Escola Lacaniana

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Entradas, estradas, es(x)tratos em análise

Maurício Eugênio Maliska

A questão referente ao início de uma análise ou em que momento entra-se em análise já atravessou diversos e diferentes caminhos e continua, como um real, a retornar e interrogar, nós analistas, em torno desse momento tão crucial da clínica psicanalítica.

Imaginariamente poder-se-ia dizer que o início da análise se dá no momento em que alguém procura um analista e vai para uma primeira entrevista. Descrição fenomenológica e ingênua, esse quase relato do fato não nos diz nada sobre esses inícios. É curioso e vale assinalar como muitos pacientes chegam para uma primeira entrevista dizendo coisas como: “Finalmente cheguei! Estava com o seu cartão há muito tempo e sempre hesitava em te telefonar e só agora consegui”. O que se passou nesse tempo de hesitação? Por que só agora o paciente consegue chegar? Não sabemos, mas será necessário um percurso de análise entre esse hesito e o êxito?

Em outro fragmento clínico, uma paciente que ao me encontrar num coquetel, numa sexta-feira à noite, vem conversar em particular e me demanda uma entrevista de análise. Entrego-lhe o meu cartão e digo para me ligar na segunda-feira. Ela olha firme nos meus olhos e diz: “Sim, segunda-feira te ligo”. Passaram-se dois anos após essa data para que a paciente, numa segunda-feira, me ligasse para agendar uma entrevista. Ao chegar, diz: “Então, como eu havia lhe dito, estou pensando em fazer análise”. Chama atenção esse gerúndio, “estou pensando”, pois mostra que a paciente não esqueceu da análise durante esses dois anos? Ela ficou alimentando neuroticamente esse início de análise, a tal ponto que fica difícil dizer em que momento essa análise começa. Seria no momento em que ela vem para uma entrevista com o analista ou no momento em que ela lança uma demanda e passa não dois dias (de sexta para segunda-feira), mas dois anos para essa primeira entrevista acontecer? Ou seria ainda a entrada em análise a ida para o divã, ou seja, o momento em que a analisante se implica com o seu sintoma e acirra a transferência com o analista?

De todo modo, a entrada em análise implica uma questão temporal, ou seja, o momento dessa entrada seja nas entrevistas iniciais ou na análise propriamente dita, mostra um tempo lógico que marca a atemporalidade do inconsciente. O fragmento em questão também mostra com muita clareza essa atemporalidade, pois os dois dias da realidade imaginária (de sexta para segunda-feira) representaram, no inconsciente, dois anos. Dessa forma, a paciente chega dizendo que está pensando em fazer análise como se tivesse se passado dois dias do fim de semana e não dois anos. Essa temporalidade lógica marca que o tempo não é cronológico, ascendente, retilíneo ou uniforme e sim multifacetado, difuso, não obedecendo uma lógica linear e progressiva. Temos um tempo marcado por rotas que quebram com o presente, o passado e o futuro, que fazem com que essa entrada em análise não é necessariamente o início, mas um momento subjetivo em que o inconsciente se impõe num momento de concluir.

Abordar a entrada em análise, me faz questionar o início de um tratamento, antes mesmo de um início de análise. Em relação aos inícios, Freud (1909 [1996], p. 145) faz uma nota de rodapé no caso do Homem dos Ratos em que traz uma observação de Adler acerca da importância das entrevistas iniciais, pois muitas questões que irão se desdobrar na análise do sujeito vem, de algum modo, condensadas nas entrevistas iniciais.

Esses inicios, realmente, podem ser definidores. Parece que não ao acaso, Freud (1913 [1996]) abordou no texto Sobre o início do tratamento dois pontos importantes a serem definidos nas entrevistas: o tempo, referente aos horários, e o dinheiro. Não são meros elementos contratuais entre analista e analisante, mas dizem respeito ao que há de mais crucial numa análise, a saber, sexo e morte. O sexo vem representado na pulsionalidade do dinheiro, esse elemento libidinal que movimenta nossa economia psíquica, e a morte vem representada no tempo, que marca um elemento de castração, de corte, de limite. O tempo é a morte, é o limite. Nesse sentido, agendar um horário com um paciente não é uma mera combinação espaço temporal, mas a colocação de um limite, em que no fundo se desenha a questão da morte. Podemos lembrar de inúmeras situações clínicas em que os analisantes jogam com a questão dos horários, sempre querendo outra opção de horário, numa tentativa de encontrar ali alguma imortalidade, e almejando uma disponibilidade quase eterna do analista para com ele.

