Teresa Palazzo Nazar
“O saber só se conquista ao se contar três.”
HOFFMAN et al., 1996, p. 63
Da razão deste breve texto
Uma questão logo se impõe: Como alguém se torna ou tem o desejo de se tornar psicanalista para um outro? Lacan se fez essa pergunta a partir de sua não concordância com os métodos de ensino e transmissão da psicanálise nas instituições da época, cujos resultados se mostravam insuficientes para dar suporte à psicanálise na formação de novos operadores.
Essa pergunta não cessa de me instigar, uma vez que a questão da formação do psicanalista da ELP gera muitas discussões e cisões. É claro que estou de pleno acordo com o “adágio” lacaniano de que só existem as formações do inconsciente, entretanto, não sejamos ingênuos em pensar que se possa dispensar refletir sobre o que está na origem de toda e qualquer psicanálise. Isto é, não podemos ignorar que um psicanalista esteja prevenido sobre o desejo que o anima, o qual é a mola da transferência, sendo esta o princípio, o meio e o fim da experiência fundada por Freud.
É tomando esse argumento como fio condutor do texto que me interrogo sobre o mal-estar vigente nas escolas lacanianas de psicanálise e os impasses gerados pela dificuldade em simbolizá-los para transformá-las em bases de operações, lugar de trabalho.
A análise pessoal é condição absoluta para o tornar-se psicanalista, mas ela encontra na análise de controle/supervisão um lugar terceiro (Hoffman et al., 1996, p. 11). O que isso quer dizer? Significa que o controlador ocupa uma posição de refrator do relato que lhe é levado. O controlador faz uma leitura sem julgamentos e apenas indica o que escutou; propicia, assim, uma segunda escuta “numa neutralidade benevolente” ou “humor divertido”, como ocorre no chiste. Assim, essa posição terceira, que é a do inconsciente, repete o que se espera ter ocorrido na análise pessoal do controlado, mas sem oferecer outra coisa que essa espécie de “caixa de ressonância” em que o controlado pode escutar os efeitos interpretativos que teriam ocorrido em sua análise pessoal.
Se a liberdade é um sonho cuja realidade está na discordância dos efeitos das múltiplas demandas que aprisionam um sujeito ao seu Outro, o espaço da supervisão antecipa a separação do sujeito em relação aos seus ideais presentes na relação com seu analista – o representante do Outro. Esta é a antecipação do ‘corte sem costura’ do final da análise.
Trata-se de tomar a análise de controle/supervisão como lugar ético para a formação do psicanalista de uma escola que se quer lacaniana; aí se escutam os restos da operação efetivada na análise pessoal. Ao final de uma análise surge a pergunta sobre o que foi a experiência, o apropriar-se de seu inconsciente.
Nesse ponto defrontamo-nos com um mal-estar, mais além daquele de que nos fala Freud a propósito da cultura: estamos diante do ato do autorizar-se psicanalista a partir da segunda significação proposta por Lacan – o psicanalista se autoriza de si mesmo (ou por si mesmo) mas, também, de alguns outros. Ele está só em seu ato, mas compartilha sua decisão com aqueles que testemunharam ou testemunham sua resposta dada ao trabalho de transferência, transformando em transferência de trabalho o que se mostra na condução dos tratamentos de seus analisandos; no estilo como maneja os elementos que recorta de sua práxis e submete aos seus pares e, também, no modo como conduz sua própria vida a partir de seus encontros como o indizível do real.
“O que se denomina análise de controle ou trabalho de cartel ou depoimento dado a ‘passadores’ designa precisamente essa função terceira como lugar onde cada um, por vez, pode se fazer responsável por uma lei que o obriga, sem estar obrigado por quem quer que seja. Esse lugar não se impôs para dar alguma garantia, mas porque só há
Saber naquilo que se transmite, que circula e, assim, escapa da propriedade privada para se tornar herança comum.” (Hoffman et al., 1996, p. 12)
Para além do “fazer o nome próprio” é a sustentação da psicanálise, a partir dos ensinamentos de Freud e Lacan, que se impõe a todo aquele que pretende dedicar sua vida a essa singular práxis cujo discurso tem, no seu horizonte, uma falta de objeto cujo motor é uma perda real.
