Escola Lacaniana

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Do sintoma ao sinthoma: uma letra a mais

Ana Benjó

 

“Há fotos patéticas de Beirute em que vemos pessoas dentro da sua sala que caiu completamente de um lado. É que a neurose permite ao sujeito aguentar nas piores circunstâncias.”

(Vappereau)

 

“O real não é feito para ser sabido, ainda que se manifeste em sintomas”

(Colette Soler)

 

 

Na atualidade, pouco se ouve falar em sintoma. A psiquiatria e as muitas vertentes psicoterápicas não se interessam mais por essa noção. É comum ouvirmos falar de transtornos. Transtornos de ansiedade, alimentar, de humor, de sono, etc. O que expressa o sintoma? Freud deu a ele um lugar de grande importância. Ele extraiu das inúmeras conversões histéricas, com que se deparou em sua clínica, a noção de desejo inconsciente. Elizabeth Von R. exibia sua paralisia, ela não podia dar mais um passo. E à Dora, lhe faltava a voz. É o corpo afetado, comprometido pelo sintoma histérico. Mas há também o Homem dos Ratos, ensinando sobre a sua dramática luta entre desejo e gozo, atormentado pela angústia que transbordava de seus pensamentos; e a importância para a psicanálise do menino Hans, em sua batalha contra a ingovernável boca de um cavalo. Freud vai localizar o sintoma entre inibição e angústia.

Para os psicanalistas, o conceito de sintoma é uma referência clínica fundamental. Alguns sintomas permanecem ao longo de toda uma análise, outros se transmutam e alguns rapidamente desaparecem, até mesmo com poucas sessões. Podemos pensar que o sintoma pode também trabalhar por si só quando passa pela palavra. Sabemos que, ao procurar uma análise, o sujeito se encontra em sofrimento – algo do sintoma já não funciona como antes. Porque se o sintoma é um problema, um transtorno para o neurótico, é também uma solução. Algo fracassa ali, e convoca o sujeito que busca uma análise a iniciar o trabalho de articular seu sintoma ao discurso.

Para Freud e Lacan, o sintoma é diferente das outras formações do inconsciente. Há ali uma constância que não aparece nos chistes, atos falhos e sonhos. Passaremos pelas teorizações de Freud sobre o sintoma, assim como por algumas pontuações de Lacan, em seus seminários sobre o assunto.

Em 1975, Lacan modifica a grafia de sintoma para sinthoma.  O sintoma ganha uma letra a mais. O sintoma neurótico que aparece em “Inibição, sintoma e angústia” não é o mesmo de “O Seminário 23”  de Lacan. O que muda efetivamente? As duas grafias falam de sintomas distintos? A partir da noção de sintoma ou sinthoma, podemos pensar a respeito de diferentes posições do analista na cura? Podemos retirar daí recursos para abordar as novas formas de sintomas que surgem em resposta ao mal-estar? Essas são algumas das questões que nortearam esse trabalho, que pretende rastrear em Freud e Lacan as modificações na teorização desse conceito.

Em “Inibição, sintoma e angústia”, Freud afirma que o sintoma é consequência do processo de recalque, fruto de uma ideia incompatível, presente como formação do inconsciente. Para ele, o sintoma é o substituto de uma satisfação perdida. É processo metafórico que produz efeito de sentido.  Freud percebe que o sujeito busca satisfação naquilo que lhe faz mal, constata a presença de um gozo além do princípio do prazer. Separar alguém do gozo contido em seu sintoma produz toda ordem de obstáculos. Portanto, o sintoma, tratado como mensagem a ser decifrada, nem sempre responde como se espera: algo emperra, silêncio onde se aguarda o trabalho com o significante, representando o sujeito para outro significante. Ainda assim, a decifração permite ao sujeito uma cota de saber sobre seu sintoma.

Em “O Seminário”, livro 5 , Lacan vai falar sobre as máscaras do sintoma. Nesse momento, ele está interessado na ligação entre desejo e sintoma. Há presença de desejo no sintoma, mas os sintomas são máscaras que encobrem algo. É nesse “Seminário” que Lacan vai afirmar que o desejo não é articulável, mas é articulado. Ele está ligado ao significante, mas nunca é totalmente articulável. Se o sintoma é metáfora e produz sentido, produz também non-sense.

Já em “O Seminário”, livro 10 , Lacan vai questionar o caráter decifrável do sintoma. Ele vai dizer que o sintoma não comunica nada. Ele não chama a interpretação. Aparece aqui ligado ao gozo, fechado ao Outro. Cito: “O sintoma não tem necessidade de vocês como o acting, ele se satisfaz; ele é da ordem daquilo que ensinei a distinguir do desejo como sendo gozo…” . Nem mesmo o sintoma histérico fala tanto assim. Indica algo, mas não tem necessidade de vocês. É um acordo entre duas dimensões: desejo e gozo. Uma solução de compromisso, onde o sintoma serviria a dois senhores. O trabalho de análise vai na direção de articular o sintoma ao significante, separando desejo e gozo. Estamos falando do sintoma ligado à verdade, que, para Lacan, tem estrutura de ficção. Isolar o gozo do sintoma que não responde ao significante, passar pelo deciframento até seu esvaziamento, é o trabalho de uma análise.

