Por Sandra Edler
“Para abordar a solidão é preciso atravessar a noite com ela”
MD (2021, p.37)
Tudo aconteceu de forma ocasional após a projeção do filme India song num cinema alternativo. Houve um debate com jovens professores de filosofia e terminaram a noite num bar, conversando. Um desses jovens acompanhou Duras ao estacionamento. Isso ocorria com frequência. Fazia parte da divulgação do trabalho tanto na literatura quanto no cinema. Participar de entrevistas. Debater. Conversar com os leitores. Concluída a noite, Duras voltava para casa.
A partir daquela noite, no entanto, um desses jovens passou a enviar cartas a Duras. As cartas chegavam todos os dias.
“…Eram cartas muito curtas, tipo bilhetes; eram sim, como apelos vindos de um lugar insuportável, mortal. Esses apelos eram de uma beleza inegável”(p.10). Duras não as respondia. Apenas as guardava. De repente as cartas deixaram de vir como que interrompidas por algo violento. A ausência súbita produziu um vazio. Duras decide enviar uma carta ao endereço do remetente, Yann Andrea. Veio mais um bilhete e depois uma carta, que chegou quando estava hospitalizada. Ao sair do hospital, ela viajou para sua casa de campo em Neauphle. Havia catorze cômodos nesta casa. Podia acomodar dez pessoas, mas Duras estava só.
Foi nessa casa, isolada, que escreveu dois de seus maiores romances, O arrebatamento de Lol e O Vice-consul. Nesta casa vive sua solidão-escrita ou sua escrita-solidão, tal a forma como estão vinculadas uma e outra. A solidão e a escrita se formam juntas na história de Duras. “Escrever era a única coisa que preenchia minha vida e a encantava. Foi o que fiz. A escrita jamais me abandonou” (2021 p.25).
A solidão da escrita é uma solidão necessária para que a escrita aconteça. “A solidão real do corpo se torna a outra inviolável da escrita”, escreve a autora.
Um dia, com a voz alterada, Yann Andrea telefonou para dizer que iria vê-la em Trouville. Em seu apartamento em Les Roches Noires. Mas, perguntou Duras, vir para quê? Para se conhecer, responde Yann.
E foi assim que houve o encontro. Ao vê-lo, Duras percebeu que havia esquecido totalmente o homem de India Song. “Era o verão de 1980. O verão do vento e da chuva. Aquele da nossa história. A história do muito jovem Yann Andrea Steiner e esta mulher que fazia livros e que estava velha e sozinha como ele nesse verão grande por si só como uma Europa” (2021 p.15). Foi o encontro de duas solidões: o muito jovem Yann e a velha senhora Marguerite Duras.
Toda história só é conhecida depois de escrita. Esta foi uma história totalmente improvável. Um jovem professor, morando em outra cidade, ouve uma senhora falando de seu filme e livro. Perguntas se sucedem. O mundo mítico dos personagens, as vicissitudes de um filme. E termina por ali a noite. A escritora volta sozinha para casa. Onde estão os amantes, pergunta o jovem Yann? Todos se foram, responde Duras.
O jovem alto e magro toca a campainha do apartamento. Duras hesita, deixa que bata novamente. Sou eu, Yann. Uma voz de incrível doçura se faz ouvir. Era a voz daquelas cartas. O único jeito era abrir a porta… e ouvi-lo.
Falaram durante muitas horas. Só depois apareceu a urgência, o atropelamento, o aviso em meio às palavras. O porquê daquela vinda inesperada a um lugar remoto para encontrar uma pessoa que não conhecia. Se é que isso é possível de explicar. Havia a decisão que se fazia entrever em meio às palavras. A decisão desesperada de matar-se depois de encontrá-la. Conhecê-la como última etapa da existência. Ele defronte ao vazio da vida. Ela diante do abismo que antecede a escrita.
O assunto é voltado aos livros e aos personagens. De repente, Yann lhe pergunta sobre Théodora Katz. Théodora. Uma personagem que só aparece em fragmentos e que Duras apenas esboçou. Mas, Yann parece fixado justamente nela.
— Qual foi a dificuldade? Você não escreverá nunca a história de Théodora? Duras abandonou a personagem, optou por não prosseguir com a narrativa, deixando órfão, sem saber, Andrea.
— Estou esperando há três anos que você volte a escrever esta história. Há muito que não sei sobre o futuro, que não sei sobre o desejo e que não sei sobre o que fazer comigo mesmo. Não tenho sonhos, não tenho como seguir.
A perplexidade se instala entre os dois. É preciso fazer silêncio para encontrar caminhos. Teria Yann vindo em busca do roteiro, texto guia para seguir vivendo? Veio em pessoa perguntar como ir em frente ou se devia parar por ali? Duras de nada sabe. Abriu a porta por não ter nada mais à frente. “Nunca falei da minha solidão naquele momento da minha vida”, escreve (2023). Essa solidão era a mais profunda, mas também a mais feliz. Era a chance de uma liberdade ainda ignorada até então. Mas era absoluta, palpável: havia 10 anos que eu vivia uma solidão severa, quase monacal” (2023,pg 41). Habitada pelos meus personagens que me visitam desde a infância.
Escurece em Trouville. É hora de comer alguma coisa. Frango frio e creme de castanhas, sugere Duras. Yann precisa de dinheiro para as compras. O último que tinha foi gasto na passagem. Trazia apenas uma moeda para a barca de Caronte. Ele não tem mais volta. Estão juntos em sua mútua solidão. Mundos incomunicáveis e uma história interrompida.
