Sandra Edler
Psicanalista, doutora em teoria psicanalítica pela UFRJ.
“Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta”
Camões
As migrações fazem parte da história humana e sugerem o movimento incessante do desejo em busca de novos horizontes, melhores condições de vida ou a possibilidade de assumir a posição de viajante diante do imenso mundo. O olhar que se abre ao novo não significa, contudo, que seja fácil o desenraizamento ou que não haja estranheza durante o percurso. Não significa também que devamos minimizar as perdas.
A literatura portuguesa de Camões a Pessoa numa trajetória que cobre mais de 300 anos descreve, em grande parte, a múltipla relação de ganhos, descobertas, perdas e dores dos que deixaram seus lares, despediram-se dos laços afetivos para alçar novos rumos. No caso dos portugueses, de seu pequeno país na costa ocidental da Europa para ir além do Bojador e tentar a volta ao mundo.
Para nos situarmos em Camões − que fundou a poesia épica portuguesa e fez parte da expedição de Vasco da Gama, a redação de Os Lusíadas (1572) levou uma década. Era nobre a missão poética: abrir caminhos. E, no caso da poesia épica, cantar a grandeza dos heróis: Vasco da Gama à frente, mas, na verdade, o verdadeiro herói era o povo português. Nas frágeis caravelas, os barões assinalados, aqueles seres especiais que não temiam os grandes desafios e viviam sob risco, levantaram ferros na direção do oriente, ou seja, a viagem como metáfora de orientar-se em direção ao sol.
No último momento, na hora da largada, ouve-se a voz do Velho do Restelo que tenta adverti-los da louca aventura às Indias, por mares nunca dantes navegados − que, no entanto, é desdenhada. Eles seguem adiante porque a aventura heroica tem como medida o impossível.
Muitos anos mais tarde, Pessoa em Mensagem (1934), única obra publicada em vida, vai insistir na mesma toada. Em franca interlocução com Camões, retoma a epopeia dando forma lírico-poética à ânsia lusitana de grandeza. Olhando o mapa, percebe que o mar separa as nações, mas Portugal, com as empresas de expansão, criou o caminho marítmo, fez com que a terra fosse una. E conclui: “o mar com fim será grego ou romano. O mar sem fim é português”. Antes deles os navegantes não circunavegavam a Terra. Portugal elegeu o mar.
Camões e Pessoa com a palavra poética abriram as portas ao projeto português das navegações fazendo renascer o mito de D. Sebastião, o encoberto, exortando o povo a ir além, louvando o rei e criando um horizonte para o qual deveriam se lançar sem medo. Estavam embalados por Homero, fortemente inspirados na epopeia grega, visando trazer algo de divino, renomeando as Musas em seu canto. Só assim é possível entender a grandeza evocada:
“Cessem do sábio Grego, e do Troiano,
As navegações grandes que fizeram:
Calle-se, de Alexandre e de Trajano,
A fama das vitórias que tiveram:
Que eu canto o peito ilustre Lusitano
A quem Netuno e Marte obedeceram
…….
“Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
Entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram” (Os Lusíadas, Camões)
No limite último da Europa, como descreve Camões em Os Lusíadas, “onde a terra acaba e o mar começa”. O rosto com que fita o ocidente é Portugal, completa Pessoa.
Há que se aventurar, deixar o conforto dos lares, erguer a espada e seguir viagem por um grande sonho. Realizando ou não, não importa tanto… “A vida é breve, a alma é vasta” (Mensagem, Pessoa)
Havia uma implícita sugestão ao ultrapassamento do Métron − a medida grega de todas as coisas, a linha divisória entre o humano e o divino. Só assim, mirando o impossível seria viável avançar, erguendo Portugal do desprestígio e do apequenamento de seu território à condição de 5º Império como sonhava Pessoa. A essa jornada convocava Camões: “chegar ao novo Reino que tanto sublimaram”, isto é, erguendo o mais abaixo à condição de sublime. Nas palavras de Pessoa:− abrindo o nevoeiro surge a oportunidade, muitas vezes, única: “É a hora!” (Nevoeiro, Pessoa).
