Escola Lacaniana

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UMA PSICANÁLISE, O QUE É ISSO?

UMA PSICANÁLISE, O QUE É ISSO?

 

Ana Paula da Costa Gomes

 

“Não sou um poeta, mas um poema.”

(Lacan, Prefácio à edição inglesa do Seminário 11)

 

Quisera ser um poeta e a pergunta titulo desta comunicação – oxalá uma enunciação -, e eu responderia que uma psicanálise é uma leitura. Não sem tomar emprestado de meu Castello (2012) a definição do que é um leitor: “Um leitor é isso: alguém que se apossa de um livro. Que faz do texto alheio, seu texto. Que nele rasga uma segunda assinatura”.

Como não sou poeta, faz-se necessário que eu me aposse deste empréstimo e diga com meu texto o que é isso, uma psicanálise. 

Uma psicanálise é a leitura do romance familiar do sujeito, no qual ele foi escrito e inscrito pelas determinações inconscientes do desejo do Outro, ao qual para se constituir fez-se necessário alienar. Mas para fazer deste alheio seu texto será preciso fazer da transferência uma travessia de separação, para, com os restos deste caminhar, dar  voz a sua assinatura.

Mas a verdade é que, muito mais do que uma resposta ao título, este trabalho existe e insiste em sua questão. Partindo da premissa que a fantasia é a resposta que o sujeito dá ao que supõe ser como objeto do desejo do Outro, destaco especialmente como questão  nos tempos da travessia de uma análise os diferentes posicionamentos do  sujeito em relação ao seu grande Outro. Ou com um pouco mais de poesia, quais vestimentas o sujeito vai retirando até encontrar o Outro nu?

Foi no citado seminário 11, após constituir aquilo que diz ser sua invenção para a psicanálise, o objeto a, que Lacan circunscreveu os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise: pulsão, inconsciente, transferência e repetição. Lacan marca, assim, uma diferença fundamental em relação à Freud, no que concerne à transferência e, consequentemente, à direção da cura e especialmente ao final de uma análise. Se em Freud, transferência é repetição, em Lacan o que marca essencialmente a transferência é a separação. Cito Lacan: “Esta operação segunda é tão essencial de ser definida quanto a primeira, porque é aí que vamos ver despontar o campo da transferência. Eu a chamarei, introduzindo aqui meu segundo termo, a separação”(LACAN, 1964(1985), P.202)

Vale lembrar que Lacan, para tratar a transferência, vai se valer do binômio alienação-separação, o mesmo que neste seminário ele utilizará para falar da constituição do sujeito, embora, após este seminário, ele abandone o binômio, ficando apenas com a alienação para falar da constituição subjetiva. Pois, a separação será exclusividade do campo transferencial.

  Isso porque, embora a metáfora paterna permita um ponto de separação ao alienante – porém necessário – desejo da mãe, ela é insuficiente, declinante por estrutura para designar o que é o sujeito em sua condição desejante. O complexo edípico, verdadeira rocha da castração, designa a significação fálica, o significado da fantasia do sujeito. Fantasia enquanto ficção do romance familiar e fixação como adesivamento libidinal, do qual o neurótico tanto padece em suas escolhas na vida, gozando repetidamente da crença de ter um objeto; Ou sê-lo: o falo.

A castração do Édipo deixa como herdeiro o supereu, que faz o sujeito gozar adesivado ao falo que ele acredita ter ou ser. É o rochedo freudiano de “Análise terminável e interminável”. O além deste rochedo, é o que Lacan já propõe no Seminário da Angústia”, que é a castração que se opera no palco da transferência enquanto separação, luto do falo que circunscreve o objeto como causa em sua vereda desejante.

Vale lembrar de “Édipo Rei”, que após a descoberta da verdade que porta seu nome, fura seus olhos, se cega, por não mais querer ver o olhar do povo de Tebas sobre sua vergonha. Diz ele, que pudera também tapar seus ouvidos, para não mais escutar as consequências de ser o assassino de seu próprio pai.