Nos ater nessa entrada, ainda que seja nas entrevistas iniciais, é talvez estar às voltas com as grandes questões da análise, pois nelas vem conteúdos muito condensados. O que dizer, por exemplo, de uma paciente de nacionalidade argentina, falava português e morava no Brasil há muito tempo, que em sua primeira entrevista, pergunta: “É possível uma análise em outra língua que não a língua materna?” O analista responde que nunca se sabe dizer de antemão se uma análise é possível, seja em que língua ela for realizada. Por traz dessa interessante pergunta não havia simplesmente a curiosidade de alguém sobre os meandros da clínica, mas essa pergunta se mostrou pivô ao longo de toda sua análise. Ela vinha de um histórico de fracassos. Enquanto morava na Argentina, tinha uma loja de peças de automóveis, que faliu. Veio para o Brasil, montou uma fabriqueta de queijos, não deu certo, também foi a falência. Voltou para Argentina e lá também faliu. Veio para o Brasil…, e assim se costurava um itinerário entre Brasil e Argentina, em que apesar de já ter morado muitos anos no Brasil, falava bem português quando o sintoma permitia. Em várias intervenções acertadas do analista, dizia: “No, no comprendo nada que estás diciendo!”. Ou seja, falar mal português fazia parte desses fracassos, em que ela não conseguia se situar entre o Brasil e a Argentina, não conseguia se situar na sua língua materna. Aqui a chamavam de gringa, nominação que a incomodava profundamente. Lá, a chamavam de brasileirita, igualmente incomodativo. Resumo da ópera: sua análise fracassou, a empresa de construção civil que dirigia junto com o marido foi a falência, saindo do Brasil endividada até os dentes. A análise era o único lugar em que o pagamento estava em dia.

Nossas reflexões até o momento contemplam o pedido de entrevista e não propriamente a entrada em análise. O que configuraria, então, a entrada em análise? Não se trata de um tempo cronológico, como já mencionamos, mas de uma posição subjetiva. A entrada em análise, dessa forma, está ligada a um momento em que o sujeito deixa de se queixar do sintoma, em que geralmente essa queixa traz algo de desimplicação para poder se implicar com o sintoma, para se perguntar o que eu tenho a ver com isso. Essa implicação com o que se passa consigo parece fundamental para estar em análise. Não se trata simplesmente de verificar as condições de analisibilidade do sujeito, mas uma vez averiguado isso, que o sujeito possui uma estrutura clínica que dá condições à análise, é importante fazer com que se implique com a análise.

Um segundo ponto importante dessa entrada em análise é que o sujeito esteja mesmo num processo de análise, ou seja, dentro de um discurso psicanalítico em que do seu lugar de analisante promova algo para além de uma demanda de análise, mas um desejo em se analisar. De certo modo, a ida para o divã implica que já esteja acontecendo uma entrada em análise, que o sujeito já esteja afetado pelas insígnias do inconsciente e buscando associar livremente. A entrada em análise é a entrada no discurso psicanalítico, é trazer de forma nua as associações inconscientes, é uma aposta nos efeitos da palavra sobre o sujeito e o seu corpo. A entrada em análise é a saída da queixa, é a construção do sintoma psicanalítico guiado pelo desejo, para além do gozo e da angústia, roçando em pontas do real.

Outro ponto importante dessa entrada em análise é o acirramento da transferência. A transferência dá suporte para a entrada em análise. Refiro-me não a uma transferência imaginária, em que os ideais de pessoa estão especularmente em jogo formando uma boa imagem. Essa transferência imaginária talvez esteja presente na especularidade imagética das entre-vistas, aquilo que fica no olho a olho, face a face. A ida ao divã e a instalação da análise implica uma transferência que não se sustenta mais pela imagem do analista, seja ela qual for, nem mesmo por esses supostos atributos atribuídos pelo analisante ao analista. A entrada em análise diz respeito a instalação de uma transferência simbólica, ou aquilo que Freud nomeou como neurose de transferência, em que o laço com o analista não se dá pela sua pessoa ou pela suposta imagem atribuída a essa pessoa, mas de como este a empresta para os fenômenos transferenciais (LACAN, 1958[1998]). A análise irá acontecer a partir do posicionamento do analista, de como empresta seu ser para a transferência. O laço entre analista e analisante se dará simbolicamente a partir das intervenções do analista e de seus efeitos sobre o sujeito, não mais em projeções imaginárias. É a partir da escuta do analista e dos efeitos da palavra que se instala um laço transferencial que permite certas associações do lado do paciente e certas intervenções do lado do analista. A transferência dá suporte (sustentação) a isso.

