Escola Lacaniana

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Diagnóstico: para quê e para quem?

Ana Luísa Saleme Colnago*

Cinzenta, meu querido amigo, é toda teoria,
E verde somente a árvore dourada da Vida.

Sigmund Freud inventou e desenvolveu a psicanálise a partir do que recolhia de sua prática clínica. Foi a partir da escuta daqueles que lhe procuravam que ele pôde criar a teoria psicanalítica. Em psicanálise, comumente nos referimos à práxis. A práxis é o processo de experienciar a teoria; é mais do que apenas aplicá-la, é construí-la na experiência. “A clínica a partir do discurso analítico é, portanto, algo a ser construído.” (QUINET, 1991, p.23).
Este trabalho é fruto de vários questionamentos que me vieram a partir da práxis. Muitos casos chegaram até mim na clínica nos quais não era possível definir prontamente um diagnóstico; sujeitos que me pareciam estar no limiar entre neurose e psicose. Logo colocavam a dúvida: trata-se de uma neurose grave ou de uma psicose ainda não desencadeada? O tempo foi passando e a dúvida permanecia.

Casos como esses são cada vez mais freqüentes nos consultórios de psicanálise, diferentemente da época de Freud, em que as estruturas clínicas eram bem demarcadas. Já (quase) não se vêem mais histéricas como aquelas que batiam à porta de Freud buscando tratamento. Os sintomas mudam ao longo da história. Dito de outra maneira: as formas como as estruturas clínicas comparecem modificam-se.

A partir do impasse em definir qual o diagnóstico daqueles a quem eu escutava, muitas questões me vieram: Para que serve o diagnóstico em psicanálise? Em que medida fazer o diagnóstico diferencial entre neurose e psicose nos orienta no manejo clínico da transferência? E esses casos em que não conseguimos definir o diagnóstico, como proceder?

Não vou adentrar neste trabalho nos meandros do porquê as estruturas se apresentam com contornos menos definidos/delimitados na atualidade, ou quais as variáveis históricas que contribuíram para que chegássemos a isso. Também não pretendo discutir aqui se esses casos seriam de estados limites. Até porque aí eu estaria diagnosticando-os, enquanto minha intenção aqui é refletir sobre o diagnosticar. O que me interessa é pensar como proceder quando nos deparamos com esses e também com outros casos em nossos consultórios.
A palavra diagnóstico tem origem do grego diagnostikós. Dia significa “através de” e gignósko “conhecer, saber”. Diagnostikós é a “capacidade de distinguir, de decidir ou de reconhecer” através do conhecimento. Essa palavra não era utilizada pelos gregos como um termo médico. Somente ao ser incorporada ao latim como diagnosis, séculos depois, é que ela passou a ser usada no contexto médico.

Em medicina, o diagnóstico é a conclusão de uma análise de um quadro clínico, a partir da anamnese e de exames. Diagnóstico refere-se à diagnose, isto é, à ação de diagnosticar: recolher e analisar os dados necessários para avaliar os problemas, identificando suas razões e natureza para chegar a uma conclusão. Ou seja, em medicina, o diagnóstico diz de uma conclusão sobre o quadro clínico, para então se iniciar um tratamento, caso haja necessidade. Mas em se tratando de psicanálise, como concluir algo que está apenas começando? Não é só ao final de uma análise que se pode concluir algo?

Sabemos que Freud já falava do lugar do diagnóstico na psicanálise. Em seu artigo Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I), ele orienta os praticantes da psicanálise a partir de algumas regras. O próprio Freud nos alerta, contudo, que não é possível seguir isso que ele chama de recomendações de maneira cega e dogmática.

Penso estar sendo prudente, contudo, em chamar estas regras de ‘recomendações’ e não reivindicar qualquer aceitação incondicional para elas. A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica; e ocasionam que um curso de ação que, via de regra, é justificado possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, enquanto outro que habitualmente é errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim desejado. (FREUD, 1913/1996, p.139)

 

Primeiramente, relata seu costume de fazer o que chama de ”tratamento de ensaio”, que seriam os primeiros atendimentos com a pessoa que lhe procura, antes de iniciar o tratamento propriamente dito. Esse tratamento de ensaio durava uma ou duas semanas (lembremos que Freud atendia seus pacientes seis vezes por semana). Podemos equivalê-lo ao que Lacan chamou de entrevistas preliminares, esse primeiro tempo em que o sujeito ainda não entrou em análise. “Não há entrada em análise sem as entrevistas preliminares” (LACAN, 1971).

