Por: João Carlos Castellar*
RESUMO: O texto aborda a questão do “Inumano” através da pena privativa de liberdade. A punição permeia as relações humanas desde os primórdios da civilização. Os métodos taliônicos, as ordálias, os tormentos até a prisão como hoje a conhecemos constituem-se em fórmulas punitivas aplicadas ao corpo do indivíduo. Todavia, sua intensidade ou quantidade obedecerá a critérios subjetivos que serão orientados de acordo com ordem econômica vigente à época de sua implementação.
PALAVRAS-CHAVE: Pena privativa de liberdade. Evolução histórica. Critérios. Humanidade.
I – Introdução
Para um advogado criminal, que invariavelmente atua em defesa de pessoas acusadas de cometerem delitos, e que estão sujeitas a uma punição, nada mais inumano, desprovido de amor ou generosidade, distante daquilo que pertence à pessoa humana, do que a privação da liberdade como forma de sanção penal, como castigo por uma falta cometida.
Há algumas teorias justificadoras da pena que valem ser expostas para que se faça ideia de como o Direito Penal fundamenta essa forma de punição. Assim como há uma função ideológica que permeia a qualidade e a intensidade das penas.
Esse é o objeto desse estudo.
II – Teoria da Retribuição.
Para Kant, a pena serve como uma forma de retribuição equivalente ao mal que o infrator causou com o cometimento do crime. É ideia bastante antiga, remontando aos princípios taliônicos, expressos na máxima: olho por olho; dente por dente, de que nos dá notícia o Código de Hammurabi.
Hegel também defendia o caráter retributivo da pena. Ele a concebia como produto de um raciocínio lógico-jurídico, que implica na negação da negação, portanto na reafirmação do direito: o crime é uma a negação ao Direito; sendo a pena a negação desta negação, é justa. Segundo o pensamento deste filósofo, para o mal injusto do crime, inflige-se ao seu autor o mal justo da pena.
Críticas a esse pensamento provém de autores que lhes são contemporâneos, como Beccaria, para quem “a finalidade das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido”.
Entre os autores brasileiros, já no século XIX, destaca-se Tobias Barreto. O genial sergipano se insurgia contra a “phantasmagoria metaphysica” dos retribuicionistas, refutando convicções de que a pena consistia numa forma de retribuição do mal pelo mal, vislumbrando com absoluta clareza que a privação da liberdade guarda malévola semelhança com a guerra, pelo menos no que ambas têm de vingativo e violento.
A título de ilustração, vale reproduzir as atualíssimas palavras desse genial sergipano:
“O conceito de pena não é um conceito jurídico, mas político. Este ponto é capital. O defeito das teorias usuais na matéria consiste justamente no erro ao considerar a pena como uma consequência do direito, logicamente fundamentada”.
Com efeito, já se viu por meio de inúmeros estudos criminológicos que a pena como retribuição ou expiação não tem nenhuma finalidade social útil. Representa tão somente uma “vingança” estatal. Deste modo, a pena como retribuição nasceu exclusivamente “para responder ao problema da justificação do direito de punir”. Foi esta, aliás, a orientação constante do Projeto Alternativo de Código Penal Alemão: “impor uma pena não é um acontecimento metafísico, mas uma amarga necessidade no seio de uma comunidade de seres imperfeitos tais como são os homens de hoje”.
Apesar das severas críticas, o caráter retributivo da pena ainda é a pedra de toque que impulsiona o Direito Penal, estando cristalizada na legislação de praticamente todos os países, constituindo-se em uma das teorias construídas para explicar e justificar os fins e funções da pena criminal, legitimando-a.
III – Teoria da prevenção geral
Outra teoria da pena surge com Feuerbach, para quem a pena deve conter um efeito de intimidação capaz de atingir a generalidade dos indivíduos, afastando-os do cometimento de delitos. A pena deve atuar psicológica e coativamente nos indivíduos, visando evitar que cometam crimes pelo receio da punição que advirá dessa conduta.
A ideia seria ótima, não fosse a imposição superlativa de punição que o legislador finda por estabelecer para certos comportamentos tidos como ilícitos. Nosso Código, por exemplo, estabelece pena mínima de 10 anos para quem falsifica um simples batom (art. 273, § 1º):
Art. 273 – Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.
1º-A – Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico.
Não há dúvida de que a pena, em tais circunstância, tem efeito meramente “simbólico”, pois supera em muito a proporção que deve haver entre a conduta proibida e a correspondente punição. Chama-se a esse fenômeno de “inflação legislativa” e os exemplos são inúmeros.
Através dos tempos a teoria da coação psicológica tem recebido novas abordagens, algumas delas, inclusive, como destacam Hassemer e Conde, derivadas da psicanálise e da economia, todas tratando de encontrar as razões que regem e explicam o comportamento humano.
