Escola Lacaniana

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O que posso saber?

Andrea Matheus Tavares

“Aquele que me interroga também sabe me ler.” J. L

 

Uma análise inicia-se pela transferência quando há abertura, uma fenda que possibilite a articulação do amor ao saber. O amor e o desconhecimento de si, condições estruturais da entrada na linguagem, re-velam que o amor vem em suplência a um impossível em saber. O que é suposto ao analista vai aos poucos deslizando na suposição de saber que se endereça ao inconsciente, como insabido. Saber que divide o sujeito entre o que diz e o que sabe, mas comparece provocando efeitos de surpresa e estranhamento propiciando enigma e despertando da sonolência do sentido apaziguador tão caro à neurose. Vale lembrar que no método da associação livre, introduzido por Freud, trata-se do saber suposto ao analisando, não ao analista. Do inconsciente do analisando o analista na entrada nada sabe.

 

O significante de entrada é qualquer um, apenas ao final da análise ele vai saber um pouquinho mais. Freud chega a formular a existência de um desejo de saber, no entanto se há análise é pelo que o sujeito não quer saber, siderado pela paixão do ser, assim como do intransmissível saber sobre o sexo e a morte.

 

Podemos tomar a angústia como um fio condutor que orienta e localiza o analista na transferência no que se refere à abertura ao ponto de angústia no dito do analisando. E nesse sentido, é preciso certa dose de angústia para que uma análise avance. Colette Soler lança mão da metáfora do bombeiro piromaníaco, que joga agua quando o fogo está em demasia, e incrementa o fogo quando a chama se apaga, fazendo menção a função do desejo do analista. Certa dose de angústia tem função de motor à elaboração, mas não pode ser insuportável sob o risco de interrupção da análise.

 

Segundo Lacan “A Condição humana”, tela pintada por René Magritte é o que mais se aproxima da representação da fantasia, “é algo que se pinta na tela que oculta à janela, para ocultar a visão que a janela oferece”. É ficção singular do sujeito à pergunta enigmática pelo desejo do Outro. Tessitura entre simbólico e imaginário que oculta o real, tela que se reduz a uma frase deduzida do desejo do Outro. A condição humana submetida ao campo da fala e da linguagem é regida por leis que impõe perdas, escritas do que Lacan nomeia como negatividades da estrutura. A incorporação da linguagem é a incorporação do corpo da falta, do real. No campo da linguagem a castração é causa de origem impossibilitando que o sujeito se represente. O sujeito é efeito por representar-se de um significante a outro. Trata-se de saída de uma escolha forçada na perda do ser pelo sentido advindo do Outro.

 

Lacan no Seminário da Angústia, afirma que antes do significante não há nada. O sentido, próprio a ação do significante sobre o corpo designa e institui o sujeito, mas também o mortifica. Se por um lado o significante abre trilhas para o gozo, sentido no corpo, por outro, deixa rastros aderidos ao corpo, sem significação. “O gozo é exatamente correlativo a forma primeira de entrada em ação do que chamo a marca, o traço unário, que é a marca para a morte. Observem que nada toma sentido até que a morte entre na jogada.”

 

Mas é no complexo edípico que o sujeito obtém da trama do romance familiar à significação fálica, significação da falta no Outro. A resposta ao que se apresenta como significação fálica o sujeito recobre na fantasia, fixando-se na crença de ter um objeto, ou ser o objeto a tamponar a falta no Outro. Freud propõe articular a fantasia, ao segundo tempo do Bate-se numa criança como uma construção, no entanto, a construção da fantasia é o trabalho que se opera em análise. Trata-se da construção do mais intimo de si e o mais desconhecido, cifra de gozo.

 

Lacan dará à angústia uma função central na análise. Localizada como o afeto de exceção, único que não engana, a angústia é o índice de que algo do real foi tocado, e que se está muito próximo do desejo do Outro. Ao mencionar o status do objeto em jogo na angústia, pois não é sem objeto, Lacan separa o joio do trigo afirmando que o objeto da angústia está muito longe do campo da objetividade, do conhecimento, da mensurabilidade. O objeto na angústia circunda o campo da objetalidade, fora do saber, da imagem e da representação. Objeto real, que não se constitui sem o Outro, mas não é do Outro. Surge no encontro do in-dividuo, confrontado à linguagem, na angústia primordial e dos efeitos da linguagem sobre o sujeito e o corpo, divididos pelo significante, portanto entre o sujeito e o Outro.

 

Freud esbarra na angústia de castração fazendo dela um impasse. Lacan fez do impasse freudiano uma travessia, pois o impasse não está na castração, mas em fazer da castração o que falta ao Outro. A condição do desejo como desejo do Outro impõe ao neurótico no roteiro fantasmático, o enquadre do desejo a posição de defesa, insatisfeito na histeria, impotente na neurose obsessiva. Esse enredo, mais ou menos balizado pela lógica fálica, é o mote das ofertas em sacrifício e da mortificação para assegurar que ao Outro nada falte. Situam-se na vertente do “não quero saber de nada disso” que diga respeito ao gozo.

