pode ser deduzido do desejo de alguém que o desconhece e que apenas se mantém vivo através de sua paixão. Por ela capturada a pessoa “se esquece” de si:  

 “Eu me despojo, me dilacero e me mato pelo ser amado? É verdade. Enquanto o ser amado é esta projeção ideal de mim mesmo, tanto que ele é meu bem, minha coisa, tanto que ele é eu. É tão bom sair da imunda solidão. Sozinhos, sinceramente, não ousaríamos. Mas dar tudo a esse outro que é você, tão boa chuva de verão num coração endurecido. Até o momento em que, por capricho, por acaso, o outro torna-se um outro, sem mais. Então, freamos os custos, naturalmente. Que querem vocês que se dê a um outro nesta terra? Seria filantropia, não mais amor.” (Anouilh, 1948, p. 70) 

Sustentar a aposta de Freud sobre o inconsciente obriga-nos a revisitar o que escreveu sobre a paixão amorosa. Lembremos que ele a toma como uma formação do narcisismo original, nascida de uma perda radical, e do fato indiscutível de que a supervalorização sexual responde a uma transferência do narcisismo para o objeto sexual. 

É esta hipervalorizarão sexual que dá lugar à paixão amorosa podendo chegar à compulsão e levando a um empobrecimento da instância egoica por deslocamento da libido para um objeto siderante. Freud sustenta sua hipótese sobre a paixão amorosa dizendo que é por uma projeção como seu ideal que o sujeito investe no objeto, este sendo o substituto do narcisismo perdido na infância. Trata-se, portanto, do retorno de um afeto recalcado que o indivíduo arrebatado pela paixão desconhece que está na origem do narcisismo, portanto, seria apenas a reedição da cena primitiva, quando o amor de si se confundia com o amor por aquele que dele se ocupava. Assim, desenha-se muito precocemente os contornos do objeto siderante da paixão. Contornos de um vazio que nenhum objeto representável poderá de fato obturar. 

Das perdas prematuras na infância extrai-se a mágoa sem consolo. Da bile negra da melancolia é que surge mais tarde a descomunal força para uma paixão arrebatadora. Pois “os traços do objeto da paixão se desenham menos à imagem daquilo que se possuiu do que daqueles que não se teve ou que foram irremediavelmente perdidos antes de poder dele lembrar-se” (Gori, 2004, p. 31). 

Nossa heroína não sabia que estava tomada de paixão, não exatamente pelo jovem jogador, mas pela ideia de salvar o rapaz da compulsão pelo jogo, das dívidas imensas por ele contraídas e, por último, dos sinais do suicídio como forma última de escapar do aniquilamento moral. Ao lado disso, era ainda uma bela mulher, há muito sozinha, sem parceiro amoroso, sem vida sexual. Acaba por levar sua obsessão até as vias de fato, dando todo o dinheiro que possuía, seu corpo e razão. Tudo foi em vão e aquelas 24 horas loucas terminam de forma melancólica, com a Mrs. C sentindo-se outra vez abandonada, no vazio.  

Ao contar sua história triste, Mrs. C, por fim, se escutou; algo de verdadeiro compareceu em sua fala:  

 “O que então me fez tanto mal foi a decepção… a decepção por ver… que aquele rapaz tinha partido com tanta felicidade… sem nenhuma tentativa para me guardar, para ficar perto de mim… por ver que ele obedecia humildemente e respeitosamente ao primeiro pedido convidando a retirar-se, em vez de… em vez de tentar puxar-me violentamente para si… por ver que ele me venerava unicamente como uma santa surgida no seu caminho… e que… não compreendia que eu era uma mulher. […] a alma de uma mulher compreende tudo, sem palavras e sem uma sensação precisa. […] se aquele homem tivesse me agarrado então, se tivesse me pedido que o acompanhasse, eu teria ido com ele até o fim do mundo, teria desonrado meu nome e o de meus filhos.” (Zweig, 2018, p. 271)  

 Mrs. C teria fugido com ele, como fez Madame Henriette no início do romance, mas ela volta para casa, deixando-se cuidar pela família, já que a vergonha e a tristeza eram seus únicos sentimentos; não encontra forças para fazer o que quer que seja. 

Quando se está siderado por uma paixão, não se faz mais nada além de deixar-se consumir como um sonâmbulo. Nesse romance, Zweig disseca a alma de uma mulher; descreve com muita maestria os afetos enigmáticos, a força feroz das ilusões, mais ligadas à perda que a algum ganho. 

É isso o que encontramos em toda paixão, recobrindo o real do desejo e tornando cada sujeito insone frente ao desconhecimento de si mesmo; o que nos faz refletir que no mundo em que se vive é difícil, tanto ontem quanto hoje, que as pessoas tenham responsabilidade sobre seus atos por desconhecerem quem as habita. 

 

Referências 

ANOUIH, Jean. Ardèle ou la Marguerite. Paris: Ronde, 1948. In: GORI, Roland. Lógica das paixões. Cia de Freud, 2004.  

GORI, Roland. Lógica das paixões. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2004. 

ZWEIG, Stefan. 24 horas da vida de uma mulher e outras novelas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. 

 

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