Em conformidade com as descobertas de Sigmund Freud, em alguma parte da psique humana se forma desde a infância um órgão de controle que vigia as próprias emoções e orienta a conduta do homem conforme as exigências do mundo circundante, a que o pai da psicanálise nomeou de Superego, cuja tarefa é a de internalizar as mensagens oriundas do mundo exterior, tais como a autoridade paterna e os mandamentos jurídicos, convertendo-os em determinantes do comportamento. Entre estas mensagens se inclui o castigo.
Assim, segundo esta teoria, a pena, tanto ao ser aplicada como ao se constituir num mal hipotético com o qual se ameaça para o caso de cometimento de um delito, é uma forma de dirigir o comportamento humano, tanto do delinquente, como o daqueles que, através do castigo do delinquente aprendem a inibir e controlar seus impulsos delitivos.
Coisa semelhante ocorre com as modernas teorias econômicas, que pretendem explicar o comportamento criminoso e a reação frente ao mesmo como um rational choice, isto é, como uma eleição racional entre vários fazeres possíveis em que o sujeito se deixa levar porque produz maiores benefícios com o menor custo possível. Neste processo de decisão a pena atuaria como uma forma de direção do comportamento humano, já que através da intimidação e da ameaça do castigo, se faz sentir ao sujeito que o delito não é rentável, que a comissão do crime produz mais custos do que benefícios.
IV – Teoria da Função Especial da Pena
Desenvolvida pela Escola Positiva, baseia-se no pensamento de que a pena, depois de aplicada, deve servir como meio de ressocialização do condenado. Segundo seus idealizadores, entre os quais Ferri, o “fundamento da vida penitenciária” deve ser o “tratamento” do preso.
As críticas ao discurso da prevenção especial se dão em dois momentos: a) na execução da pena propriamente dita, que de há muito não vem se prestando às suas metas ressocializadoras, podendo-se mesmo falar no “fracasso histórico do projeto técnico-corretivo da prisão”; b) ao nível de sua aplicação, posto que o ato de imposição da pena se opera unicamente como um perverso “exercício seletivo do poder de punir”.
Quanto ao não atingimento dos seus objetivos ressocializadores, é de se notar, como salienta Augusto Thompson, que na execução da pena ocorre o fenômeno da “prisionalização”. Diferindo em circunstâncias fundamentais as condições de vida na prisão relativamente às da vida livre, “aquele que ingressa na sociedade penitenciária submete-se a um processo de assimilação que indica a adoção, em maior ou menor grau, do modo de pensar, dos costumes, dos hábitos – da cultura geral da penitenciária”, significando dizer que de maneira alguma a segregação trará a desejada ressocialização do apenado, de vez que “há fortes indícios de que a adaptação à prisão implica em desadaptação à vida livre”.
Como constatou Goffman, as instituições totais, entre as quais as prisões, “são estufas para mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer do eu. (…). Por isso, se a estada do internado é muito longa, pode ocorrer, caso o internado volte para o mundo exterior, o que já foi denominado de ‘desaculturamento’ – isto é, ‘destreinamento’ – que o torna temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária”.
Assim sendo, como se vê da observação dos estudiosos do sistema prisional, o objetivo reeducador ou ressocializador da pena não foi de modo algum atingido, constituindo-se numa tenebrosa ficção.
V – A Função “Ideológica” da Pena
Em 1939, dois professores alemães, George Rusche e Otto Kirchheimer, escreveram um dos mais completos estudo sobre as relações entre a punição e crime. Eles afirmam que a punição não é uma simples consequência, nem o reverso do crime, nem, tampouco um mero meio determinado pelo fim a ser atingido. A punição precisa ser entendida como um fenômeno independente, seja de sua concepção jurídica ou de seus fins sociais.
Para estes professores, a punição, isto é, a escolha dos métodos penais em suas mais distintas manifestações, está vinculada a determinados períodos históricos específicos. Como não há fato histórico sem uma causa econômica a determiná-lo, será o sistema de produção de certa sociedade que estabelecerá as punições correspondentes às suas relações de produção. Assim, o uso ou a rejeição de certas práticas punitivas, bem como sua maior ou menor intensidade, serão fixadas não só por forças sociais, mas sobretudo por forças econômicas.
Numa economia baseada na escravidão, por exemplo, serão desprezadas as penas de morte ou a amputação de membros dos cativos. No sistema feudal, em virtude de não ter sido descoberto nenhum método para o aproveitamento da força de trabalho dos condenados, as penas de suplício e de morte outras formas punitivas foram incrementadas. No mercantilismo surgem as casas de correção e as penas de degredo para as colônias ultramarinas, pois estas precisavam ser povoadas. Quando o sistema fabril de produção foi implementado com a Revolução Industrial, passam a serem adotadas as penas de trabalho forçado.