O supereu é uma voz silenciosa que grita. O mito de “Totem e Tabu” nos ensina que matamos o pai para ter acesso ao gozo que julgávamos que ele detivesse, mas a culpa do supereu nos impede de gozar como desejaríamos. Queres o que desejas? Ou o Che vuoi alienante te impede? A morte do pai existe. A vida insiste. E o sujeito, vive ou resiste?

  Que tempos há numa análise da relação do sujeito com o Outro? Tempo Rei, tempo rei, transformai as velhas formas do viver? Ou ensinai-me ó pai o que eu ainda não sei?

A transferência não é repetição porque o desejo do analista opera de forma que o analisando possa retificar a sua posição frente ao desejo do Outro. O desejo do analista face real do desejo do Outro devolve ao analisando a perda de seu ser na entrada do mundo. Mas isso não será sem a repetição fantasmática que enlaçará o analista como sintoma do analisando. O lugar que um analisando dá a seu analista fala do lugar que o Outro tem em suas relações sintomáticas, por isso mesmo ninguém faz análise com o mesmo analista.

Um extrato clínico: O analista acossa o analisando a apresentar um trabalho e num primeiro momento o analisando toma esta oferta como uma expressão de amor e o imperativo superegóico de responder à altura do Ideal. Repetição fantasmática na relação transferencial a seu Outro, que naquele tempo específico da análise permitiu ao analisando circunscrever que esse Outro nada tinha a ver com o analista. Esse era o Outro edípico que o habitava, cuja existência garantia a sua posição de ser o falo para o Outro. 

Numa transferência analítica, é desta cena edípica que se trata de separar. É preciso abrir mão do lugar edípico do analista para que este Outro da garantia seja barrrado. O luto do falo é o trabalho que se faz numa análise de travessia da fantasia, de cernimento do lugar de falta, de impossível de se dizer sobre o sujeito. E do Outro, lugar em que se fazia demanda de amor, o sujeito fará causa de desejo.

Há um tempo da análise onde a barra no Outro começa a incidir e um movimento mais desejante se instaura. Não há Outro da garantia, a única coisa que sustenta o sujeito é seu próprio desejo e a palavra. Talvez possamos dizer que é um tempo em que o luto das figuras edípicas, mais especificamente o luto do pai, permite que este opere simbolicamente, fazendo com que a castração incida tanto do lado do sujeito quanto do Outro.

Preconiza-se aqui o luto do falo que só pode ser realizado a partir do pai, este que operou simbolicamente, metaforicamente no Édipo, mas que o sujeito, servindo-se dele, vai ultrapassá-lo. Fazendo do pai um nome, um autorizar-se deste ponto de falta, além do seu amor de repetição. O amor é entrecruzamento do imaginário e do simbólico. Mas é o real da castração que desvela a beleza de sua essência que é simbólica. O luto do falo, da falta, permite que o gozo do ser ceda à uma causa mais desejante. Mas Lacan mesmo nos indica que há uma disjunção a se fazer na análise entre –phi e o objeto a.

Outro extrato clínico: Não há o Outro da garantia, mas ainda há o Outro da punição.  Há duas mortes do pai. Uma que permite que ele opere simbolicamente, como brilhantemente indica Jean Allouch(1995, p. 318): O luto não é substituir o morto, não é tanto separar-se dele (não conviver com ele) quanto mudar a relação com o morto. 

Mas a questão é que o luto requer uma palavra que não há. Porque a outra morte é da residuação do pai, dos seus restos. Como nos diz Ambertin( 2003, p. 224) “O supereu é residuação do pai, aquilo que não faz metáfora, é posição de borda e de causa

Freud já alertava sobre isso no texto de 1939 quando falava da reação terapêutica negativa. Que lugar para o supereu no final de análise? É possível fazer calar a voz do supereu? E assim sendo, que efeitos haverá na relação dos sujeito com sua voz?

