Escola Lacaniana

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A folha branca que jaz diante de mim

Helena de Castro Affonso

Psicanalista; Membro da ELP-RJ.

 

Era noite, uma noite fria. Surda.

Tudo o que eu ouvia não era senão o ruído

feltrado de meus passos gelados sobre a neve.

Eu fugia da guerra, sonhando com um alhures,

com uma vida melhor.

Silencioso, ansioso, aproximava-me de uma

fronteira na esperança de que o terror e o

sofrimento perderiam meus traços.

Uma vez na fronteira, o passador disse-me

para lançar um último olhar para minha terra

natal. Parei e olhei para trás:

tudo o que vi não era senão uma extensão

de neve com as marcas de meus passos.

E, do outro lado da fronteira, um deserto

semelhante a uma imensa folha de papel virgem.

Sem traço algum. Disse a mim mesmo que o

Exílio

seria isso, uma página em branco que seria

preciso preencher.

Uma estranha sensação apoderou-se de mim.

Insondável. Não ousava nem avançar nem

Recuar.

Mas era preciso partir!

Mal havia ultrapassado a fronteira e o

vazio me aspirou. É a vertigem do exílio,

murmurei no âmago de mim mesmo.

Não tinha nem minha terra sob o pé,

Nem minha família nos braços,

Nem minha identidade na bolsa.

Nada.

(A Balada do Cálamo, Atiq Rahimi)

 

Tenho, de início, uma transferência ao passe. Ao chegar à Escola em 2007 comecei a escutar o significante passe e, sem nada saber sobre Lacan, dispositivos, fazer escola, quis saber.

Descobri que no Boletim da Escola de 2007 tinha um texto da Teresa Nazar sobre o passe e fui ler. De repente analfabeta! Não entendi lhufas!

Mas o passe não passou. Quero saber.

O im-passe, o im-passável. Real. Angústia, aquilo que não cessa de não se escrever! A folha branca que jaz diante de mim.

Há alguns meses, vivendo mais um daqueles lutos dos nacos de nós mesmos que entregamos numa análise, pensei como eu era, como eu vivia sob a ditadura do sintoma. Tentei voltar, relembrar. Não há volta, atrás de mim nada mais que uma extensão de neve com as marcas de meus passos.

E à frente, uma página em branco que será preciso preencher.

Eu queria estudar psicologia, mas a faculdade era à tarde e eu precisava trabalhar. Também tinha muito interesse por comunicação/jornalismo, a escrita me chamava. Chamou e eu fui, estudei, me formei e trabalhei muitos anos nessa área.

Ainda na faculdade fiz uma primeira terapia. Alguns meses, o suficiente para perceber que queria “algo mais profundo”, embora não soubesse bem o que isso queria dizer e menos ainda o que era psicanálise, mas eu dizia convicta “quero fazer análise”, tinha certeza que era a psicanálise que ia dar um jeito em mim.

Bem antes disso, ainda adolescente, uma tarde qualquer em casa eu estava passando uma roupa que ia usar, e para “colar com ela”, levei a mesa de passar roupas para a salinha de TV onde a minha mãe lia um livro sentada no sofá. As duas em silêncio, ela lendo as palavras escritas no livro, eu escutando as do meu pensamento, que insistia na questão que sempre me angustiou.

De repente, exasperada, quase num grito, solto: por que eu não sou como a Iza (1)? Por que não acho que a vida é estudar, fazer uma faculdade, ter um emprego, casar, ter filhos e depois ficar sentada no trono de um apartamento esperando a morte chegar? Por que eu tenho essa inquietação?

Exceto pela expressão de surpresa registrada no rosto, minha mãe permaneceu impassível. Levantou os olhos sobre os óculos de leitura e disse com voz branda: porque cada um é de um jeito, o que é simples pra ela, não é pra você.

A sequência de passos a dar na vida, pré-escritos, sempre fora um incômodo para mim. Isso é assim, mas porque é assim?

Concluí a faculdade, casei e vim morar no Rio. O primeiro ano aqui foi dedicado a buscar um analista. O segundo foi o do início do meu primeiro processo de análise, que durou 10 anos.

A vontade de cursar psicologia me acompanhou ao longo da vida e até os 40 e poucos anos tinha convicção de que faria isso.

Aí achei que não queria mais, minha carreira tinha sido muito boa, poderia abdicar dessa ideia.

Decisão tomada, comecei a interrogar, o que faria então, já que comunicação não era mais o que eu queria? O impasse me paralisou, dor, tristeza, angústia. Voltei para análise, dessa vez lacaniana, e eu sabia pouco, quase nada, sobre o que seria uma análise lacaniana.

Até que um dia comentei com a analista sobre esse desejo antigo de estudar psicologia, e ela me falou da escola de psicanálise, sobre a formação, e eu fui lá, assistir … umas aulas, só para ver … Não saí mais.

São mais de 13 anos de percurso cronológico desse segundo tempo de análise. Clínica, cartéis, supervisão. Eu vivia satisfeita com a minha profissão, mas de que satisfação eu falava? Satisfação não é prazer, o que precisa se satisfazer é da ordem do pulsional.

Meu primeiro processo de análise não foi suficiente para despertar em mim o desejo de ser psicanalista. Queria fazer psicologia, mas não sabia bem o que faria com a psicologia.

No entanto, após escutar a minha analista e me dirigir à escola, e ali, naquele recinto estranho, que não segue as regras estabelecidas, que rechaça a burocracia da hierarquia imposta, o contato com a psicanálise em extensão em todas as suas vertentes – teoria, prática clínica, a transmissão na escola, o fazer escola – fez com que brotasse esse desejo de abraçar o exercício da psicanálise como função.

Recorto Elisa Alvarenga em seu texto O passe na prática para dizer o que não conseguiria formular melhor:

Não confundo este querer com o desejo do analista, mas houve aí um marco lógico, não da ordem da contingência, mas antes, da necessidade. Eu não podia fazer, naquele momento, de outra forma, não podia trabalhar com outra coisa senão com a psicanálise de orientação lacaniana: a psicanálise fez-se sintoma.

A análise em intensão funda a análise em extensão, insiste Teresa Nazar. A análise foi o que me causou como analista, e, como disse a outra Teresa, a Melloni, o desejo de colocar a plaquinha na porta e me dizer como tal.

“O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira”, nos diz Lacan (Escritos, página 260), mas na maioria das vezes ela está escrita em outro lugar – no corpo, no que podemos lembrar da infância –, acrescenta ele, e é essa a construção possível em uma análise.

Na Proposição de 1969 Lacan introduz o passe como dispositivo de verificação. Essa verificação seria, no meu entender, do possível de dizer sobre o desejo do analista, mas não só. Lacan propõe com ele o avanço da psicanálise.

Mais adiante, em 1975, Lacan fala do passe como o lugar da hystorização do analista e cria o significante que reúne história e histeria. O passe seria assim  “historisterização” da análise.

O que relatei acima sobre a nostalgia do que eu fui e a impossibilidade de retorno a esse lugar me dá a certeza de um caminho percorrido, sem retorno, ao mesmo tempo em que aponta para um longo percurso por fazer.

Até o momento de concluir, a “folha branca que jaz diante de mim” espera pela hystoire que um dia poderei escrever.

 

(1) Minha irmã, mais velha das 4 mulheres, antes dela tem um irmão