Ana Paula Gomes
Teresa Palazzo Nazar
Delegadas da ELP-RJ para Convergencia
Texto apresentado no Congresso Internacional de Convergencia, em outubro de 2016. Montevideo/ UY – 2016
A Angústia e o estranho
Em 1919, Freud escreve o texto “Das unheimlich”, cuja elucidação do título é já quase todo um trabalho, tendo dedicado toda a primeira parte a uma análise linguística do termo alemão, fato que Lacan destaca e diz que, mesmo se não tivesse aparecido em outros momentos de sua obra, ali já justificaria por si só toda a importância que ele deu às funções do significante em seu retorno a Freud.
Lacan faz essa observação na quarta lição do Seminário sobre “A Angústia”, seminário no qual conceituará o objeto a, nomeando este objeto apenas com uma letra, pois não há significante que o designe. Lacan destaca que Freud determina que a definição de unheimlich é ser heimlich, não dando a menor importância em explicar por quê, evidência constatada pela simples leitura dos dicionários, o que aponta a primazia que Freud dá ao significante, à língua.
“Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu”.[1] Unheimlich é a inquietante estranheza, o estranho-familiar, o êxtimo.
Para tratar da angústia e sua relação com o estranho-familiar, Lacan recorrerá ao duplo. Mas acrescentará aqui uma novidade, a partir do esquema ótico, já trabalhado em outras ocasiões. O duplo não será apenas o duplo especular da agressividade e do estádio do espelho, identificação que não comporta a falta, mas o duplo real que traz para a cena a inquietante estranheza.
Na divisão do sujeito no campo do Outro, há algo que não entra na imagem especular, que Lacan denominará como menos phi, reservatório da libido, o falo imaginário, naquilo que ele designa como a imagem virtual do sujeito. Algo para além do que Freud descreveu no narcisismo em termos de libido do objeto e libido do eu. O que marca uma diferença entre a imagem especular do narcisismo e o falo como falta, instrumento do desejo. Lacan introduz no Seminário X algo que é da ordem do imaginário, da imagem, mas que não é especular.
Essa imagem à qual o sujeito tem acesso passa pelo espelho do Outro, ideia que Lacan apresenta desde o estádio do espelho, sendo que o sujeito para se reconhecer como imagem precisa ter o assentimento do Outro. Mas nessa passagem pelo Outro, na entrada do sujeito na linguagem, algo se perde. À imagem real o sujeito não acede. No esquema ótico, o que responde ao menos phi, é o objeto a, objeto causa de desejo, que indica um real na estrutura do sujeito que não se simboliza, não se especulariza, é irrecalcável. Esta perda, o sujeito tomará como falta por via da metáfora paterna. Então, na própria imagem do sujeito, há algo que falta, que diz respeito a essa reserva operatória do falo. Na imagem que o sujeito tem de seu próprio corpo há já uma estranheza.
Das identificações à diferença na amizade
Toda a questão das identificações, necessária à afirmação narcísica do eu, exclui o diferente, o dessemelhante. E toda vez que alguém se depara com o inesperado, com o estranho (porque dessemelhante), o afeto que marca essa encontro é a angústia. Defrontar-se com o que o amor segregou para possibilitar a identificação, recalcando a perda do objeto primordial, traz de volta a própria falta. É a partir da presentificação da falta no campo da realidade que a falta não falta mais.
A psicanálise apresenta um dispositivo que propicia a experiência com o estranho, com o acontecimento imprevisto, a partir da transferência. O trabalho de rememoração visa ultrapassar a estagnação associativa das lembranças encobridoras, franqueando o acesso a uma memória marcada no corpo. O encontro com essa radicalidade do real inscrito como marca do Outro é experimentado como algo estranhamente familiar e, portanto, desconcertante e assustador.
Se pensarmos na sublimação como o que poderia fazer face ao real da perda radical, vemos que ela é uma vicissitude pulsional que não resolve o impasse do sujeito frente ao gozo que dela obtém – sempre insatisfatório. Pois a sublimação evidencia, mais uma vez, para o sujeito, sua insuficiência em lidar com o não sabido que o move. À impotência do ter junta-se à incerteza do saber, sempre precário, que o neurótico vivencia em suas demandas. A verdade não se enuncia senão na contingência de um encontro que, como um clarão, ilumina momentaneamente aquele que a experimenta e, ainda por cima, exige deciframento.
A verdade fala, contudo, tem estrutura de ficção; mas ao falar, faz ser o que não é, ao contrário das expectativas do neurótico. Sua dimensão é a de outro lugar que o do sentido, onde o sujeito, filho da ciência, vem buscar resposta. A dimensão da verdade e a do desejo, sempre aquém e além da queixa do tédio, do medo da indiferença, enfim, das paixões do ser, faz o sulco entre a necessidade e a demanda por onde o real escorre e a memória se imprime como rastros de coisas ditas e vistas, esquecidas no antes do advento do sujeito na fala. É nessa posição absurda do desejo, invocada na experiência da análise, que o sujeito pode surgir em queda livre, já não sendo mais senão o equivalente do objeto que, perdido, torna-se causa de desejo. É preciso se separar da imagem que teria sido a sua, olhar e escutar o vazio, o puro movimento da estrutura; despertar do sonho para viver o acontecimento de seu próprio exílio, no encontro com o estranho, o inassimilável de sua perda.
