Escola Lacaniana

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Um Convite à Palavra

Renata de Almeida Dias Lima

Psicanalista; Membro da ELP-RJ

 

Estava em outro país, em uma terra distante, quando escutei a possibilidade de apresentar este trabalho e, logo me perguntei sobre a tradução necessária para compor um texto, onde a pesquisa sobre a função simbólica numa UTI se articulasse com a cultura e a arte.

Surgiu, desta questão, o título deste trabalho, já que o considerei, assim como considero a presença da psicanálise numa UTI, um convite à palavra.

Tanto o corpo do sujeito quanto o corpo do texto é território marcado pela língua que o constitui e pelos significantes que ali fizeram e insistem em fazer história.

Um trabalho numa UTI é simbolizável, mas não todo, pois é preciso incluir o Real. O corpo, como lugar de reconhecimento de desejo (e de gozo), habita um tempo e um espaço com limites e significantes próprios, porém, previamente, incalculáveis. É preciso ausculta e escuta das ressonâncias que possam a diferença, assim, marcar.

Dentre vários saberes e interlocuções discursivas, a presença da psicanálise faz questionar. “Fale com ela!” Será que se pode dizer do fim? “É neurológico ou histeria?” O barulho do outro lhe soou insuportável? A demanda de amor é incessante! “Ela não queria sopa, queria jantar com taça de vinho.” O silêncio é mortal? Intercorrência é o quê? Estranha ocorrência? Quais são as palavras que em nossa cultura, para falar da dor de existir, costuma-se usar?

Do paciente ao médico, do fisioterapeuta ao enfermeiro, da família à equipe hospitalar, as transferências e resistências se estabelecem. Cada um, ali – com suas costuras, pontos, laços, nós – está. Internações, procedimentos, urgências, são comuns ao ambiente hospitalar. O contorno textual não abarca a estranheza, quando o furo no saber se dá.

Cito Freud, em 1919, no texto O estranho:

Mas os dicionários que consultamos nada de novo nos dizem, talvez apenas porque nós próprios falamos uma língua que é estrangeira. De fato, temos a impressão de que muitas línguas não tem palavra para essa particular nuança do que é assustador. (FREUD, 1996 [1919], p. 278).

A possibilidade significante porta um limite, como antes afirmei, e como dizer, ou fazer, com o que não há? O horror, a angústia, o reencontro, a inclusão e a expulsão do que é estranho, e tão familiar, se coloca a experimentar.

“Donde vem? Onde vai?” Da pulsão ao desejo, do exílio ao asilo da palavra, do sopro de vida à vida que se esvai em um sopro, do jovem médico ao jovem paciente, o trabalho numa UTI tende a se colocar.

É sob o risco do Real, é aposta na função simbólica, é considerando, como diz Lacan, que o limite da palavra é o corpo, é com a presença do estrangeiro e todo esse litoral, e literal, que ali se está.

O trabalho numa UTI não é poesia, mas tem palavra. E a poesia de Carlos Drummond de Andrade, eternizado em sua arte, é o meio pelo qual encontro palavras para dizer dessa experiência tão singular:

VIVER

Mas era apenas isso?

era isso, mais nada?

Era só a batida

numa porta fechada?

 

E ninguém respondendo

nenhum gesto de abrir:

Era sem fechadura

uma chave perdida?

 

Isso, ou menos que isso

uma noção de porta,

o projeto de abri-la

sem haver outro lado?

 

O projeto de escuta

à procura de som?

O responder que oferta

o dom da recusa?

 

Como viver o mundo

em termos de esperança?

E que palavra é essa

que a vida não alcança?

 

 

 

Referências:

 

ANDRADE, Carlos Drummond. As impurezas do branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

 

FREUD, Sigmund. (1919/1996). O estranho. In: Obras completas. ESB, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.