Uma das funções desse tratamento de ensaio, segundo Freud, era o estabelecimento do diagnóstico, principalmente do diagnóstico diferencial entre neurose e psicose, distinção esta que nem sempre é fácil de se fazer, nos alerta ele. Já o diagnóstico diferencial tem a função de orientar a condução da análise, isto é, o manejo da transferência. Se o analista suspeita estar diante de um psicótico, vai ter certas cautelas que não teria caso não houvesse essa suspeita. Na transferência, o analista é convocado a ocupar o lugar do Outro do sujeito, por isso a importância de detectar a modalidade da relação do sujeito com o Outro. Vale ressaltar que Freud criticou os diagnósticos rápidos, isto é, os diagnósticos definidos assim que o sujeito chega ao analista, chamados por ele de diagnósticos-relâmpago.
Há diferenças entre neurose e psicose, como bem sabemos, mas elas podem ser muito mais sutis do que imaginamos. É só na transferência que podemos fazer essa distinção neurose-psicose, e às vezes depois de muito tempo do início do tratamento. Será que muitas vezes a pressa em diagnosticar não se daria pelo medo do que possa aparecer no caso? Ouvimos constantemente falas como “na melhor das hipóteses é uma neurose” ou “ufa, é uma neurose”, frases que partem do pressuposto de que um neurótico não sofre tanto ou mais que um psicótico, ou que seria mais fácil o tratamento de um neurótico.

Continuando a pensar o diagnóstico, é preciso dizer que ele tem seu lado complicado. Todo diagnóstico é uma classificação. Quando categorizamos, classificamos, agrupamos a partir de um ponto em comum. Escutamos o que há de igual ao invés de buscar o que é singular. Incorporamos o sujeito a uma classe e lhe atribuímos um juízo de valor. “Através do agrupamento de fenômenos em uma classe damos a conhecer um indivíduo, mas perdemos o sujeito. Quanto mais se delimita o eu através de seus nomes, títulos e as roupagens imaginárias que lhes são inerentes, mais se oculta o real do desejo inominável que habita o sujeito e que circula entre estes significantes mestres.” (VIEIRA, 2001)

Lacan contribui para essa reflexão sobre o diagnóstico a partir do deslocamento que faz do fenômeno para a estrutura. Por isso, a partir de Lacan, fala-se em diagnóstico diferencial estrutural. Lacan retira o diagnóstico de uma vertente mais imaginária e o localiza mais próximo ao simbólico, na medida em que assim permite uma certa aproximação do real da nomeação. A proposta de Lacan ao situar o diagnóstico diferencial estrutural mais próximo da vertente real da nomeação é justamente marcar uma singularidade ao invés de classificar e fixar num grupo. Essa maneira de diagnosticar toca de modo singular no gozo. Diagnosticar em psicanálise tem a ver, então, com um ponto que toca o real, que abre-se para o real.

Assim, podemos pensar no diagnóstico diferencial estrutural como uma hipótese e/ou uma suspeita, não sem hesitação. Mesmo nos casos que aparentemente não nos causam tantas dúvidas, o diagnóstico diferencial é uma hipótese e não uma conclusão, o que levaria a um fechamento. Podemos tomar o diagnóstico como um mal-necessário e um bem perigoso, que deve ser buscado mas jamais inteiramente alcançado.
Mas e nos casos mais difíceis, esse diagnóstico deve ser feito com ainda mais cautela, ou até mesmo ser deixado em suspenso. Por que não? Lembremos que a posição do analista tem a ver não com um saber absoluto, mas com a ignorância douta, que nos orienta no sentido de uma prudência e do reconhecimento de que temos limites. Limites também no diagnosticar.

Sabemos que o fazer do psicanalista é no um a um. Lembremos que Freud já nos orientava que tomássemos cada caso como se fosse o primeiro. Fazer no um a um é escutar cada analisando em sua singularidade; é escutar cada caso como o primeiro e único. Cada novo paciente implica a construção da própria psicanálise, pois o saber que se tem de outros casos não vale de nada, isto é, não pode ser transposto para aquele caso. Cada caso é de fato um caso novo e assim deve ser abordado. Se falamos em técnica na psicanálise, trata-se da técnica mais próxima do sentido grego techné: um fazer artesanal.

Ter o diagnóstico diferencial estrutural como uma ferramenta que pode nos auxiliar no manejo transferencial é importante. Porém, não devemos permitir que a categorização diagnóstica tome a frente e sobreponha-se à escuta do que é mais singular e único naquele que nos dirige à palavra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. (1913) Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I). (ESB), vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_______. (1924 [1923]) Neurose e Psicose. (ESB), vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_______. (1924) A perda da realidade na neurose e na psicose. (ESB), vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, J. O saber do psicanalista (ciclo de conferências inédito), 2 de dezembro de 1971.

QUINET, A. As 4+1 condições da análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1991.

VEGH, I. As Intervenções do Analista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001.

VIEIRA, M. A. Dando nome aos bois, sobre o diagnóstico em psicanálise. In: Ana Cristina Figueiredo. (Org.). Psicanálise – pesquisa e clínica. 1 ed. Rio de Janeiro: IPUB/UFRJ, 2001, v. 1, p. 171-181.