Há, pois, um paradoxo a sustentar. Sim, o sujeito com o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência, mas a experiência psicanalítica visa, desde Freud, fazer vigorar o saber em sua distinção com a verdade. Assim, se os sintomas não são “vividos” mas forjados pelas fantasias de desejo, o psicanalista precisa dos semblantes a partir dos quais opera, para que o analisando atualize na transferência sua posição fantasmática. Nessa realidade psíquica experimentada no aqui e agora da transferência, podem vir à cena os significantes mestres da história do sujeito, a partir das formações do inconsciente.
O real que se mostra numa análise, esse que faz Lacan dizer que a experiência psicanalítica é homóloga ao que é possível colher das obras de arte, sendo dela a semente com que a verdade brota da fala do analisando (Lacan, 1974), também está no saber, ligado à ciência. Isso exige que o psicanalista reinvente a psicanálise para que ela se torne científica.
Esses dois lados, o da verdade e o que brota da semente da arte e do saber, por onde a psicanálise se escreve do lado da ciência, operam a ligação que permite instaurar uma falta, ali onde não faltava nada. Decerto, a angústia comparece como momento decisivo de quebra do espelho e de perda da sustentação narcísica do eu.
Assim, esse homem estranho, desafetado, que é Meursault, o personagem de Camus em O estrangeiro, é uma metáfora do homem do pós-guerra, um indivíduo de pensamentos esvaziados, sentimentos amortecidos, que rechaça conectar as coisas que o cercam e se mostra indiferente aos laços sejam de que natureza forem.
Uma “existência nua”, como diz o autor do prefácio para a edição brasileira, mas, sobretudo, um errante, estrangeiro em sua própria vida, sem memória, sem tradição. Um sujeito suturado subjetivamente.
“Você é novo e acho que essa vida lhe agradaria. Disse que sim, mas que no fundo tanto fazia. Perguntou-me, depois, se eu não estava interessado em uma mudança de vida. Respondi que nunca se muda de vida, que em todo caso, todas se equivaliam, e que a minha aqui não me desagradava em absoluto. Mostrou-se descontente, ponderando que eu respondia sempre à margem das questões que não tinha ambição e que isso era desastroso nos negócios. Voltei então para o meu trabalho. Teria preferido não o aborrecer, mas não via razão alguma para mudar minha vida. Pensando bem, não era infeliz.” (CAMUS, 2016, p. 48)
Mas também Meursault não era feliz! Mostra indiferença com a vida, sua e dos outros. Depois do acontecimento do assassinato, na praia, quando interrogado sobre seus sentimentos para com a morte e enterro de sua mãe, ele diz, para espanto e agitação do advogado de defesa que, apesar de amar a mãe, não saberia dizer dos sentimentos vivenciados quando de sua morte… ele perdera o hábito de se interrogar sobre si mesmo e seus sentimentos. No entanto, como “todos os seres normais tinham em certas ocasiões desejado, mais ou menos, a morte das pessoas que amavam” (Idem, p. 69), Meursault é alguém que evita o encontro com sua verdade e, para isso, não quer saber de seus afetos, muito menos de seus impulsos em direção ao outro.
O outro, o que lhe é estranho, desconhecido e perigoso, Meursault evita cautelosa e meticulosamente… o próximo, bom ou mau, é enlouquecedor, fonte de angústia.
Sem reconhecer sua imagem no semelhante, Meursault se vê reduzido ao objeto, quando a fortaleza do eu se dissolve e ele, então, age, atira no “árabe” cuja dessemelhança é sua própria condição de objeto.
Coloca-se, então, uma questão interessante para os psicanalistas: uma análise levada a bom termo tem a perspectiva de um amor distinto das paixões, fundado no reconhecimento da diferença sexual e, portanto, no saber sobre o inconsciente e sobre os limites do que se mostra como verdade, onde o amor pode comparecer, não mais como proteção ao real, mas como entusiasmo no convívio das diferenças.
Se é assim, será que podemos dizer que, na condição de exílio do sujeito em relação ao seu próximo, tão distante e impossível de ter/ser, o que resta como amor possível é a amizade? A amizade… esse presente que Platão nos legou como amor de “almas” e do qual Lacan se apropriou para nos dizer que “a alma alma a alma, não há sexo na transação” (Lacan, 1982, p. 113).
De que é feita a amizade? Esse amor que reduz o Outro em sua alteridade ao semelhante, toma-o por seu próprio inconsciente (psyché) ao mesmo tempo em que reconhece o abismo que os separa. A amizade é a forma de amor desinteressada, uma relação com o outro no com-sentimento da existência do outro no sentimento de sua própria diferença.
A amizade tem um estatuto político cuja vizinhança é uma proximidade da qual não se pode fazer conceito nem representar, mas experimentar; ter a capacidade de se surpreender com o inusitado, o não sabido. Reconhecer alguém como amigo é reconhecer sua diferença na semelhança, sem fazer dele objeto das paixões. “Não se pode dizer ‘amigo’ como se diz ‘branco’, ‘italiano’ ou ‘quente’ – a amizade não é uma propriedade ou uma qualidade do sujeito” (Agamben, 2015, p. 62).
A amizade é amor no exílio do outro e de si mesmo.
Referências
AGAMBEN, G. O amigo e o que é um dispositivo. Chapecó: Argos, 2015.
CAMUS, A. O estrangeiro. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2016.
LACAN, J. A Angústia. Rio de Janeiro: Zahar,
_______.Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
______. Os não tolos erram. Aula de 9 de abril de 1974. Seminário inédito.
[1] Freud, S. “O inquietante”(1919), pág 291.