Escola Lacaniana

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Tornar-se mulher é pra quem pode ou pra quem quer?

Flávia Chiapetta de Azevedo

 

“De quantos nascimentos e mortes se constitui uma vida?

De quantos partos uma pessoa precisa para nascer?”

(Eliane Brum, Meus desacontecimentos…)

 

Pretendo abordar aqui aspectos de dois livros de Eliane Brum, escritora brasileira, nascida em 1966. São eles: Uma duas (2011) e Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras (2014); ambos abordam a experiência devastadora entre duas mulheres (des)unidas pela carne: mãe e filha.

Uma duas é um romance escrito com sangue, tecido por uma trama de amor e ódio – um amor que odeia e um ódio que ama. A história começa quando Laura, jornalista solitária, é demandada a comparecer no prédio onde mora sua mãe, uma vez que os vizinhos alertam que ela está desaparecida há dias e o apartamento exala mau cheiro. Ao chegar, Laura encontra a mãe em estado deplorável… ela apodrecia em vida. Deitada no chão há dias, sem comer nem beber, suja de urina e fezes e com um dos pés comido pelo gato. A filha abandona o trabalho para dedicar-se integralmente à mãe e esta, depois de uma internação hospitalar e com uma perna amputada, volta para casa.

Ao narrar o convívio entre mãe e filha, Eliane Brum parece tocar no que há de inumano na experiência entre duas mulheres. A narrativa é visceral. Mãe e filha não eram próximas porque eram uma só:

 

“me sentia ligada ao corpo dela como um daqueles cachorros que tem a corda presa ao pescoço que os paralisa depois de alguns passos. No meu caso não era uma corda, mas um cordão umbilical, aos poucos eu não conseguia mais distinguir entre o meu corpo e o dela.” (BRUM, 2011, p. 55)

 

Um acontecimento marca a vida dessas duas mulheres: a mãe descobre que está com um câncer agressivo e pede cruelmente para filha a[se] matar. Como alguém mata a mãe? Matar também pode ser um ato de amor? Matar para poder amar?

Freud, ao descrever a sexualidade feminina, coloca toda a ênfase na relação mãe-filha. O pré-Édipo é o momento mais importante na vida de uma mulher e deixa marcas que determinam suas escolhas. São marcas tão profundas que são difíceis de serem analisadas (FREUD, 1931). São marcas inacessíveis, inassimiláveis, habitadas por um excesso que transborda e devasta.

Para um corpo se sexualizar é preciso que haja a intervenção, em nível simbólico, de alguma coisa que ordene que o corpo real seja de algum modo revestido por uma imagem. Na constituição desta imagem, o falo é a referência: presença ou ausência. Tanto para a menina quanto para o menino não há outra referência que não seja o falo. E diante desta referência, há dois modos de manifestação: ou a presença, ou a ausência.

É interessante observar que a falta do pênis, se reconhecida, o é enquanto falo a menos e não enquanto sexo feminino. “Em tudo isso, o sexo feminino parece não ser jamais descoberto” – diz Freud em “Organização genital infantil” (1923, p.183-184). Em outras palavras, o furo do feminino está fora da ordem fálica, não é reconhecido no nível significante, portanto, está fora também do humano, é inumano.

A devastação, tema que me interessou pesquisar a partir dos livros de Eliane Brum, é uma especificidade da relação mãe e filha. No entanto, este tema me fez pensar que se levarmos em conta que as condições primárias são as mesmas para todos os sujeitos, por que, para as mulheres, essa relação originária é devastadora?

Diferentemente do menino que tem o suporte imaginário do falo no corpo, representado pelo pênis, na menina falta esse suporte e tudo que se dispõe é a escuridão do furo.

A devastação diz respeito à forma como cada sujeito feminino irá se confrontar com a falta de significante que possa nomear o furo que a mulher encarna em seu corpo. A menina espera que sua mãe, por ser mulher, possa lhe oferecer mais subsistência no que diz respeito ao feminino. Ela parece esperar receber da mãe algo no ponto em que se coloca a impossibilidade de uma transmissão da feminilidade. O fato de serem do mesmo sexo guarda a ilusão de uma similaridade, diferente dos meninos, cuja presença real do pênis provoca alteridade. Justamente por não ser apenas fonte de semelhança, a relação entre mãe e filha é também fonte de hostilidade.

É no momento em que o real desponta que a devastação se dá a ver, revelando um gozo refratário à ordem fálica, que leva as mulheres à loucura. Antes da reforma psiquiátrica brasileira, por exemplo, era comum encontrar mulheres neuróticas devastadas, internadas em hospitais psiquiátricos com o diagnóstico de psicose. Essa loucura feminina não é da ordem de uma “encenação mentirosa para chamar a atenção”, trata-se sim de um destempero causado por uma experiência que escapa à ordem fálica.