2. Um, dois, três… um psicanalista se inventa!
O psicanalista da ELP é aquele que resulta de um tripé onde estão implicados os lugares de uma transmissão na qual se sustenta a possibilidade de uma junção/disjunção entre pares para a presentificação e permanência do discurso psicanalítico no mundo.
Como se engendra o ato do qual a resultante é um psicanalista? Primeiro, a partir da análise, sabendo-se que esta não é suficiente para que se obtenha o aforisma de Lacan: “o psicanalista se autoriza de si mesmo… e de alguns outros”.
A análise de controle não controla nada senão os ímpetos do analista controlador em dar palpites na condução do que lhe fala o controlado. É preciso escavar o saber inconsciente, sendo necessário dar lugar a um não-saber para que dele nasça algo de novo.
O psicanalista controlador aceita a suposição que lhe é endereçada, porém, não se toma por alguém com super visão sobre o que se passa na análise do psicanalista em controle, nem como alguém capaz de preencher as lacunas de saber trazidas por este.
“O que faz laço social entre dois analistas, controlador e controlado, é sua posição de leitores que leem lado a lado o mesmo livro decifrando a mesma linguagem cifrada que é o inconsciente, tendo em vista um ganho a obter de um mesmo saber textual. Inicialmente, não há leitura e depois, troca de saber, mas essa troca é sua própria leitura.” (Hoffman et al., 1996, p. 56)
No âmbito da análise de controle/supervisão é o próprio saber inconsciente que vem criar a posição terceira, a qual, uma vez em vigor, permitirá ao psicanalista em controle dirigir-se à sua análise pessoal e interrogar-se sobre o que o autorizaria “de si mesmo” a fazer esta ou aquela intervenção junto aos seus psicanalisandos. De modo que a função do espaço de psicanálise de controle/supervisão não é analisar o desejo do analista, mas autenticar a clivagem entre os diversos semblantes com os quais se traveste o corpo [i(a)] e o agalma (a) como reflexo do desejo. Isso quer dizer que o controlado torna-se psicanalista ao desistir de qualquer semblante, aceitando o vazio do qual extraiu sua própria divisão subjetiva, nessa clivagem entre a análise pessoal e a análise de controle.
Lacan nos dirá que a experiência desse público que é a análise de controle/supervisão como testemunho do tornar-se psicanalista, antecipa o que se espera de alguém que tenha se tornado psicanalista, isto é, a disposição de colocar à prova o que foi seu despojamento das imagens idealizadas com que “vestiu” seu Outro, solicitando a verificação disso à sua escola, na experiência que Lacan nomeou como Passe.
3. O psicanalista da ELP
A análise de controle/supervisão “dialoga” com a análise pessoal e antecipa o que se espera de uma psicanálise que não seja apenas terapêutica, mas inclua uma função “didática” do que pode ser a singularidade de uma psicanálise. O “mestre” é o inconsciente; ele não diz nada; indica o equívoco na fala e nesse sentido pode surgir o chiste como verdade do lugar ocupado pelo sujeito. O lugar terceiro que assim se mostra, indica o passo de sentido (pas-de-sens) dado na análise pessoal e refratado no que se escuta da práxis do psicanalista em controle.
O que é didático na experiência de uma psicanálise é o que se conquista a partir do deciframento do saber inconsciente, isto é, um modo de lidar com o que fica por se dizer naquilo que se ouve. Seria essa uma boa definição para a análise de controle/supervisão?
Deixo esta questão em aberto, não sem interrogar essa relação de extimidade entre a análise pessoal e a análise de controle/supervisão para o tornar-se psicanalista. Seria preciso acrescentar a experiência de cartel como célula mínima de uma escola lacaniana para que haja laço social entre seus pares? Estariam esses lugares diretamente entrelaçados para que o psicanalista da escola surja como efeito de sinthoma, isto é, de um estilo de dizer que sustente o nome da dita escola?
Referência
HOFFMAN, C.; JULIEN, P.; SAFOUAN, M. O mal-estar na psicanálise. Campinas: Papirus, 1996.