 

O neurótico padece irremediavelmente da inconsistência entre o gozo buscado e o gozo encontrado.
A análise conduz a travessia à outra cena, mas não opera sem a abertura à angústia. A inquietante estranheza surge quando algo inesperado invade a cena, rompendo com a significação fálica. Em seu instante, a angústia, irrupção do real revela o momento em que o sujeito se vê reduzido ao objeto caído do desejo do Outro. O “Sentimento” é de reduzir-se a um pedaço de corpo, caído. Digo sentimento\afeto, pois a angústia invasão real no imaginário afeta o Eu, reenviando ao desamparo primordial, mas seu endereço é o sujeito. Sinal no Eu de um desejo que questiona o, solicitando sua perda. A destituição subjetiva em jogo na angústia atinge o ser no modo como se operou a entrada na estrutura, sou um objeto.

 

A angústia localizada entre gozo e desejo, reverbera o vazio do desejo do Outro como questionamento, pois interroga o sujeito desejante como causa. Lacan nesse ponto renova a noção de corte incluindo o corpo afetado, representado num pedaço, separado. Corte que opera a perda real. A libra de carne é pagamento que escreve o objeto cedível, para dele poder se separar. Escrita do real do gozo no corpo simbólico, imaginário e real. O de que se trata em perder é gozo, perda de si no Outro e do Outro em si. Representado no dito lacaniano: “A castração significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo.”

 

Na “A Lógica da Fantasia,” Lacan ressalta que, “A função de causa no desejo é solidaria da fenda, fenda em que o sujeito assume o engodo de sua própria verdade, ou seja, é do vazio que os centra, que os objetos retiram a função de causa em que surgem para o desejo. A lógica supõe não haver outra entrada para o sujeito no real senão a fantasia.” O real a que Lacan aponta a entrada pela abertura à angústia é balizado pelo objeto @, trata-se do real fora do simbólico, mas que pode demostrar-se no simbólico. A angústia como única tradução subjetiva possível de certo real que o significante não pode captar, traduz que o objeto é de exceção, objeto real.

 

A angústia não é o afeto final conclusivo de uma análise, no entanto uma análise não é sem angústia, assim como a angústia não é sem objeto. É a travessia do inter-dito ao iné-dito que aponta o fim da análise. Quando para além das determinações inconscientes algo se destaca e se inclui de outro modo, única margem de liberdade do sujeito na causa de desejo. Quanto ao saber, ele encontra no gozo o seu próprio limite a se dizer, a algo do real impossível de ser a-bordado, portanto do real do gozo só podemos dizer um pedaço, um tasco que não é todo, um bom bocado.

 

Trago o recorte de um analisando que fala da surpresa e do estranhamento, quando ao ler um texto, a significação que sempre destinou ao significante Lograr, não “encaixava” mais. Lia-o sempre como sinônimo de fracasso. Na leitura de seu próprio texto, sintomático, destaca-se a surpresa de ler, de outro modo, o que sempre esteve ali. O destacamento significante desvela a ficção de uma cena silenciosa e extremamente ruidosa em que o olhar do pai é tomado como “desconfiança”. Olhar que acusa sem nada dizer, refletido num instante, um flash de tempo. Do vazio d’esse olhar que a palavra não habitou, ressoa a voz do supereu, que o conjura ofertar-se ao fracasso. Silencio ensurdecedor, junção de Olhar e Voz, ponto de angústia que desvela o vazio no desejo do Outro. Desconfiança que se reduz em “com fiança”.

 

“Lá onde isso estava, o sujeito deve advir”. Lá onde isso estava aderido ao gozo, interdito, o sujeito deve advir como causa do vazio.

 

Retomo o titulo deste trabalho acrescentando-o outra perspectiva: O que saber do encontro com o real que permita saber-fazer causa do desejo?
Para dar um esboço de resposta a essa nova questão, recorro a Collete Soler: “Ao fim da análise o sujeito sabe alguma coisa do destino que lhe faz o inconsciente e consente nisso, cede a isso”.

 
Referências bibliográficas
Lacan, Jacques. (1962-1963) O Seminário. Livro10. A angústia. Rio de Janeiro, Zahar, 2005.
Lacan, Jacques. (1972-1973) O Seminário. Livro 20. Mais ainda… Rio de Janeiro, Zahar, 1980.
Lacan, Jacques. (1966-1967) O Seminário. Livro 14. A Lógica da Fantasia. Rio de Janeiro, Zahar,
Lacan, Jacques. (1960) Subversão do sujeito e dialética do desejo. In: Escritos. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
Sigmund, F. (1919) Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais. In: Edição Standard das obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1972. Vol XVII
Soler, Collete. Variáveis do fim da análise. Campinas: Papirus, 1995.