Escola Lacaniana

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Que intervenções possíveis na infância?

Claudia Pretti Vasconcellos Pellegrini

 

Resumo

O presente texto pretende levantar questões a respeito da clínica psicanalítica com crianças e suas possíveis intervenções e especificidades. Passando pelos conceitos de transferência e da demanda de análise, vai tecendo, através de recortes clínicos um retrato dessa clínica tão rica para a formação do psicanalista. Com uma leitura do que se passa em nossa contemporaneidade a respeito das relações humanas e das dificuldades simbólicas, procura abordar também os aspectos envolvidos com o atendimento de crianças que vivem em meio a divórcios litigiosos e grandes conflitos judiciais.

 

 

Inicio minha fala sobre as intervenções no tempo da infância, com o relato do sonho de um adulto, quando do início de seu percurso analítico: “Tive um sonho que acho que tem a ver com minha vinda aqui. Foi muito angustiante. Sonhei que eu estava em casa, com minha carteira de identidade na mão, e que eu precisava guardá-la. Mas não conseguia decidir onde, até que abri uma gaveta, mas dentro dela só tinha coisas do meu pai. E eu não queria guardar minha identidade ali. Mas eu ficava com muito medo. Precisava guardá-la mas não sabia onde. Só sabia que não era na gaveta do meu pai.”

Considero que esse sonho ilustra bem a questão que pretendo desenvolver. Sabemos desde Freud, que é na infância que constituímos para nós um lugar no mundo, onde de alguma forma, “escolhemos”, a partir de algumas questões inatas mas sobretudo de nossa relação com o outro, uma “gaveta” para guardar nossa identidade. Da inserção na linguagem (essa operação do real sobre o corpo, que tem como resultado o sujeito), às identificações, e à constituição do sintoma como cifra de sua relação com a alteridade, um percurso se dá. Uma nodulação se opera, nunca sem a participação de alguns outros. A frase de Jacques Lacan no seminário “Les Non-dupes errent” nos ilustra com clareza esse caminho estrutural: “A criança está feita para aprender algo. Para aprender algo para que o nó se faça bem”.

A partir daí, podemos nos perguntar: que condições, em nossa contemporaneidade, encontram nossas crianças, para que o “nó se faça bem”? Diante das mudanças ocorridas no contexto familiar, como permitir que as “gavetas do pai” se mantenham abertas possibilitando que o processo de identificação ocorra? E uma outra pergunta importante: que dificuldades e/ou impedimentos encontramos, quando a criança encontra-se, desde a mais tenra idade, inserida em um contexto de litígio entre o casal parental? Somos advertidos por Lacan em sua “Nota sobre a criança” da importância da funções maternas e paternas serem preservadas, independente de quem esteja exercendo as mesmas, e ainda que é fundamental que o lugar “pai” seja referendado pela palavra daquele que ocupa a função materna. Condição necessária para que a Lei do pai seja transmitida, constituindo um corpo, e uma orientação desejante para o sujeito.

-Fiz uma obra de arte.

-Que bacana, como é o nome da sua obra de arte?

-humm, deixa eu pensar.

-pensa.

-Já sei! “Juntando os pedaços”.

-que bom, juntar os pedaços é sempre muito importante.

  1. 5 anos

O presente texto não tem a pretensão de responder a todos esses questionamentos, e sim trazer alguns elementos que nos permitam refletir sobre eles e sobre a intervenção do psicanalista nesses casos.

A psicanálise não se dirigiu inicialmente ao público infantil. Alguns autores e biógrafos chegam mesmo a apontar uma dificuldade de Freud em lidar com as crianças. Também não podemos esquecer do grande equívoco de alguns pós freudianos de considerar que a prática da psicanálise com crianças deveria ser destinada aos psicanalistas iniciantes, supondo erroneamente que esta seria mais fácil de conduzir. No entanto, em sua conferência XXXIV, de 1933, ele irá se debruçar sobre essa clínica, demonstrando que suas especificidades trazem em si muito mais uma dificuldade do que uma facilidade. Cito Freud:

“Demonstrou-se que a criança é um objeto muito favorável para a terapia analítica, os êxitos são radicais e duradouros. Desde logo, é preciso modificar em grande medida a técnica de tratamento elaborada para adultos. Psicologicamente, a criança é um objeto diferente do adulto, não possui todavia um supereu, não tolera muito os métodos de associação livre, a transferência desempenha outro papel, posto que os progenitores reais estão presentes. As resistências internas que combatemos no adulto, estão substituídas, na criança, na maioria das vezes por dificuldades externas. Quando os pais se erigem em portadores de resistência, amiúde a meta da análise ou ela mesma corre perigo, e por isso pode ser necessário agregar à análise da criança, algum influxo analítico sobre seus progenitores. Por outro lado, as inevitáveis divergências desse tipo de análise com relação à dos adultos se reduzem pela circunstância de que muitos de nossos pacientes têm conservado tantos traços infantis de caráter que o analista, adaptando-se também aqui a seu objeto, não pode menos que servir-se junto a eles de certas técnicas de análise de crianças. De maneira espontânea, tem acontecido que essa última se converta no domínio de analistas mulheres, e sem dúvida continuará sendo”. Pág. 181.

Extraímos das palavras de Freud que uma criança é um sujeito. Ponto fundamental para sustentarmos um trabalho analítico com elas. Um sujeito em um tempo particular de sua constituição. E ainda em um tempo de dependência afetiva, social e legal. É justamente essa dependência que inclui no trabalho com crianças esses outros. Precisamos necessariamente considerar o que essa condição de filho recobre. Uma criança é sempre um sujeito acompanhado de alguém, do qual depende. Esse fato traz para sua análise uma certa consistência dessa dimensão real, o que traz consigo ainda um enorme apelo a tentativas de preenchimentos com consistências imaginárias.  Eric Porge nomeia de “transferência para os bastidores” essa especificidade do manejo da transferência na psicanálise com crianças.

 

Apontando para a cabeça, P. 10 anos me pergunta:

-você usa alguma técnica?

-como assim?

Ainda apontando para a cabeça ele continua

-alguma técnica. Você faz alguma coisa com a cabeça da gente?

-por que você está me perguntando isso?

-porque eu não estou entendendo mais nada. Venho aqui e a gente não faz nada. Só conversa. E eu parei de fazer xixi na cama.

 

Um outro aspecto importante de levarmos em conta no que diz respeito à psicanálise com crianças, é aquele que se refere à demanda. Em seu texto de 1920, nomeado “A psicogênese de um caso de homossexualismo em uma mulher”, Freud relata o caso de uma jovem, que apresentava   questões ligadas à escolha de objeto homossexual, e cujos pais solicitam a ele uma intervenção psicanalítica, no sentido de curá-la, deixando-a mais conforme ao que consideravam adequado. Nesse texto ele faz considerações muito importantes a respeito da presença de terceiros na demanda do tratamento.

“Sabe-se bem que a situação ideal para a análise é a circunstância de que alguém que, sob outros aspectos, é seu próprio senhor, estar no momento sofrendo de um conflito interno, que é incapaz de resolver sozinho; assim leva seu problema ao analista e lhe pede auxílio”. No mesmo texto ele passa a considerar as dificuldades de alguém que vai para a análise levado por uma demanda de um outro, sobretudo seus parentes que o amam, ou se supõe que o amem.

 

Após um período de férias, G. 9 anos, retorna para sua análise.

-Como você está? pergunto.

-Muuuito bem. Minhas férias foram boas, minhas aulas começaram e minha professora nova é muito legal. E estou cheio de amigos sabia? Ah! E melhorei outra coisa. Não fico muito nervoso mais. Nem saio batendo em todo mundo.

-Quantas boas notícias!

-Sim. Mas não pense que eu posso parar de vir aqui.

-Não? Por que?

-Porque essa coisas era meu pai e minha mãe que queriam resolver. Agora vamos resolver as minhas coisas.

-e o que você quer resolver?

-ah, te peguei! Isso eu não sei muito bem. Sorri e aponta com o dedo para mim e diz em meio a um sorriso maroto:

-mas eu conto com você.

-ok. Vamos em frente.

 

O que vemos nesse recorte da fala de uma criança tão pequena ilustrar é a importância de a tomarmos como sujeito, efeito evidentemente do discurso parental e referida a esse, mas fazermos, ao mesmo tempo, uma aposta, introduzindo uma margem de liberdade. Não se trata apenas da criança enquanto sintoma dos pais, ou seja, do que, da criança que foram esses pais esse filho atualiza. Essa é a grande tarefa no manejo transferencial, pois será o que vai permitir com que os pais separem-se dessa criança enquanto donos absolutos de um saber sobre ela.

 

Abro a porta para receber B., 6 anos que encontra-se na sala de espera acompanhado de seu pai. Ao me ver, o pai imediatamente inicia um discurso dizendo que preciso conversar com B. sobre seu medo de cachorro, que está muito grande. B. entra no consultório, senta-se e diz:

-deixa essa história de cachorro para lá. Tenho problemas muito mais importantes para conversar.

E os cachorros ficaram…

No caso das crianças que estão envolvidas não somente com o enlace do casal parental mas também com seu desenlace, quando o mesmo se dá de forma litigiosa, acredito podermos afirmar que as dificuldades aumentam. De um lado no que diz respeito ao manejo transferencial, pois temos em cena pais que travam um verdadeiro combate. Combate esse movido a um ódio oriundo de sua dificuldade de fazer o luto da separação e da perda que sofreu no olhar e no erotismo do outro. E de outro lado, na necessidade de permitir que a própria criança se separe disso que não lhe pertence. Muitas vezes, na impossibilidade de separar conjugalidade de parentalidade por parte dos pais, é a criança quem fica com esse encargo, encargo esse sempre muito maior do que sua capacidade de resolve-lo. Uma criança envolvida em um grande litígio protagonizado por seus pais, parece ser uma criança invisível. Não é vista, não é escutada, nem pelos pais, nem pelo poder judiciário.

Sabemos que o encontro amoroso entre duas pessoas não é uma tarefa fácil. Nem hoje nem nunca na história da humanidade. Independente da configuração da família tradicional no patriarcado vigente na época de Freud, precisamos hoje estar atentos às mudanças ocorridas, sobretudo nos enlaces amorosos e as novas configurações familiares daí decorrentes.

Como manter o vigor do um a um, da recomendação de Freud de tomar cada caso como único quando, na interação com o poder judiciário a objetividade das leis e a necessidade da produção de provas é demanda constante? Vivemos hoje um momento onde encontramos muitas dificuldades em enfrentarmos as crises e conflitos inerentes à ordem humana. Empobrecimento simbólico, exigência de eficiência e sucesso, pressa na solução de todas as questões, reivindicação de direitos, etc., são apenas alguns dos fenômenos que podemos citar como características de nosso tempo. Neste contexto, muitos não conseguem lidar com os conflitos no privado de suas relações e acabam demandando intervenção do judiciário como instância terceira. Enquanto isso, e lembremos que o tempo do judiciário não coincide com as urgências do sujeito, os litígios se prolongam e os filhos restam, não é raro, como objeto nessa batalha que se estabelece. Objeto de disputa, de vingança, de ódio, ainda que muitas vezes travestido de amor. E até mesmo objeto de violência. Sim, porque o “lar doce lar” não é uma realidade garantida para todos, e a “criança feliz, feliz a cantar” da canção tão conhecida, em alguns casos tem um lamento quase melancólico a proferir.

 

-Vamos fazer um concurso de desenhos?

-Vamos desenhar o que?

-Montros.

-uauuu!

-Mas o concurso é para ver quem desenha o mais feio. Duvido que você ganhe de mim.

-Vamos lá.

Enquanto desenhamos C. compara o tempo todo seu monstro com o meu. Sempre ressaltando que o dela é mais feio e monstruoso e feroz. E que vai ganhar o concurso. Dividida em meio a um grande conflito protagonizado por seus pais, vítima de alienação parental e mergulhada em um enorme conflito de lealdade, C. dá o resultado do concurso:

-Não falei? O meu monstro é muito mais horrível. Nem adianta você tentar. Seus monstros nunca serão mais terríveis que os meus.

 

Qual o lugar do psicanalista frente a essas demandas? Muitas vezes, em minha prática clínica, me fiz essa pergunta. Isso é psicanálise? Quem é o analisando em questão? Sim, porque são atendimentos que demandam uma presença e uma intervenção maciça do psicanalista, além de contar com a presença de muitos outros.  Atendimentos que trazem para dentro do contexto analítico da criança não somente seus pais, mas advogados, juízes, promotores, etc.  O que inevitavelmente exige um manejo transferencial extremamente cuidadoso. As crianças gritam por socorro das mais diversas formas. Manifestações psicossomáticas, agressividade acentuada, queda no rendimento escolar, são apenas alguns exemplos. Cabe ao psicanalista “dirigir o tratamento” como indica Lacan em seu texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, sem cair no apelo de dirigir a vida da criança em questão, objetificando-a mais uma vez. Necessário que a condução seja orientada por uma perspectiva ética que permita que a criança ocupe uma posição desejante, separando-se do conflito do casal parental, e podendo lidar com o contexto na qual encontra-se imersa. Um savoir-faire que a permita seguir em frente.

Finalizo com a fala de uma criança de 7 anos, em análise desde os 3, e imersa em um litígio parental desde a mais tenra idade.

 

-Como foi o final de semana?

-ótimo. Fui para a fazenda da tia L. (namorada do pai)

-fizeram o que lá?

-muitas coisas, até tomei banho no lago.

-e o que houve que sua mãe falou lá na sala de espera que tinha acontecido uma coisa muito grave?

-Ah Claudia, você já sabe né? Tudo que eu conto que foi bom com meu pai e minha tia ela arranja um jeito de entender tudo errado e fazer confusão. Já estou acostumado. Finjo que nem entendi.

 

Texto apresentado na jornada Clínica da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro, em 31/05/2019.

 

 

Referências bibliográficas:

FREUD, Sigmund. Conferência XXXIV, in Novas Conferências Introdutórias sobre psicanálise. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago, RJ.

FREUD, Sigmund. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In Edição Standard Brasileira de Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago, RJ.

LACAN, Jacques. Nota sobre a criança. In Outros Escritos. Zahar, RJ, 2003.

LACAN, Jacques. A Direção do tratamento e os princípios de seu poder. Escritos. Zahar, RJ, 1982.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 21. Les non-dupes errent. Tradução livre e não publicada.

Porge, Eric. A transferência para os bastidores. Littoral. A criança e o psicanalista. Companhia de Freud, RJ, 1998.