Existe a dimensão da grandeza, mas reservada àqueles que saem do dia a dia ordinário. Todo o engenho e a arte serão usados no projeto: sonhar, ir além, levantar âncora e dar forma ao sonho. No entanto, não há como negar. As migrações trazem, inerente às conquistas e sombreando a grandeza, a dimensão da perda. Isso não passou despercebido a Camões que, ao final de Os Lusíadas, com “a lira destemperada e a voz enrouquecida”, entre decepcionado e triste, percebe a pátria “metida no gosto da cobiça e na rudeza…”. Incapaz de sustentar o sonho. Como comenta Eduardo Lourenço em Labirinto da Saudade (1978), “a trágica grandeza cantada por Camões termina de forma suntuosa e triste como se fosse simultaneamente sinfonia e réquiem” (1978, p.22).
Muitos desses navegantes, contagiados pelo sonho, lançaram-se aos mares, desapareceram. Morreram durante a travessia. Muitos outros, deixaram-se ficar em novos territórios. Gerações inteiras de jovens portugueses nunca mais retornaram criando um indescritível vazio de dor. Àquela altura, Camões percebe o engano e expressa seu lamento:
“Ó caminho de vida nunca certo:
Que aonde a gente põe sua esperança
Tenha a vida tão pouca segurança.” (Os Lusíadas, Camões)
Isso fica também patente nas palavras de Pessoa que enalteceu a campanha de conquista dos mares, que reinventou o mito sebastianista e que prometeu tesouros de aventuras diante do profundo mar azul.
“Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
“Valeu a pena?”
“Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar
O perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.” (Mar Português, Pessoa)
A grandeza, para Pessoa, era alimentada pela concepção grega da morte. É preciso ser grande, nem que seja na desdita. É isso que seduz o herói. Mesmo que às custas da mais intensa dor.
“Louco, sim, louco, por que quis grandeza”.
“Minha loucura, outros que me a tomem/como o que nela ia.” “Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia,/Cadaver adiado que procria?” (Mensagem/D. Sebastião, Pessoa).
Mas, em nome do sonho, à beira do cais, ficaram também gerações de enlutados. Lutos, muitas vezes não completamente elaborados, na ausência dos corpos e das notícias: “Ó mar, quanto do teu sal/são lágrimas de Portugal…”
Quando os rituais fúnebres não são cumpridos deixam algo por elaborar, geram deses- esperança e amargura: “vidas não passíveis de luto”, na expressão de Judith Butler (2009). A autora de “Quadros de guerra” analisa o quanto temos que trabalhar para que, cada vez mais, seja garantido às vidas, os rituais de despedida e, com isso, a devida inscrição no simbólico. Um tema que sensibilizou Sófocles e se universalizou com sua Antígona (441 a.C.), a heroína trágica que, ao custo da própria vida, garantiu ao irmão Polinices, o direito ao cerimonial fúnebre. Lutos podem ser individuais ou coletivos. Como o que aconteceu durante o ciclo das navegações, em Portugal. E como acontece ainda hoje em nosso país e no mundo. A dor alastrada além das famílias, em comunidades inteiras.
Sempre que isso não acontece na dimensão real da vida há que se inserir na cultura através das palavras. Como observa a escritora africana Mukasonga, “tornei-me escritora para encontrar meios de dar uma sepultura aos meus mortos”. (A mulher de pés descalços) Todos os dias, a mãe pedia às cinco filhas que, quando morresse, cobrissem seu corpo com um pano. O corpo de uma mãe é sagrado e não deveria ficar visível após a morte. Única sobrevivente da família, aos massacres em Ruanda na década de 1990, Mukasonga afirma que não conseguiu cumprir esse pedido e foram as palavras, a escrita, que forneceram o tecido com o qual costurou a mortalha para cobrir o corpo da mãe. As palavras tiveram que substituir a sepultura.