VI – Conclusão
Levando em consideração este pensamento, vale refletir sobre as razões que fazem o Brasil da atualidade ser um dos campeões do aprisionamento, com mais 700 mil pessoas atrás das grades e uma infinidade de outras vinculadas ao sistema penal (sursis, livramento condicional etc.), em sua grande maioria pela prática de ilícitos vinculados ao tráfico de drogas.
Pode-se afirmar que tais números decorrem de demandas internacionais pela expansão de criminalizações e pelo agravamento de penas. Para fazer frente à política de drogas imposta por Convenções Internacionais capitaneadas pelos Estados Unidos, o Brasil passou a punir com extrema severidade a posse, o uso ou qualquer forma de comércio de substâncias consideradas psicoativas, como a maconha e a cocaína, assim como estabeleceu punições mais graves para o crime de posse de armas, a formação de quadrilha, agora chamada de “organização criminosa”, assim como para os delitos de lavagem de capitais, corrupção, terrorismo etc. Além disso, foram inseridas no ordenamento formas de persecução jamais vistas, como a delação premiada, a infiltração de agentes e a entrega vigiada.
Deste modo, não apenas o tráfico de drogas, mas qualquer outra forma de organização reputada ilícita se inclui no rol de crimes graves, ou hediondos. Isso inclui “Black Blocs”, funkeiros que compõem “proibidões”, vendedores ambulantes e todas as demais condutas havidas como “organizadas”, desde que atuem informalmente e cujos ganhos não ingressem legalmente no sistema financeiro. Mais do que punir corporalmente, estas normas preveem o confisco de bens obtidos ilegalmente.
São infindáveis – e às vezes anedóticas – as suspeitas do pode vir a ser considerado como lavagem de capitais. Vale, a propósito, transcrever Carta Circular do Banco Central do Brasil que classifica as “operações e situações que podem configurar indício” de ocorrência desse crime: “realização de depósito em espécie com cédulas úmidas, malcheirosas, mofadas, ou com aspecto de que foram armazenadas em local impróprio ou ainda que apresentem marcas, símbolos ou selos desconhecidos, empacotadas em maços desorganizados e não uniformes” (C. C. nº 3.542, de 12/03/2012).
Esse embalo punitivo, pautado pelos princípios do neoliberalismo econômico, finda por tornar cada vez mais crescente o contingente de pessoas submetidas a penas corporais, resultando na formação intramuros daquilo que Marx chamou de “exército industrial de reserva”. Na medida em que grande parte da população não se insere no mercado formal de trabalho, a parte que adere a estratégias ilícitas de sobrevivência é presa, seja por tráfico, organização criminosa ou lavagem de dinheiro.
Considerando o enorme número de pessoas desempregadas é muito fácil, nesse contexto, que os mais jovens sejam atraídos para o lucrativo negócio do comércio de drogas, a princípio menos perigoso do que o roubo. São mínimas, e às vezes aviltantes, as alternativas disponíveis. Os que não morrem no alvorecer da vida, vão para a prisão ou se submetem a uma vida indigna, à uma vida nua, à uma vida matável, no dizer de Agamben.
Como assinala Foulcault, nos dias que correm não é mais ao corpo que se dirige a punição como o era em tempos passados. Não é mais o corpo dos indivíduos que se quer atingir. É a alma que se quer. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade e as disposições do condenado.
Mas não é só.
Para o processo e julgamento de certos crimes não tem sido raro acusadores virem a público para solicitar a participação da população como se esta fosse protagonista no processo, como se o povo fosse uma das partes na dialética processual. Pede-se aos cidadãos “de bem”, direta ou veladamente, que se manifestem sobre os destinos de ações penais, mesmo aquelas a serem decididas pelos órgãos mais elevados do Poder Judiciário. Inspira-se um cheiro nauseabundo de glorificação ao “são sentimento” do povo brasileiro, que estaria a clamar por “justiça”, quando, em realidade, o que se açula é o estímulo ao exercício da vingança classista, representado pela imposição de penas, que em alguns casos se aproximam da expiação perpétua.
Tudo isso, traduzido ideologicamente em forma de pena.
A pena que é subjetiva.
A pena que se compara à guerra, no que ambas têm de violento e vingativo.
A pena que é um ente político.
A pena que se presta a formar um exército industrial de reserva encarcerado.
A pena inumana, que além do corpo quer a alma do condenado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEM. Giorgio: Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua. Trad. H. Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002;
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RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social (trad. Gizlene Neder). Rio de Janeiro. Freitas Bastos Editora, 1999. (Coleção Pensamento Criminológico, v. 2)
THOMPSON, Augusto Frederico Gaffreé. A Questão Penitenciária. Petropolis: Vozes, 1976.
* O autor é Doutor em Direito (PUC-Rio) e Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros