Escola Lacaniana

(21) 2294-9336

As vicissitudes da pulsão no final de análise

Ana Paula Gomes

O que será, que será?
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido
O que não tem governo nem nunca terá?
Chico Buarque

 

Em 1914, um psicanalista, que não era qualquer, Sigmund Freud, antecipou Chico Buarque ao descrever os elementos da pulsão e indicar os seus destinos. São quatro os elementos da pulsão, um dos quatro que Lacan elencou como conceitos fundamentais. São eles: a fonte que é o corpo, “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”1 ; a pressão que é constante, “não tem dia, nem noite, não tem primavera, nem outono, ela não tem subida, nem descida. É uma força constante”2 ; o objeto que é o mais variável possível, mas que não é qualquer, pois é a demanda do Outro que determina o objeto a ser adotado pelo sujeito; e o objetivo que é a satisfação.

 

Quanto aos destinos, Freud destacou também quatro vicissitudes pulsionais: o recalque, pedra angular da psicanálise, que levou Freud às veredas do inconsciente; a sublimação; o retorno sobre o eu; e a reversão no oposto.

 

A questão que orienta este trabalho é: qual o destino pulsional anima o desejo do psicanalista? Se o final de análise é o que leva à passagem de analisante à analista, como o sujeito que atravessou a sua fantasia pode viver a pulsão?

 

A fantasia é o enquadre, a tela, através da qual o neurótico vê o mundo, onde se apresenta como sujeito a partir de uma significação fálica, sou isso ou sou aquilo, numa ficção constituída no seu romance, drama, tragédia, ou comédia edípica, a partir do lugar que supôs ocupar no desejo do Outro. É também uma fixão, na qual o recalque como vicissitude pulsional, instala uma fixação puslional, que impele o sujeito a gozar sempre da mesma maneira, tendo o sintoma como um corpo estranho que o neurótico tanto cultiva.

 

Uma vinheta clínica: em análise, num tempo de construção da fantasia, A. circusncreve um lugar de abandono na relação com o Outro, e o gozo pulsional masoquista decorrente desta posição, assim como a resposta sintomática, encobridora, sustentada no ideal de precisar saber para não ser abandonado. Na relação com o Outro, qualquer rusga, desentendimento, desencontro se apresentava como um precipício onde se culpava por não ter sabido fazer, e assegurado da queda de seu lugar no desejo do Outro, antecipava o abandono. Essa posição sintomática repetia-se também no exercício da função de analista, a cada atraso, falta, ausência do analisando, antecipava a interrupção do tratamento, vendo-se também como abandonado.

 

Da construção à travessia da fantasia é feito o percurso de uma análise, tendo a angústia como bússola de que algo da posição sintomática do sujeito vacila, deixando à nu o objeto a, objeto causa de desejo, no sentido que Lacan indica no seminário da Angústia: “se existe um objeto de teu desejo, ele não é outro senão tu mesmo”3 . Qualquer outro objeto é o envelope de responder à demanda do Outro, e de gozar pulsionalmente, repetidamente da ilusão de que o objeto existe.

 

A destituição subjetiva se dá no âmbito do final de análise, quando o analisante autoriza, a partir da travessia da sua fantasia, que o objeto a, que esteve revestido falicamente como significação do desejo do Outro, opere como causa de desejo. Pura insistência. Mas o que está em jogo, então, nesta posição no que concerne à pulsão?

 

Não se trata do recalque, que é justamente o que é necessário suspender numa análise. Suspensão cujo destino pulsional da sublimação compreende. Mas o final de análise não corresponde à sublimação. E por quê?

 

Freud em dois de seus textos cruciais sobre a pulsão de morte, “Mal estar na civilização” e “Análise terminável e interminável”, destaca dois elementos que apontam o impasse que a referida pulsão traz para a conclusão de uma análise. No “Mal estar na civilização” (1930) refere-se à dificuldade de sublilmação para a neurótico, e mesmo para aqueles que portam tal recurso, à impossibilidade de tudo sublimar. Em “Análise terminável e interminável” (1937) a parcela econômica do ônus do masoquismo, descrita na reação terapêutica negativa, um dos avatares do supereu, é um dos grandes obstáculos para o término de uma análise. Nesse texto crucial de 1937 sobre a formação do psicanalista para Freud, embora destaque o rochedo da castração como obstáculo últitmo da análise, é a pulsão de morte que comparece como o resíduo daquilo que a ordem simbólica e o falicismo freudiano destacam como o interminável de uma análise.

 

É fato que uma análise não transcorre sem sublimação e seus efeitos, haja visto que há uma suspensão do Outro no processo sublimatório, levantando o recalque, onde o sujeito se vê representado falicamente de um signficante para outro significante, possibilitando, assim, a experiência com a falta de objeto da demanda. Pois, o que é privilegiado é o trajeto pulsional causado pelo objeto, produto da criação sublimatória.