Mensagem traz, em poemas, o ciclo das navegações, a exaltação, a louvação aos reis, o lugar da grandeza e da loucura e também a dor. A dor da desesperança de fitar além do mar e sobre ele descer os olhos cansados.
“… Esse fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer
Brilho sem luz e sem arder
(…)
Tudo é incerto e derradeiro
Tudo é disperso, nada é inteiro
Ó Portugal, hoje és nevoeiro” (Nevoeiro, Pessoa)
Observa Berardinelli (2014), que “Mar Portuguez” é um poema síntese em que os dois lados dos Descobrimentos estão presentes. A posse dos mares trazendo a grandeza e as lágrimas. “O sonho se desfez, restou apenas a loucura que lhe deu origem, loucura positiva sem a qual o homem permanece em casa, “contente com seu lar” e sem descobrir, como comenta a professora, que “ser descontente é ser homem.” (Pessoa/Benardinelli, 2014). O poema ilustra também o custo alto do desejo que não poucas vezes resulta em dor. Também em Camões, o elemento barco, inicialmente nomeando a embarcação de forma concreta passa a ser metáfora no canto do poeta às voltas com as vicissitudes dos navegantes: “Por alto mar, com vento tão contrário/Que se não me ajudais, Hei grande medo/Que meu fraco batel se alague cedo” (Os Lusíadas). Os embates da vida, as dúvidas, as inúmeras perdas. No mesmo tom conclui Pessoa, “Os Deuses vendem quando dão/ Compra-se a glória com desgraça.” (Mensagem, Pessoa).
Ao final de Mensagem, Pessoa visualiza Portugal – o Império desfeito em meio ao nevoeiro e a proposta de solução enlaçando a história ao mito…
Poetas e psicanalistas trilham o estreito e emaranhado caminho que perpassa o desejo e se avizinha à dor. Lacan (1959-1960), citando Shakespeare, menciona o preço do desejo a ser pago com uma libra de carne. Aos migrantes, navegantes restou o desalento e à literatura portuguesa, as lágrimas para falar de seus mortos. O mar universal e a saudade. Talvez por isso, daí venha uma das leituras possíveis da origem da palavra saudade. Um voto à beira do cais em que se misturam, saudação, com a esperança de que possamos nos reencontrar de novo com saúde, e, ao mesmo tempo, misturado já à nostalgia e à dor por ser esse encontro altamente improvável. Saudade, ou como Pessoa nos ensinou a pronunciar: com quatro sílabas e acentuação na segunda: sa-ú-dade…
Hoje, observando o movimento migratório, o trânsito ininterrupto por terra e mar, o profundo desenraizamento imposto pelas guerras e pela fome que acomete populações inteiras, vamos concluir com Ai Weiwei a ideia principal: “um refugiado pode ser qualquer um. Pode ser você ou eu. A chamada crise de refugiados é uma crise humana”. Estamos todos no mesmo barco.
Resumo das citações:
BERARDINELLI, C. (2012) Fernando Pessoa, Antologia Poética. RJ: Casa da Palavra.
CAMÕES, L. (1572) Os Lusíadas. S.P: Editora Martin Claret (2017)
COSTA, A. (2019) Notas do curso Epopéia Portuguesa (Casa do Saber. Março/2019).
LACAN, J. (1959-1960). O Seminário Livro 7 A Ética da psicanálise. Jorge Zahar Editor.
PESSOA, F (1934). Mensagem (org. Berardinelli, C.) RJ: Edições de Janeiro. 2014.
MUKASONGA, S. (2017). A mulher de pés descalços. RJ; Editora Nos.
Weiwei, A. (2019). Exposição CCBB e Paço Imperial. RJ (2019).