Lacan, (Sem 19) chamado a intervir, observa: existe algo da ordem do incomunicável entre os sujeitos. Do Um que fala sozinho. A solidão fala desse lugar impossível, do que não se consegue falar. Uma alteridade que não faz par. À janela do litoral árido da Normandia. “O litoral é aquilo que instaura um domínio inteiro como formando uma outra fronteira…mas justamente por não terem nada em comum”, pontua Lacan (2009, p. 109).
Duras e Yann seguem no mesmo lugar. O tema da literatura era onipresente. Mas, existia também uma palavra silenciada que levei muito tempo para compreender e nunca foi dita: escrever. Eu não sabia que escrever era uma das respostas possíveis à solidão. Mas não a única.
Começou a chuva. Uma chuva fina e leve. Da sacada, Duras e Yann veem o mar de Trouville, as luzes da cidade que fica no outro extremo. Observam a noite e, de manhã, a praia em frente. Veem crianças na praia. Fixam o olhar num menino, calado, que não brinca, o olhar vagando na direção do alto mar. Às vezes chora. Há crianças acampadas, crianças trazidas por abrigos para brincar na praia e aproveitar os meses de verão. Elas são reunidas em grupos liderados por uma monitora. O menino calado tem os olhos cinzentos, cinzentos como a tempestade, escreve Duras. Nos olhos da criança se vê o sofrimento.
A monitora que cuida do menino é muito jovem e risonha. Ela lhe pergunta: você pensa o tempo todo em que? Ele diz que não sabe. Ela diz que com ela é a mesma coisa, nunca sabe. Então ele, o menino, por fim, olha para ela. No meio do mau tempo, fez uma hora de sol, um sol frágil, uma tepidez. As monitoras deixam as crianças tomarem banho de mar. O menino tira seu casaco de lã e o deixa ao lado de sua monitora. Segue então as outras crianças que correm para o mar. A outra resposta à solidão é o amor.
De repente, naquele verão, deixa de haver clarões e chove o tempo todo. As crianças estão acampadas em barracas. As monitoras contam histórias para entretê-las. Elas pedem mais. Sempre querem ouvir histórias. Naquele verão chuvoso que não passa.
Em casa, o tempo também parou. Nós nos olhamos e ficamos diante do que não compreendemos. Estou cansada de te olhar e ignorar o que veio fazer aqui e o que o mantém em minha companhia. “Você também não deve mais saber porque está aqui, na casa desta mulher já idosa e louca de tanto escrever” (2023, p. 46). O que sei é que você sente muita vontade de morrer. Sempre que qualquer vestígio de sol desaparece de todo e a chuva cai sem parar. Os turistas desistiram, abandonaram as locações e saíram da cidade. As crianças ficam mesmo sob a chuva. Tem que obedecer às ordens dos abrigos. A monitora diz ao menino que se chama Goldberg, Johanna. E pergunta qual é o nome dele. Steiner, Samuel, responde o menino. E minha irmãzinha era Steiner, Judith. Na praia e na vizinhança, as pessoas prestam atenção àquela dupla. Por que a monitora não larga mais o menino?
Da sacada, Duras decide rebatizar Yann. Originalmente, ele se chamava Yann Lemmê. Mas, a partir de agora, ela resolve chamá-lo de Yann Andrea, em homenagem à mãe e Steiner, como o menino. Yann Andrea Steiner será um nome inesquecível, diz a ele. Yann aceita sem discussão.
Na praia, o menino disse à monitora que estava cansado. A monitora o coloca no colo. Ali, bem de perto, o menino lhe diz que quer ficar com ela. Se ela não deixar, vai se jogar ao mar. Ele não sabia que se podia morrer no mar, mas as crianças ensinaram baixinho. Ela não ouviu, mas agora, ele já sabe como morrer.
Nesse longo verão, o clima chama aos interiores. As crianças se preparam para voltar aos abrigos. Em Les roches noires, Duras e Yann vivem juntos à beira do não senso. Como as crianças, Yann também quer ouvir histórias. Volta todo o tempo à Theodora. Como que pedindo um arrimo nas palavras. Mas Duras, ao contrário, quer distância dela. Sem saber o que fazer, “fomos para a varanda. Não dizíamos nada. Chorávamos”. Olhando o mar, o longo litoral inóspito, cheio de chuva e vento, o céu branco, tomado pelas nuvens.
O litoral é também fronteira. Limite da palavra, limite de onde as palavras levam. “A escrita, a letra, está no real, observa, Lacan, e o significante está no simbólico” (2009. p.114). Por conseguinte, “a escrita vem de um lugar diferente daquele do significante” (2009, p.121). Lacan cruzava o céu da extensa planície siberiana de volta do Japão. “Lá onde eu estava, isso ficou muito claro”, conta ele. Mas, resta saber, “será possível, do litoral constituir um discurso…que não seja emitido do semblante?’ (Sem 18, pg 116). Será possível construir do simbólico algo que alcance o real do sintoma, poderíamos perguntar? Esta grande questão permeia todo o último ensino de Lacan e inspira nossa clínica hoje. Podemos cruzar a fronteira do limiar do simbólico que tenha alcance no real?
Referências
DURAS, M. Escrever. Belo Horizonte, Relicário Edições, 2021.
DURAS, M. O verão de 80. Belo Horizonte, Relicário Edições, 2024.
DURAS, M. Yann Andrea Steiner. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2023.
LACAN, J. (1971) O Seminário, Livro 18 De um discurso que não seria do
semblante. Rio de Janeiro, Zahar Editora, 2009.
LACAN, J. (1971-72). O Seminário, Livro 19…OU Pior. Zahar Editora,
Rio de Janeiro, 2015.
LACAN, J (1975-76) O Seminário, Livro 23, O Sinthoma. Rio de Janeiro,
Zahar Editora, 2008.