Trago um fragmento de caso para pensarmos um pouco sobre essa entrada em análise. Certa vez uma moça me procura para uma consulta. Ela vinha encaminhada de um médico endocrinologista, a queixa era que sua menstruação havia parado. A hipótese inicial de uma gravidez já havia sido descartada logo de início. Passou por um itinerário médico, num rosário de várias especialidades, que viraram a moça ao avesso e nada de anormal descobriram. Até que esse último médico, o endocrinologista, disse que poderia ser alguma coisa de fundo emocional e indicou o analista. Como diz Freud (1905[1996]), suas primeiras entrevistas se resumiam a uma “fala do órgão”, em que ela relatava o passo a passo de sua via crucis. Falava em detalhes sobre o órgão, o que tinha se passado, os exames etc. Na terceira ou quarta entrevista, o analista faz alguma intervenção que apontava para a sua sexualidade, afinal o útero, ovários, hormônios, menstruação, isso tudo é um universo da sexualidade feminina. Foi o suficiente para ela falar de sua posição de mulher e de seus relacionamentos amorosos malsucedidos. A paciente era jovem, 28 anos, bonita, bem-sucedida profissionalmente. Não encontrava dificuldade alguma para seduzir os homens, mas uma dificuldade para manter os relacionamentos. Entrou então nessa seara discursiva, falando das suas relações amorosas, expectativas frustradas, não correspondidas etc. Decorridos três meses, numa determinada sessão, ela dá uma notícia: sua menstruação havia retornado ao funcionamento normal. Se fossemos médicos, daríamos alta para a paciente e encerraríamos o caso, como não somos, escutamos que a paciente tinha deixado a queixa da menstruação de lado, até porque essa já estava resolvida, e começava a se questionar porque seus relacionamentos ficavam paralisados, tal como a menstruação, não fluíam. Nesse período, ela mesma não iria parar o tratamento, pois estava se questionando bastante, chorava, trazia cenas familiares, da infância, em especial uma fala da mãe para uma amiga quando ela tinha oito anos, em que a mãe dizia não se preocupar com o filho menino, este iria se virar, mas se preocupava com a filha, afinal estava cada vez mais difícil arrumar um bom casamento e ela precisaria de um homem. A paciente parecia reagir a essa fala da mãe, na medida em que era bem-sucedida profissionalmente, diferentemente do irmão, que dependia financeiramente dos pais e não tinha uma profissão. Ela tentava mostrar que não dependia de homem algum.

Durante essas entrevistas aconteceu uma coisa interessante. Ao final de uma entrevista, o analista se dá conta que a paciente já estava em análise e seria o caso de colocá-la no divã. Na sessão seguinte, ele esquece de dizer para a paciente deitar e ela senta e começa a dizer que nunca tinha observado que ali havia um divã; foi na última sessão que viu essa peça do mobiliário e no final de semana havia assistido a um filme em que havia uma cena de uma paciente no divã. Diante disso, pergunta: Como funciona isso? Quando vou para o divã? O analista responde: Agora! Ela foi para o divã, onde permaneceu por mais oito anos em análise.

É totalmente possível criticar a surdez do analista, sua resistência em manter a paciente entre as vistas, quase num flerte amoroso, mas de todo modo é também notável aquilo que diz Lacan (1953[1998]), que o inconsciente é parte de um discurso transindividual, que perpassa a individualidade da analisante e do analista. Aparece aí um inconsciente transindividual, algo que não é o inconsciente da analisante ou do analista, mas um mecanismo de funcionamento que envolve os dois. Nesse momento também podemos verificar com clareza quando Lacan (1964[1988]) diz, no Seminário 11, que o analista faz parte do conceito de inconsciente, ou seja, ele está submetido ao inconsciente assim como a analisante, ele é sujeito ao inconsciente e opera desde esse lugar.

Ela pede para ir ao divã justamente porque o analista estava resistindo a coloca-la nesse lugar. Essa resistência do analista retorna para ele na demanda da analisante em ir ao divã. Essa foi uma entrada em análise, para além das sintomatologias da menstruação algo começou a fluir, as regras retornaram para fazer sua vida não ficar paralisada.

Por outra via, podemos dizer que esse foi um momento de concluir o período das entrevistas e entrar em análise. Assim como os três prisioneiros, no texto O tempo lógico … (LACAN, 1945[1998]), saem porta afora com a resposta, no enigma do sofisma lógico, analista e analisante saem num mesmo momento das entrevistas para entrar em análise. É uma conclusão relativa a um tempo lógico que mostra a asserção de uma certeza antecipada de um saber não sabido.

 

 

Referências

 

FREUD, S. Fragmentos da análise de um caso de Histeria (1905 [1901]). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

________. Notas sobre um caso de Neurose Obsessiva (1909). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

________. Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a Técnica da Psicanálise I) (1913). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, J. A direção da cura e princípios de seu poder (1958). In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

________. O tempo lógico e a certeza e a asserção de certeza antecipada. (1945) In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

________. Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise. (1953) In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

________. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.