 

Mas como destaca Lacan, desde o Seminário X “A Angústia”, há um ponto irredutível ao significante, um resto de gozo, já aqui descrito em termos freudianos pela via da pulsão de morte, que é o masoquismo originário, de estrutura, que escapa a qualquer processo sublimatório. Fazer-se de objeto é masoquismo. “O que mascara essa posição de objeto senão ir ao encontro de si mesmo, colocar-se na função de farrapo humano, do pobre dejeto de corpo, separado, que nos é apresentado nessas telas?”4

 

O que distingue tal posição masoquista daquilo que Lacan descreve na “Nota Italiana” do lugar de rebotalho do psicanalista? Diz Lacan: “Só existe analista se esse desejo lhe advier, que já por isso ele seja rebotalho da dita (humanidade). Digo-o desde já: essa é a condição da qual, por alguma faceta de suas aventuras, o analista deve trazer a marca… Se o analista se criva do rebotalho de que falei, é por ter um vislumbre de que a humanidade se situa pelo feliz-acaso(bon-heur), e é nisso que ele deve ter circunscrito a causa de seu horror, o dele próprio, destacado do de todos – horror de saber.”5

 

Não há sublimação possível deste ponto de rebotalho, dejeto. E tampouco reversão pulsional no oposto, visto que é vedado ao psicanalista qualquer gozo perverso, como o sádico, no exercício de sua função, ainda que se trate ao final de uma análise, de uma outra versão do pai, pére-version. Será o semblante, então, a invenção do sinthoma, deste ponto onde não há Outro do Outro, de um psicanalista? O que cabe a um psicanalista saber? O psicanalista não inventa apenas um “savoir-y-faire”, mas ele sabe que isso que ele faz, com isso que faz, é semblante do objeto, que consente em ser, não sendo, nem tendo.

 

O que é o saber do psicanalista? O que está em jogo para um psicanalista no que concerne ao saber é a “douta ignorância”. O insabido do inconsciente, que ninguém sabe, nem o pai, nem o analista, e que é a invenção de cada psicanalista no seu savoir y faire, no seu saber fazer com isso, enigma indecifrável, pois do real impossível, o que não cessa de não se escrever, trata-se de fazer com ele. É preciso ceder do ser narcísico, aquele que supõe saber quem é. “Ou seja, aquele que sabe que sabe, ora, esse sou eu” (Lacan, lição de 04 de novembro de 1971 do seminário “O saber do psicanalista”)6. Ou seja, também não se trata de retorno pulsional ao eu.

 

Voltando à vinheta clínica, a resposta sintomática que A. deu ao fantasmático abandono, lugar suposto no desejo do Outro foi: eu sei, eu sou. Frase recortada na análise a partir de uma lembrança encobridora, onde vestido com a letra E, é convidado a ler para os pais presentes, na festa do livro da alfabetização. Ao final da apresentação, escuta de sua mãe, que ele havia sido a única criança aplaudida duas vezes. Em análise, nas repetidas voltas da frase escuta que todas as vogais estão ali contidas, com exceção do a. Justamente o a da letra inicial de seu nome, o a de analista. Além de escutar o agudo da letra e, que acentuou o ser, mas pode ser inicial de verbo, como, por excemplo, escrever, errar.

 

É falando que o sujeito se escreve numa análise e tem a possibilidade de livrar a letra recoberta pelo significante, permitindo o atravessamento do saber em direção à verdade da castração do sujeito, num dizer que porte uma enunciação mais do que um enunciado. A letra é o indizível da pulsão, é a pulsão vivida, memória da pele, como escreve Wally Salomão quem se lembra de você em mim, não sou eu, sofro e sei.

 

Quem sabe da existência daquilo que não tem governo, nem nunca terá, não pode acreditar em juízo final. Mas pode se responsabilizar eticamente pelo que sempre será. Autorizar-se de si mesmo é autorizar-se dessa perda inaugural, resto da constituição subjetiva, o objeto a, que envelopamos como falo nas nossas fantasias, ofertando ao Outro, aquilo que julgamos ser dele, ou seja, a nossa posição de objeto. A questão é que o objeto a, não é do Outro, não é do sujeito, é terra de ninguém, é uma pequena margem de liberdade. Autorizar-se de si mesmo é autorizar-se da angústia, que não é sem o objeto a, índice da castração do Outro e da divisão do sujeito.

 

O ato analítico está sustentado na presença real do analista, suportada como causa, semblante de objeto. O psicanalista é aquele que sabe da sua condição de objeto, acéfalo da pulsão, mas ainda assim, se oferece como pato do real, para sustentar e pagar com sua pessoa, com seu ser e suas palavras, o lugar de transferência para um outro. “Se ele não é levado ao entusiasmo, é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance”7

 

_____________________________

1 LACAN, J. “O Seminário livro 23 O sinthoma”(1975-76), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2007, pág. 18.

2 LACAN, J. “O Seminário livro 11 Os conceitos fundamentais da Psicanálise”(1963-64), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1988, pág. 157.

3 LACAN, J. “O Seminário Livro 10 A angústia”(1962-63), Rio de janeiro: Jorge Zahar Editora, 2004, pág. 241.

4 LACAN, J. “O Seminário Livro X A Angústia” (1962-63), Jorge Zahar Editora, Rio de Janeiro, 2004, pág 182.

5 LACAN, J. “Nota Italiana”(1973) in “Outros escritos”, Jorge Zahar Editora, Rio de Janeiro, 2003, pág. 315.

6 LACAN, J., “Estou falando com as paredes”, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2011, pág. 22.

7 LACAN, J. “Nota Italiana” (1973) in “Outros escritos”, Jorge Zahar Editora, Rio de Janeiro, 2003, pág. 313.