Lacan nos fala sobre a separação na constituição do sujeito. 

” Pela separação o sujeito acha, se podemos dizer, o ponto fraco do casal primitivo da articulação significante, no que ela é de essência alienante. É no intervalo entre esses dois significantes que vige o desejo oferecido ao balizamento do sujeito na experiência do discurso do Outro, do primeiro Outro com o qual ele tem que lidar, ponhamos, para ilustrá-lo, a mãe, no caso. É no que seu desejo está para além ou para aquém no que ela diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que seu desejo é desconhecido, é nesse ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito.”(LACAN, 1964(1985), p. 207)

É neste aquém ou além do desejo da mãe que o desejo do sujeito se constitui, neste ponto de falta, neste x, enigma do desejo deste primeiro grande Outro, que a metáfora paterna não recobre. Há luto possível deste real? Ou se tratará aqui de uma outra operação? É possível fazer luto onde não há a incidência da metáfora paterna? No aquém e no além da essência alienante da articulação significante o que escoa e ecoa é voz sem palavra do gozo materno. Não seria esse o ponto melancólico estrutural ou foraclusivo de todo sujeito a ser elaborado numa análise? 

É fato que o fator econômico, freudianamente falando, fará diferença do quanto a amarração do nome-do-pai fará operar uma vereda mais desejante, ainda que adesivado ao falo nas suas vertentes de ser ou ter. Mas esse gozo Outro sem mediação, cujo imperativo superegóico vocifera: goza!, onde curiosamente está a margem de liberdade do sujeito, é da ordem do luto? 

O luto do falo permite a barra do Outro, no Outro. Mas há um ponto de invenção, de fazer outra coisa, com este ponto de limite do real. Bem-dizer o sinthoma? Descolar o adesivo do gozo fixado da fantasia para uma circulação outra da pulsão? Ainda que o Outro edípico da transferência seja barrado, há o colamento ao Outro enquanto objeto real, resto, voz superegóica da qual é preciso se separar.

Qual a relação deste tempo com o segundo tempo da estrutura da fantasia do Bate-se uma criança? O segundo tempo da fantasia é aquele que não pode ser rememorado, pois sequer existiu. É o espancamento do sujeito pelo Outro, abandono do sujeito pelo pai, ao gozo mortífero da pulsão. Supereu? Cultura de pulsão de morte. É a falta do Outro, do pai, que não pode ser simbolizada, e por isso mesmo precisa de uma invenção. Depois da castração que incide sobre o sujeito e o Outro ainda há um trabalho a fazer com este objeto a que cai, e que talvez possa circular de outra maneira. Não foi o objeto a a invenção lacaniana para a psicanálise? Não caberá a cada um que chega ao final de uma psicanálise, inventar à sua maneira o seu objeto a?

A voz como objeto do desejo, mantêm no sujeito a marca e a existência do Outro em sua invisibilidade, porém de extrema consistência. Há algo deste objeto que não entra no campo especular, no campo de troca, objeto íntimo ao sujeito, mas que ao mesmo tempo diz da marca do Outro sob o seu gozo. Ao final de uma análise, qual a relação do sujeito com sua própria voz, se supormos um descolamento do Outro superegóico do seu tom?  Onde cada um funda no tom sozinho sua Escola, algo mais melódico Donde o analista só se historisteriza por si mesmo. Mais ainda, quando a poesia faz folia numa vida?

 

Referências  Bibliográficas 

Allouch, J. A erótica do luto. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 1995.

Ambertin, M. As vozes do supereu. São Paulo: Escuta, 2003.

Castello, José. A chave do sonho. In: Caderno “Prosa & Verso”, do Jornal O Globo (13/10/2012)

Freud, S. Análise termináveis e interminável. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Obras Completas, v. 23). Originalmente publicado em 1937.

Lacan, J. O Seminário, livro 10, A angustia (1963-64). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

_____, J. O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964-65). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.