Qual é o sentido do sintoma? Freud não falou dos sentidos do sintoma no plural. Haveria, então, um sentido comum, único a todos os sintomas? É no “Seminário 21”  que essa questão ganha algumas luzes. Abordar o sentido do sintoma, para Lacan, não é tratar o sintoma pelo sentido. Neste “Seminário”, ele vai fazer referência a alguns textos de Freud que tocavam a questão do oculto, em especial, ao texto, de 1925, “Os limites da interpretabilidade” . É neste texto que Freud trabalha com a possibilidade de outro sentido, além daquele evidente nos sonhos. O sentido que se apresenta não desautoriza um outro possível, oculto. Quais seriam os limites da interpretação? Em psicanálise, trabalhamos com o sentido do sintoma, que inclui o limite de sentido – e este limite diz respeito ao ponto em que o sintoma toca o real. Lacan vai aproximar o oculto, em Freud, ao real, limite intransponível.

Em “O Seminário 21”, “Os não tolos erram”, Lacan vai falar sobre a “dit-mensão”, a morada do dito. Aproxima o dito de um sujeito do real; é o impossível presente no campo das significações e na dimensão do sentido. Ao falar do limite de sentido, Lacan aborda a noção de lalangue, que é diferenciada da linguagem articulada, porque porta elementos sem sentido algum. Lalangue: sons destituídos de sentido que acompanham os primeiros cuidados com um bebê. Portanto, poderíamos pensar que o sintoma é formação do inconsciente e, assim, produz significações, mas também se avizinha do que é anterior à linguagem? Como ter acesso ao que não se decifra? Seriam marcas inapreensíveis? O que o trabalho de análise permitiria fazer com essas marcas? Marcas deixadas pela água do primeiro banho?

O sintoma produz significação fálica e produz sentido, e o sentido do sintoma é o da não relação sexual. A significação fálica vem preencher esse ponto de ausência. É o momento em que Lacan escreve o nó borromeano, recurso para escrever a estrutura. Não há possibilidade de domínio sobre o real. Os não tolos erram. Há que ser tolo do real.

Entramos na linguagem a partir dos significantes do Outro, que não portam sentido algum – nós lhes emprestamos sentido. É assim que inscrevemos o nosso sintoma no campo da alienação.  Todo sujeito precisará dar uma resposta ao furo que o funda. Toda essa operação acaba por nos submeter a um gozo impositivo e escravizante, que exige sempre a repetição do mesmo. O trabalho de análise passa por momentos de angústia, momentos de destituição subjetiva. Cito Colette Soler: “(…) É uma destituição espontânea, selvagem, e que se repete sem instruir o sujeito, o que não faz mais que assustá-lo com sua horrível certeza, à diferença da destituição didática do fim da análise proposta por Lacan” . Trabalho de análise não é sem angústia – trabalho na direção de dar lugar ao desejo e a possibilidade de inventar uma nova forma de gozo.

A grafia do sinthoma traz uma letra a mais. Lacan, certamente, procurou com essa mais uma letra tocar onde a primeira escrita do sintoma não tocava. A letra está fora do registro das representações, é pura materialidade. Sintoma-letra não é sintoma-metáfora.

Sinthoma, letra, lalangue, escrita do nó, noções que dizem respeito à passagem do analisável ao que resta inanalisável. Lacan propõe uma nova identificação, diferente das outras que estavam no registro da alienação ao Outro. Identificação ao sinthoma, fazer com o que resta da análise. Prescindir do Nome do Pai na condição de se servir dele. É fazer com o incurável do sintoma, porque se espera do sujeito uma nova posição no encontro com o Outro.

Uma análise visa à cura? Lacan vai dizer que a cura em psicanálise vem por acréscimo. Ou seja: a cura reside em destacar o incurável – mesmo que nesse percurso o sujeito se beneficie dos efeitos terapêuticos que uma análise pode produzir no caminho.

 

 

Bibliografia

 

  • FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia, in: Obras completas de Sigmund Freud, TomoIII, terceira edição. Madri: Biblioteca Nueva.
  • FREUD, S. Os limites da interpretabilidade dos sonhos, in: Obras completas de Sigmund Freud, Tomo III, terceira edição. Madri: Biblioteca Nueva.
  • LACAN, J. As formações do inconsciente. O Seminário, livro 5 (1957-58). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
  • LACAN, J. A angústia. O Seminário, livro 10 (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
  • LACAN, J. Le nom-dupes errent. O Seminário, livro 21 (1973-74). Inédito.
  • PORTO, M. Do significante à letra lixo, in: A arte da escrita cega, Jacques Lacan e a letra. Organizadores: Marcus André Vieira e Thereza De Felice. Rio de Janeiro: Subversos, 2018.
  • ESQUÉ, X. La función del sinthome, in: ¿Amar al padre o al sinthome?. Seminário em Caracas, primeira edição. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2007.
  • SOLER,C. Los afectos lacanianos. Buenos Aires: Letra Viva, 2011.
  • SOLER, S. O que faz laço. São Paulo: Escuta, 2016.
  • VIDAL, Eduardo. Seminário Do sintoma ao sinthoma. Rio de Janeiro: Letra Freudiana, 1994.