Para Marie-Magdeleine Chatel (1995), “as palavras da mãe podem oferecer um contorno ao furo do feminino” (p. 11). Mas nem sempre isso acontece; a mãe de Laura, em Uma duas, por exemplo, não tem o que dizer à filha, não há como lhe dar mais subsistência como mulher se ela própria é um sujeito feminino e, no caso, melancólico. Mesmo que fosse uma “mãe suficientemente boa” (Winnicott, 1896-1971), a devastação é um fato inevitável. É uma questão de estrutura, uma vez que é a linguagem que situa a mulher fora daquilo que se pode dizer. Tornar-se mulher é para quem quer se aventurar numa travessia além-mares.

Laura, a personagem de Eliane Brum, evita a devastação e permanece submetida ao Outro materno. Uma exigência de exclusividade acompanhada pela hostilidade é o que determina a relação entre mãe e filha. Laura prefere fazer cortes na pele do que se confrontar com a falta do Outro. O Outro não tem palavras para denominar o furo do feminino. É preciso consentir a castração, reconhecendo que ao Outro falta e fazendo desta falta sua causa, autorizando-se.

Os artistas têm a seu favor a sublimação:

“Lembro que, quando tudo começou era escuro. E hoje, depois de todos esses anos de labirinto, todos esses anos em que avanço pela neblina empunhando a caneta adiante do meu peito, percebo que o escuro era uma ausência. Uma ausência de palavras. Essa escuridão é minha pré-história. Eu antes da história, eu antes das palavras. Eu caos.” (BRUM, 2014, p.11)

 

Meus desacontecimentos é um livro autobiográfico, onde a autora conta como, a  partir da escrita, pode se descolar do Outro com o qual sentia-se ligada pela demanda em ocupar o lugar da irmã morta:

“Durante a infância minha mãe carregou, a mim e a meus irmãos, para o túmulo da filha que morreu (…). E esse ‘carregou’ tem um sentido literal. Talvez minha mãe não pudesse acreditar e precisasse repetir, repetir, repetir. E a cada repetição, eu a filha viva, sentia que a viva era a outra. E, mais morta do que viva, eu falhava em fazer renascer as partes ausentes da minha mãe”. (p.13)

 

Na faculdade um mestre lhe indicou o caminho da escrita a partir do qual pode criar sua ficção e apropriar-se “de si pela letra- marca de sua passagem pelo mundo” (p.111).

Uma duas e Meus desacontecimentos são escritos que testemunham a experiência de uma mulher na trajetória de sua sexualidade. Embora um seja autoficcional e o outro autobiográfico, ambos são testemunhais. Neste trajeto, dois momentos se configuram: se em Uma duas Eliane Brum escreve com sangue, em Meus desacontecimentos a autora percorre-se com delicadeza. Entre um escrito e outro percebe-se um desprendimento que deixa a escrita mais leve. O primeiro é escrito em tempo presente: “Eu era o que escrevia. Sou.” O segundo, autobiográfico, cria um intervalo entre presente e passado, na medida em que “o passado só existe a partir de um narrador no presente que é tanto um decifrador quanto um criador de sentido”.

O sujeito precisa de muitos partos para nascer. A cada parto, uma perda. No percurso do tornar-se mulher, a devastação é inevitável, única via pela qual o sujeito poderá simbolizar as marcas rasuradas na carne, deixadas pelo real da relação mãe-filha.

Matar a mãe é aprender a fazer algo com a falta de significante que diga a mulher. É um caminho de despedidas. O sujeito vai construindo sua história, nomeando os personagens que lhe assombram, promovendo uma tessitura entre o tempo e as cenas. Neste percurso entre passado e presente operam-se perdas.

“Escrevi para poder matar a minha mãe. Essa possibilidade única que a literatura dá. E talvez para amá-la” (2014, p.175). Meus desacontecimentos é um testemunho de como a arte permite ao sujeito contornar o vazio sem sucumbir a ele. Mas será que o artista sabe disso?

Uma duas e Meus desacontecimentos nos mostram que o feminino revela-se intransmissível, mas que o testemunho pode não ser destituído de efeito de transmissão.

 

 

 

Referências

BRUM, Eliane. Uma duas. São Paulo: Leya, 2011.

______. Meus desacontecimentos: A história da minha vida com as palavras. São Paulo: Leya, 2014.

CHATEL, Marie-Magdeleine (1993) Mal estar na procriação : as mulheres e a medicina da reprodução, Rio de Janeiro : Campo Matêmico, 1995.

FREUD, S. (1916-17[1915-17]). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol XV. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

—————. (1923). A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. Op. cit., Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

—————. (1931). Sexualidade Feminina. Op. cit., Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

LACAN, J.  (1960). Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

————-. (1972). O aturdito, in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.